Ilegal há 40 anos, Bairro São João de
Brito vai por fim ser legalizado e requalificado
POR O CORVO • 7 JUNHO, 2017 •
Era a notícia mais aguardada pelos moradores há já quatro
décadas. O Bairro de São João de Brito, na freguesia da Alvalade, será
legalizado durante o próximo verão e, na sequência desse acto administrativo, o
seu espaço público deverá ser alvo de obras de requalificação por parte da
Câmara Municipal de Lisboa (CML), orçadas em cerca de dois milhões de euros.
Trata-se do início do, há muito desejado, processo de normalização da vida
deste aglomerado urbano situado junto ao Aeroporto Humberto Delgado, entre a
Avenida do Brasil e a Segunda Circular. “Estamos muito, muito felizes. Era um
momento muito esperado”, diz a O Corvo Fátima Agostinho, a presidente da
associação de moradores, que começou a trabalhar para este desfecho em 1997.
A novidade foi
tornada pública pela autarquia, ao início da tarde desta terça-feira (6 de
junho), depois de, por volta do meio-dia, o presidente da autarquia, Fernando
Medina (PS), a ter comunicado aos moradores, durante uma reunião realizada nos
Paços do Concelho. E acontece devido ao fim das restrições impostas pela
ANA-Aeroportos de Portugal, relacionadas com a preservação da área de expansão
daquela infraestrutura de transporte, que duravam há décadas. Depois de um
processo negocial iniciado com a câmara, no ano passado, a empresa mudou de
opinião e comunicou à CML, a 31 de maio, a sua luz verde ao processo de
legalização de um bairro onde vivem 120 famílias. O processo de harmonização
urbanística, que está a ser trabalhado pela autarquia em colaboração com a
Junta de Freguesia de Alvalade, deverá envolver a demolição de algumas casas da
Rua das Mimosas, junto à Segunda Circular, e a transferência desses moradores
para o interior do bairro.
De acordo com a
informação disponibilizada pela edilidade da capital em comunicado, o parecer
positivo da ANA permitirá iniciar de imediato o processo de legalização das
construções (118 edifícios e 125 alojamentos), através do reconhecimento dos
limites de cada lote individual, bem como a reabilitação do imenso espaço
público, com uma área de cerca de 9,13 hectares, aproximadamente nove campos de
futebol. Depois de realizados os referidos loteamentos, com a delimitação da
propriedade privada de cada ocupação, os quais deverão avançar até ao fim do
actual mandato camarário, em Outubro, a Câmara Municipal de Lisboa propõe-se
realizar uma revolução nas áreas comuns daquela comunidade, habitada por 343
pessoas.
A lista das
intervenções a realizar é grande: melhoria das condições de segurança na
circulação pedonal e viária; nova iluminação pública; requalificação da rede de
infraestruturas; criação de uma rede de espaços centrais/pólos dinamizadores;
criação de novas zonas de recreio, lazer e de produção; definição de novos
topónimos; melhoria das condições acústicas e ambientais, através da
implementação de barreiras acústicas e criação de barreiras naturais junto ao
limite norte do bairro com a 2.ª Circular e plantação de novas árvores. No
fundo, trata-se de colocar o bairro no mapa oficial da cidade, depois da
existência na sombra por mais de quatro décadas.
“O sentimento geral,
quando o presidente nos anunciou este desfecho, foi um misto de incredulidade e
de grande contentamento. Afinal de contas, as pessoas andam nesta luta há tanto
tempo. Algumas delas ficaram mesmo muito emocionadas”, descreve Fátima
Agostinho, falando do ambiente sentido na sala onde se ficou a saber a
boa-nova, numa reunião para a qual os residentes foram convocados a meio da
semana passada. “Ligou-nos uma pessoa do gabinete do presidente da câmara a
comunicar que ele queria falar com os moradores e que tinha uma notícia
importante, que nos queria dar em primeira mão. Então, mobilizámos o maior
número de pessoas”, conta a dirigente associativa a O Corvo.
De acordo com o comunicado emitido ontem pela CML, Fernando
Medina e o vereador do Urbanismo, Manuel Salgado, transmitiram a novidade às
dezenas de moradores do bairro de auto-construção, levantado no período após o
25 de abril de 1974, por cidadãos nacionais obrigados a regressar devido ao
processo de descolonização. “O que fizemos foi não desistir e, pela primeira
vez em muitos anos, conseguimos desbloquear a situação”, terá dito aos
residentes, Fernando Medina, citado pelo referido texto dos serviços da autarquia.
De acordo com o mesmo, o primeiro estudo com vista à legalização do bairro foi
realizado em 2001. Mas o parecer negativo da ANA, de carácter vinculativo,
travou tais intenções porque, na época,
considerava aquela área urbana de génese ilegal como parte da “zona de
ocupação e expansão do aeroporto de Lisboa”.
O impasse de décadas terá começado a ser resolvido em março
de 2016, de acordo com a câmara, quando se iniciaram novos estudos para a
requalificação do bairro e foi pedido novo parecer à empresa gestora das
infraestruturas aeroportuárias. Algo que confirma o que muitos moradores podiam
adivinhar, nos últimos tempos, através das movimentações no terreno. “A câmara
tem estado a fazer levantamentos no local, há já alguns meses, para definir os
loteamentos e planear o arranjo do espaço público”, confirma Fátima Agostinho,
admitindo que “o trabalho está praticamente feito”. Agora, há que desencadear a
burocracia que estabelecerá uma nova realidade, com os loteamentos e o registo
das propriedades no nome de cada um.
Os moldes definitivos
em que procederá a esta operação administrativa não estão ainda decididos,
reconhece a dirigente da associação de moradores, uma vez que se encontra ainda
por definir qual o montante que os moradores pagarão à CML pela compra dos seus
lotes de terreno – pelo quais, aliás, têm pago uma renda à autarquia. “Cada
caso individual é um caso e a câmara terá de falar com todos os residentes
individualmente. E isso não será fácil, até porque há muitas pessoas sem grande
possibilidades económicas”, afirma Fátima Agostinho, ressalvando, porém, que “o
mais provável é que se venha a optar por um valor simbólico” na transacção. “Há
vários modelos que podem ser seguidos, mas temos que nos lembrar que, ao longos
de todos estes anos, algumas pessoas já pagaram muito dinheiro à câmara”,
enuncia.
Depois de uma espera
tão longa – de uma luta dispersa, nos primeiros anos, centrada em
reivindicações como o acesso à luz e à água, passou-se à reivindicação pela
legalização do bairro, nos últimos vinte -, a representante dos moradores
admite que muitos deles só acreditarão que o processo estará próximo do
desfecho quando virem as coisas a acontecer. Mas reconhece que, agora, o
processo tomou outra forma, sobretudo porque “se conjugou a vontade política da
câmara e do Governo para resolver esta questão”.
Texto: Samuel Alemão
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