Mexia, o último dos gestores
(públicos)
Helena Garrido
8/6/2017, 7:37
A vida para além do défice público é ainda pior. A história
da EDP é mais um exemplo do preço que pagamos pela indisciplina financeira. A
corrupção pode não existir, mas prospera nestes ambientes
António Mexia é o último dos gestores-estrela a ser enleado
nas redes da justiça. Ricardo Salgado, Henrique Granadeiro, Zeinal Bava e agora
António Mexia. As estrelas da gestão foram caindo em menos de uma década, todas
elas ligadas directa ou indirectamente a Ricardo Salgado e a negócios com o
Estado. As nossas empresas e bancos de referência foram construídas pelo Estado
e os seus gestores caem do pedestal quando o Estado ficou sem dinheiro.
Pouco ou nada sabemos sobre o caso EDP, nomeadamente as
razões que levaram o Ministério Público a considerar que estão “em causa factos
susceptíveis de integrarem os crimes de corrupção activa, corrupção passiva e
participação económica em negócio”. Sabemos apenas que estão constituídos sete
arguidos, entre os quais o presidente da EDP António Mexia, na sequência de
investigações desencadeadas por uma denúncia anónima sobre os CMEC (Custos para
a Manutenção do Equilíbrio Contratual), os tais das designadas rendas
excessivas. A origem desses contratos, que já fizeram correr muita tinta, vão
desde a “preparação” da EDP para a privatização até à sua igualmente
“preparação” para a liberalização do mercado da energia. Foram sucessivas
correcções de heranças de dívidas.
A tinta que correu sobre o assunto até agora esteve sempre
relacionada com a racionalidade dessas compensações dadas à EDP: eram ou não
excessivas? E sendo excessivas podiam ser consideradas ajudas de Estado? A
Comissão Europeia disse não a essa pergunta. Mas o tema manteve-se, até porque
o parecer inicial da ERSE sobre o assunto, com data de 2004, apontava para compensações
excessivas que acabaram por ser reforçadas, quando a legislação é depois
regulamentada em 2006. O caso é de tal forma intrincado politicamente e
complexo financeiramente que nem na era da troika se conseguiu reduzir essas
compensações, pagas à EDP, e que explicam a elevada tarifa de energia paga
suportada pelos consumidores portugueses.
Toda a história recente da EDP é um longo novelo de
cumplicidades políticas e financeiras, sem que nunca se tenham encontrado
razões criminais. Tal como aconteceu com praticamente todas as empresas
públicas que foram vendidas, a privatização da EDP passou por uma fase prévia
de “engorda” ainda na era de Aníbal Cavaco Silva, altura em que nascem essas
compensações (com a designação de Contratos de Aquisição de Energia).
O mau estado das contas públicas explica em larga medida a
embrulhada em que nos meteram os sucessivos governos neste caso da
electricidade. Num processo totalmente transparente, o Estado teria calculado
quanto valiam os CAE e compensado de uma só vez a EDP. Assim se acabava com a
herança e se entrava realmente num mercado liberalizado. Mas não havia dinheiro
na altura como não houve na era da troika, como nunca há. E, na prática,
estamos a pagar um imposto que, em vez de entrar para os cofres do Estado,
entra para os bolsos dos accionistas da EDP que foram salvando as contas
públicas várias vezes – a última foi com a venda aos chineses da Three Gorges,
a que se soma a prorrogação da concessão de barragens na era de Sócrates, sem
concurso público, e ainda o modelo generoso dos CMEC.
É por isso que, lamentavelmente, Eduardo Catroga tem razão
quando diz que o Estado vendeu a empresa com essas rendas – os accionistas
pagaram um valor mais elevado ao Estado que lhes garantiu uma taxa de lucro
mais alta paga pelos consumidores. É muito mais fácil para os políticos do que
aumentar impostos: a cobrança é feita por outros ao longo do tempo para se
ressarcirem do que deram ao Estado de uma só vez. E o Governo da altura até se
pode vangloriar de ter vendido a empresa a bom preço.
É mais um dos preços que pagamos por ter um Estado
financeiramente indisciplinado. E neste caso vai directamente ao coração da
economia, ao aumentar os custos da energia, um dos pilares da competitividade.
As distorções provocadas são enormes e naturalmente empobrecedoras de um país.
Mas o que está agora em causa é mais do que isso, é a
suspeita de que em paralelo com esse negócio entre o Estado e os privados houve
corrupção. Não conhecemos as razões. Mas com mais este caso, assistimos ao desmoronar
de toda uma elite de gestores nascida e crescida com a liberalização da
economia portuguesa. António Mexia era o último dos gestores, dessa era, ainda
em funções.
Representam uma geração de gestores que eram simultaneamente
estrelas e que importaram do mundo anglo-saxónica o mantra da defesa dos
interesses dos accionistas e a política dos salários e bónus elevados. Há todo
um passado do papel da empresa enquanto comunidade e peça da sociedade que é
esquecido ou substituído por políticas de responsabilidade social.
A coincidência da queda desses gestores-estrela com o
colapso financeiro do Estado reforça a tese de que essas empresas mediáticas,
como a PT, a EDP e o BES nasceram e desenvolveram-se à custa das necessidades
financeira do Estado. Que os gestores-estrela deixam de ser geniais quando o
Estado deixa de conseguir fazer esses negócios, em que recebe hoje dinheiro que
eles vão cobrar nas suas empresas ao longo dos anos.
A vida para além do défice foi ainda mais grave, feita de
dinheiro que o Estado foi buscar às empresas que privatizou para depois nós
pagarmos aos seus accionistas, sob a forma de tarifas da electricidade ou perda
das nossas poupanças. Uma promiscuidade destas é amiga da opacidade e alimenta
todas as suspeitas. António Mexia é vítima de António Mexia. Como o foram
Ricardo Salgado, Henrique Granadeiro e Zeinal Bava. Vítimas da ganância e de se
terem convencido que eram de facto gestores geniais quando boa parte do tempo
estiveram a trocar dinheiro que entregaram ao Estado no presente por rendas ao
longo da sua vida de gestores. Para nossa salvação, as empresas têm-se revelado
muito melhores que os seus gestores.
O lobby da energia: carrasco ou
vítima?
A questão que se deverá colocar é a
de se saber se as empresas cotadas podem continuar a brincar com os portugueses
(e com a Justiça) e até quando.
Francisco Teixeira da Mota
9 de Junho de 2017, 6:55
O que quereria dizer o ex-ministro Eduardo Catroga, na
conferência de imprensa convocada pelos responsáveis da EDP para darem
explicações sobre o processo criminal que se abateu sobre aquela empresa, ao
afirmar que “não se brinca com as empresas cotadas”?
A leitura mais evidente foi a de que estava arrogantemente a
recriminar/ameaçar o Ministério Público (MP) por ter ousado incomodar a excelsa
EDP e os seus dirigentes com um processo crime que não tem qualquer sentido já
que tudo foi feito dentro da lei e os negócios que estão em causa não
aumentaram, antes pelo contrário, fizeram diminuir os rendimentos a que a EDP
tinha direito.
Apesar de esta narrativa enunciada na conferência de
imprensa, em que o lobby energético não é um lobo mas um carneiro, não pareça
muito crível, poderá, de facto, ser assim: o MP tem uma mão cheia de nada, num
processo crime aberto a partir de uma denúncia anónima, respeitante a uns já
velhos acordos de compensações financeiras celebrados entre o Estado e a EDP e,
para evitar prescrições, decidiu constituir uma molhada de arguidos.
Na verdade, o processo respeita a questões já ocorridas há
bastante tempo. Terá sido uma denúncia anónima que deu origem ao processo e a
constituição de arguidos, nos termos da lei, interrompe o prazo de prescrição,
o que sempre poderá ser muIto conveniente para o MP manter o processo em lume
brando. Mas será só isso?
O comunicado emitido pelo MP limita-se a referir que o
inquérito tem como objeto “a investigação de factos subsequentes ao processo
legislativo bem como aos procedimentos administrativos relativos à introdução
no setor elétrico nacional dos Custos para Manutenção do Equilíbrio Contratual
(CMEC)” e que estarão em causa “factos suscetíveis de integrarem os crimes de
corrupção ativa, corrupção passiva e participação económica em negócio”.
Seria de esperar que na conferência de imprensa, convocada
pelos responsáveis da EDP, se percebesse melhor o que está em causa uma vez que
o processo não estará sob segredo de justiça e que a constituição de arguidos
implica, nos termos da lei, que haja fundadas suspeitas da prática de crime
pelos mesmos. Mas na conferência de imprensa, o responsável máximo da EDP, para
além de se referir a questões técnicas, limitou-se a garantir que todos os
negócios que estão em causa respeitaram a lei e já foram escrutinados por
inúmeras instâncias, europeias inclusive. Em conclusão: os responsáveis da EDP
nada terão encontrado no processo que justifique sequer a existência do próprio
processo.
Estarão, assim, os responsáveis pelo inquérito criminal a
brincar com uma empresa cotada, como sugeriu o ex-ministro? E, ainda, por cima
uma das maiores empresas do nosso país? E terá sido só por desfastio, que
constituíram como arguido o presidente do conselho administração em exercício
dessa poderosa empresa?
Não é assim que pensam inúmeras pessoas presumivelmente bem
informadas e providas de capacidades de raciocínio seguramente não
desprezáveis; se lermos os mais diversos jornais nacionais e, mesmo as televisões,
constatamos muitas vozes e de diferentes sectores de opinião, que não ficaram
satisfeitas com as explicações dadas na conferência de imprensa, apontando a
profunda irracionalidade que representam as elevadas rendas pagas à EDP pelo
Estado e manifestando a expectativa que da investigação surja algo de mais
substancial.
No fundo, há duas hipóteses: ou o MP não tem nada de grave
no processo e teremos uma lamentável entrada de leão e saída de sendeiro ou,
então, estamos a assistir a uma réplica de grande intensidade do violento
terramoto político e social que, a partir de 2014, expôs publicamente e abalou
uma parte central da complexíssima rede de negócios e interesses e de
circulação de lugares e cargos em que o poder político nacional, depois do 25 de
Abril de 1974, ficou capturado. A ser assim, a questão que se deverá colocar é
a de se saber se as empresas cotadas podem continuar a brincar com os
portugueses (e com a Justiça) e até quando.
Quanto ao episódio do professor Manuel Pinho e da sua cátedra
na Universidade da Columbia, o mesmo seria cómico se não fosse insultuoso para
os portugueses que pagam uma das electricidades mais caras da Europa.
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