quinta-feira, 8 de junho de 2017

Dentro das casas do Corpo Santo "é o Quero cheirar teu bacalhau a noite toda" / Durante os Santos, Carlos vai para a Caparica para poder dormir


Dentro das casas do Corpo Santo "é o Quero cheirar teu bacalhau a noite toda"

Um arraial popular permitido pela autarquia está a violar as regras definidas pela própria câmara. Os moradores estão desesperados: queixam-se do barulho até altas horas e ponderam sair do centro da cidade enquanto durar a festa.

JOÃO PEDRO PINCHA 8 de Junho de 2017, 8:00

O arraial popular de Santo António que está montado no Largo do Corpo Santo, em Lisboa, não cumpre as regras definidas pela câmara municipal para este tipo de eventos. Mas foi a própria junta de Freguesia que abriu espaço para a ilegalidade, autorizando que o arraial estivesse aberto às segundas e terças-feiras à noite e que se prolongasse até 9 de Julho, violando as regras do município.
São duas situações que violam um despacho emitido pela vereadora da Cultura a 20 de Fevereiro e que estabelece as “condições de realização dos arraiais de Lisboa”. O documento é claro a definir que “não é permitido o funcionamento dos arraiais populares às segundas e terças-feiras, excepto quando estes dias coincidam com feriados ou vésperas de feriado”. E também determina que estas festas “realizam-se durante o mês de Junho”, só se admitindo o seu prolongamento até Julho “nos anos em que o dia 30 de Junho coincida com a sexta-feira”. É o caso de 2017. Mas também aqui o regulamento é específico: “os arraiais populares podem ainda realizar-se no sábado e domingo imediatamente seguintes (dias 1 e 2 de Julho)”. Em nenhum ponto se prevê que possam estender-se por mais uma semana.
A organização do arraial do Corpo Santo está a cargo da empresa de eventos Royal, mas um responsável desta empresa disse ao PÚBLICO que foi a Junta de Freguesia da Misericórdia que definiu o calendário e os horários de funcionamento. Para tal, a junta teve de se coordenar com a câmara, que é a quem compete, de acordo com o despacho de Fevereiro, o licenciamento de “ocupação de espaço público, funcionamento de recinto e de ruído”. Apesar de insistentes tentativas, o PÚBLICO não conseguiu obter esclarecimentos da junta.
Questionada sobre o assunto, a câmara, apesar de salientar que “todo o mês de Junho é um período excepcional de celebração da cidade”, confirma que, para conciliar os diversos interesses, “às segundas e terças não é permitido o funcionamento, excepto quando estes dias coincidam com feriados e vésperas de feriado”. E compromete-se a avaliar e verificar “se todas as condições estão ou não cumpridas “em relação às denúncias e queixas que surjam”.
O evento do Corpo Santo é “o maior arraial de Lisboa” porque proporciona “40 dias em festa”, segundo a publicidade da junta de freguesia nas redes sociais. Ao contrário da maioria dos arraiais da cidade, que decorrem durante uma semana ou mais próximos dos fins-de-semana (quando duram o mês todo), o do Corpo Santo tem uma programação ininterrupta. Por lá ainda vão passar estrelas como Mónica Sintra, Ágata, Toy e Kátia Aveiro.
Os habitantes da zona é que não gostam de tanta festa. “Aquilo é um autêntico inferno”, comenta Alexandre Vasconcelos, que mora a pouca distância. Ainda só houve uma semana de arraial, mas ele e outras pessoas das imediações nem querem imaginar viver com barulho diário até à meia-noite durante o que ainda falta da festa. “É uma coisa inenarrável. É ter o Quero cheirar teu bacalhau a noite toda. Ou estar a jantar e ter o Quim Barreiros na sala. É um desprezo total para qualquer pessoa que viva na cidade”, continua Alexandre. Este morador relata que as paredes do prédio abanam com o barulho e que o filho, de 17 anos, não consegue estudar para os exames do secundário em nenhum sítio da casa.
Rita Jorge, mãe de uma criança com seis meses, queixa-se do mesmo. “Já estou a ponderar planos B para estes dias mais agressivos, que eu não aguento 40 dias disto”, afirma. Rita conta que, no domingo, “era uma e tal da manhã e a música estava ao rubro”. Foi o dia, acrescenta, em que pensou “que estava a enlouquecer, a fazer contas de cabeça para perceber quantas horas faltavam para ir trabalhar”.
Eduardo Mota, da empresa de eventos Royal, explica que tudo, desde horários à localização, foi definido pela junta e pela câmara. A ele competiu-lhe apenas a programação do espaço. Segundo o empresário, o arraial estava inicialmente previsto para o miradouro de São Pedro de Alcântara, mas as obras urgentes obrigaram a uma mudança para a frente ribeirinha. “Corpo Santo foi uma coisa de última hora”, diz Eduardo Mota. “Os horários a que estamos autorizados são basicamente os dos bares do Cais do Sodré, mas houve preocupação de terminar um pouco mais cedo. À meia-noite termina, em ponto.” Os moradores dizem que a festa se prolonga por mais tempo, mas Eduardo Mota garante que não. “Tenho tido o cuidado de ser eu próprio a ir lá desligar a música.”
 “O que é uma verdadeira aberração é que alguém tenha licenciado aquilo durante 40 dias”, afirma José Maria Pacheco, um morador que escreveu uma carta ao presidente da câmara, subscrita por outros residentes. “A minha vizinha desistiu, vai mudar de casa. Tem uma criança de cinco anos que não dorme. O meu filho anda a dormir na cozinha, é a única divisão que dá para as traseiras e onde o som é mais abafado”, relata.


“Já se sabe que o mês de Junho é assim, faz parte”, comenta Eduardo Mota. “Nem que eles tenham razão legal, é uma aberração”, contrapõe José Maria Pacheco.

Durante os Santos, Carlos vai para a Caparica para poder dormir

Mudou-se para a Bica há cinco anos, mas procurou um local para se “refugiar das festas” da cidade. E dirigiu um pedido ao presidente da câmara para que cubra as despesas.

MARGARIDA DAVID CARDOSO 8 de Junho de 2017, 8:02

Carlos Raposo “lidava bem” com as Festas de Lisboa quando estas duravam uma semana. “Agora imagine que é estar 12 dias sem poder dormir”. Com o arraial das Escadinhas da Bica Grande à porta, o morador já fez a reserva de um quarto fora da cidade “para poder dormir e ir trabalhar no dia seguinte”. Durante duas semanas, vai trocar a freguesia da Misericórdia por São João da Caparica.
Mudou-se para a Bica há cinco anos e, este é o primeiro ano que procurou um local para se “refugiar das festas” da cidade. O estado de saúde da mãe, doente do coração, desencadeou a decisão. E dirigiu um pedido ao presidente da câmara para que cubra as despesas: “Peço que o Estado, a CML [Câmara Municipal de Lisboa] ou a Junta de Freguesia nos providenciem um lugar alternativo ou nos compense dos gastos num hostel para podermos passar estas noites”, escreveu num email a Fernando Medina.
“As minhas paredes, as janelas, a minha casa vibram”, descreve o morador. “É muito engraçado nas ruas mas acho que se devia olhar para os prejudicados”, reclama. Como ele, “umas boas dezenas de pessoas” na Bica mudam de casa durante as festividades, diz. “Se fosse um ou dois dias a gente desenrascava-se. O problema é que não adaptaram as festas ao bairro, mas sim aos interesses de quem faz negócio”, argumenta.
A Junta de Freguesia da Misericórdia, que desconhecia o pedido do morador, diz compreender que esta é uma “situação delicada e por vezes incómoda para os nossos moradores”. No entanto, referiu ao PÚBLICO fonte da autarquia por email, esta é uma zona histórica da cidade onde “existe uma forte tradição de realização de arraiais familiares, feitos pelos moradores para os moradores”.

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