Música dos Santos Populares em Alfama
só pode ser “portuguesa” e emitida pela junta
POR O CORVO • 5 JUNHO, 2017 •
A instalação de um sistema de som único para o arraial de
Alfama, emitindo apenas “música portuguesa” seleccionada pela Junta de
Freguesia de Santa Maria Maior, está a causar incómodo em algumas pessoas do
bairro. E já motivou acusações, por parte do Bloco de Esquerda (BE), de
ilegalidade, de xenofobia e de tentativa de imposição do gosto. “Não é
competência da junta de freguesia escolher o que as pessoas devem ouvir. Isto é
uma atitude inédita e que faz lembrar o que se passava no Estado Novo. Estamos
habituados a que, em cada ano, as pessoas e as colectividades escolham as suas
músicas, de acordo com as suas preferências. O gosto musical não é uma coisa
que seja possível padronizar”, diz a O Corvo Fábio Salgado, do BE e morador da
Rua dos Remédios. O presidente da junta, Miguel Coelho (PS), diz que se trata
apenas de fazer respeitar a “tradição”.
A polémica nasceu
após a autarquia ter anunciado, através de um comunicado assinado por Miguel
Coelho, que, este ano, pela primeira vez, seria criado um “sistema único de
som”, com a finalidade de “garantir que, durante o período dos Santos
Populares, sejam respeitados os horários de funcionamento do arraial e da
respectiva emissão de som, de modo a preservar o mais possível o direito ao
descanso dos residentes”. O horário de funcionamento deste arraial, licenciado
pela Câmara Municipal de Lisboa e a realizar em diversos dias entre 3 e 24 de
junho, começa sempre às 20h e termina às 2h – com excepção da noite de Santo
António, quando o som se desliga às 4h, e dos dias 13 e 15, à meia-noite.
Segundo o mesmo comunicado, “não estão autorizados sons autónomos por banca ou
retiro”. O texto termina referindo que “só será emitida música portuguesa
adequada a estas festividades”, dizendo o autarca que deseja “ter o melhor
arraial da cidade de Lisboa, o mais alegre e dinâmico, mas também respeitador
dos moradores do bairro”.
Tal desejo não terá,
porém, sido interpretado da mesma forma por toda a gente. Alguns viram mesmo na
criação do sistema de som comum, controlado pela junta, uma manobra
totalitária. O Bloco de Esquerda emitiu, na sexta-feira (2 de junho), um
comunicado em que acusava a junta de ilegalidade e censura, bem como o seu
presidente de autoritarismo. “A instalação de um sistema de som único para toda
a Freguesia com a promessa de ‘música portuguesa adequada a estas festividades’
é uma atitude contra a liberdade dos Retiros a criar o seu ambiente e é ainda
uma atitude xenófoba, que não reconhece a diversidade da população residente na
Freguesia”, acusam os bloquistas no seu texto, no qual falam em “censura aos
gostos e escolhas musicais da população”. Considerando que “a proibição de sons
autónomos por banca ou retiro é ilegal”, o BE apela à junta que retire o
sistema e à população que se rebele contra a medida.
Em declarações a O
Corvo, Fábio Salgado lamenta que a “população não tenha sido consultada” sobre
uma decisão que, diz, “roça a xenofobia, porque ignora a diversidade dos
gostos”. “Alfama é um bairro com uma grande diversidade cultural, e que está
integrado na freguesia mais multicultural de Lisboa e do país. Seria natural
que tal se reflectisse na música”, diz o residente e membro do BE, que faz
notar “a dificuldade da junta em cumprir essa regra por si imposta”, uma vez
que na Rua dos Remédios, nos dias imediatamente a seguir à instalação do
sistema sonoro estaria a passar música brasileira. “Nada contra. Se calhar,
queriam dizer música em língua portuguesa, imposição com a qual não
concordamos, de qualquer forma”, diz. Além disso, a colocação das colunas do novo
sistema sonoro junto a janelas e a varandas estará já a incomodar diversos
moradores, que disso se têm queixado aos bloquistas.
Já o presidente da junta garante a O Corvo que os “protestos
de muitas pessoas em relação ao barulho desregrado”, em anos anteriores, é que
motivaram a adopção do novo sistema controlado pela autarquia. “Esta decisão
resultou de um pedido das colectividades e dos residentes de Alfama”, assegura.
Em causa estava não apenas o ruído excessivo produzido por uma multiplicidade de
aparelhagens, diz, mas também o facto de que “eram sons que, em muitos casos,
nada tinham a ver com a tradição dos santos populares”. “Em algumas situações,
era apenas música de discoteca, com batidas, que nada tinha que ver com os
arraiais”, diz Miguel Coelho, para quem, nesta quadra, “é natural que as
pessoas queiram ouvir música portuguesa”. “Não temos de ter vergonha da nossa
cultura. Do que se trata é de uma festa tradicionalmente portuguesa, não de uma
emissão radiofónica”, diz o presidente da junta, convicto de que a playlist
“popular, festiva e animada” será do agrado de todos.
Texto: Samuel Alemão
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