quarta-feira, 7 de junho de 2017

O que se passou afinal no Convento de Cristo? “Sempre esteve tudo controlado”


O que se passou afinal no Convento de Cristo? “Sempre esteve tudo controlado”
6/6/2017, 23:22107

Funcionários não estão satisfeitos com a divulgação das notícias sobre os alegados danos. Um dos responsáveis do monumento explica ao Observador o que aconteceu nas filmagens e mostra as imagens.
No Convento de Cristo de Tomar, icónico símbolo da presença da Ordem dos Templários em Portugal, os funcionários andam cabisbaixos com as notícias recentes sobre os alegados danos provocados no monumento durante a rodagem do filme O Homem que matou D. Quixote, realizado pelo britânico Terry Gilliam. Pedem para não ser identificados, mas desabafam ao Observador a sua tristeza com aquilo que consideram ser “mentiras inventadas para prejudicar alguém” e até reconhecem que o convento ficou “mais arranjado” no fim das filmagens.

Numa reportagem exibida na última sexta-feira na RTP1, funcionários e ex-funcionários — não identificados — do monumento denunciavam que a rodagem do filme, orçamentada em 17 milhões de euros e que resultou de uma parceria de produção entre vários países europeus, deixou várias pedras dos claustros partidas e várias telhas deslocadas. Além disso, denunciavam que a produção do filme tinha feito uma fogueira com 20 metros num dos claustros do convento, tendo usado para o efeito dezenas de botijas de gás com potencial explosivo.

Contudo, segundo quem lá está diariamente, as coisas não terão sido bem assim. Álvaro Barbosa, arquiteto e funcionário do Convento de Cristo há 32 anos, é um dos responsáveis pela conservação do monumento. O gabinete onde faz as suas investigações, no segundo piso do convento, tem vista precisamente para o local onde foi feita a filmagem da fogueira. Por isso, durante mais de dois meses, Álvaro conviveu diariamente com a equipa de produção do filme e acompanhou de perto a utilização do monumento, classificado como património mundial pela UNESCO, para a realização da película.

“Há mais de trinta anos que trabalho no Convento de Cristo e durante esse tempo houve muitos filmes a serem rodados aqui”, revela Álvaro ao Observador, numa conversa por entre os claustros. “Foi feita uma fogueira para recriar uma tradição que acontece em Las Fallas, na Andaluzia, que é onde se passa a história do filme. É uma tradição em honra da santa do lugar, em que é feita uma grande fogueira onde são queimados objetos com más energias”, explica o arquiteto, ao mesmo tempo que sublinha que não é a primeira vez que a realização de um filme obriga à montagem de uma fogueira no monumento.

“Já houve um outro filme, penso que em 2006, sobre Santa Teresa d’Ávila, em que é usada uma fogueira para recriar um auto de fé. Mas não é uma fogueira, é um dispositivo pirotécnico que acende apenas uma pequena parte, controlada, que permite a ilusão de uma fogueira depois com a montagem.”

A preparação do filme começou em março, dois meses antes da rodagem. Desde esse momento, Álvaro começou a cruzar-se todos os dias com a equipa de produção, sempre que passava pelos claustros a caminho do gabinete de estudos. “Presenciei tudo. Vi os bombeiros, que vinham sempre ao fim da tarde para as filmagens, que eram à noite; vi a equipa a testar os equipamentos, vi dezenas de extintores. Sempre esteve tudo controlado. Nunca vi nada que pudesse fazer-me receio do que se ia passar”, recorda o arquiteto. Sobre as filmagens propriamente ditas, informava-se “em conversas com os produtores” quando os via no dia seguinte. “Perguntava-lhes como tinha corrido a noite e eles muitas vezes explicavam que era difícil, que os objetos largavam muito fumo. Eles iam fazendo aquilo gradualmente”, recorda.

Instalação dos sprinklers para emissão de água a partir dos telhados do claustro. O sistema garantia a segurança do espaço e a terá sido a instalação a provocar a deslocação de "3 ou 4 telhas".

Foi do segundo piso do monumento que Álvaro tirou um conjunto de fotografias à estrutura de madeira que foi erguida para simular a fogueira. “É uma maneira de ir registando os eventos na vida deste monumento”, conta. Para o arquiteto, todos os danos apontados são manifestamente exagerados e toda a rodagem do filme foi feita com recurso a medidas de proteção do monumento.

Relativamente à fogueira, o responsável recusa a ideia de que tenha mesmo havido uma fogueira de 20 metros no claustro do mosteiro. “É claro que não houve. A madeira nem ardeu, o que aconteceu é que aquela estrutura tinha um conjunto de pequenos bicos de gás que eram acesos apenas no momento de serem filmados, para queimar os objetos”, explica. Além disso, toda a filmagem foi feita na presença dos bombeiros. “Estava cá o chefe dos bombeiros com um conjunto de bombeiros de prevenção. No exterior, havia uma cisterna que alimentava um sistema de sprinklers [sistema tipo chuveiro usado para criar a ilusão de chuva e neste caso colocado para apagar a fogueira em caso de descontrolo] instalado nos telhados em torno do claustro onde foi feita a fogueira”, garante.

Terá sido, aliás, a colocação desses sprinklers a causa da deslocação de “três ou quatro telhas”, algo que Álvaro Barbosa não considera ser problemático. “É muito comum. Temos quilómetros quadrados de telhas neste convento, como imagina. Nós próprios temos de fazer um grande esforço para fazer uma vistoria uma vez por ano a todos os telhados. A deslocação das telhas pode ter sido originada quando foram colocados os sprinklers, porque as pessoas andaram por lá. São factos que acontecem até em situações de manutenção”, explica o responsável, garantindo que todas as telhas foram de imediato substituídas, como acontece durante as manutenções habituais do monumento.

Já no que toca à questão das pedras partidas, Álvaro também não vê razões para preocupação. Por vários motivos: em primeiro lugar, porque “o que aconteceu com a quebra das pedras podia muito bem ter acontecido com turistas”, que se sentam habitualmente “na base das colunas”. Apesar de tudo, a equipa de produção do filme assumiu a responsabilidade pelas quebras, “incluindo por algumas que não terão sido feitas por eles, mas que eles quiseram também pagar”.

Em segundo lugar, o arquiteto garante que as pedras não foram expostas a situações de calor excessivo, uma vez que todo o piso do claustro foi coberto por uma camada de cerca de 50 centímetros de altura de areia — como se vê nas fotografias –, que impediu o calor da base da fogueira de afetar as pedras. Por fim, o responsável explica que a quebra de pedras acontece todos os anos “quando chega maio, quando começa a fazer mais calor”, devido à seca dos líquenes que se acumulam nas rochas. “Há trinta anos que trabalho aqui e há trinta anos que tiro pedaços de pedras quando chega o verão”, explica o responsável, enquanto vai mostrando ao Observador vários casos de pedras prestes a partir-se — tanto em zonas usadas na produção do filme como em outras que não foram utilizadas.

Já em relação às árvores que foram retiradas do claustro, Álvaro mostra-se igualmente surpreendido com as acusações de que terão sido cortadas devido às filmagens. “Elas até foram tiradas depois da rodagem… Eu estive com o arquiteto paisagista que é responsável pela parte dos jardins e ele na altura explicava que já estava decidido retirar os arbustos dali. Por um lado, porque aqueles canteiros não têm espaço suficiente para albergar as raízes, e por outro lado porque nem eram espécies daqui. Tinham sido plantadas há cerca de 10 ou 15 anos, curiosamente também para se fazer outro filme aqui”, sublinha.

Todas as explicações de Álvaro Barbosa vão ao encontro do que a produtora Ukbar Filmes afirmou na noite de segunda-feira, num comunicado divulgado através do Facebook. Assumindo que se verificaram “alguns danos, que foram devidamente contabilizados”, a produtora portuguesa que fez parte do consórcio que realizou o filme garantia que os danos se saldaram “em seis (convencionais e de fabrico recente) telhas partidas e quatro fragmentos pétreos de dimensões reduzidas e variáveis, de aproximadamente 8 centímetros, no máximo”, danos esses que podiam ter sido provocados “por qualquer visitante”.

A notícia sobre os danos no monumento não agradou aos funcionários que trabalham no Convento de Cristo. “Acho muito estranho que tenham sido funcionários daqui a denunciar aquilo, afinal de contas eles também seriam implicados”, desabafa um dos funcionários. “Não faço ideia de quem é que iria querer dizer uma coisa destas, a maioria do que disseram é mentira”, diz outro, acrescentando: “Há de ser para prejudicar alguém aqui dentro”. E mais não adiantam: ninguém quer falar sobre o assunto enquanto não ficar resolvido.

Câmara de Tomar quer respostas

A Câmara Municipal de Tomar não tem nenhum poder na gestão do Convento de Cristo, apesar de a presidente da autarquia, Anabela Freitas, já ter pedido publicamente ao ministro da Cultura que o monumento passe para a gestão partilhada entre a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC) e a Câmara. Ainda assim, o município quer saber o que aconteceu verdadeiramente no Convento de Cristo. Ao Observador, Anabela Freitas sublinha que o executivo autárquico decidiu, “em unanimidade, pedir uma reunião com caráter de urgência ao ministro da Cultura e pedir uma reunião com caráter de urgência à diretora-geral da DGPC”.

À DGPC, a autarquia vai enviar também um conjunto de questões às quais quer uma resposta. “Uma das coisas que queremos saber é se quando foi pedida autorização à DGPC para utilização do espaço, se foi entregue um guião ou um caderno com o que se iria passar, que tipo de material iria ser utilizado, etc.” Isto porque “sempre que a Câmara quer fazer alguma ação no Convento, também apresenta estas informações, antes de receber autorização para utilizar o espaço”, explica a autarca, exemplificando com o caso da Festa Templária. “Fazemos uma recriação de um cerco ao castelo e usamos fogo frio. Mas temos de dizer, e bem, que materiais vamos utilizar. E depois é autorizada a utilização do espaço. Certamente isso também foi pedido à produtora”, espera Anabela Freitas.

“É um monumento que está no nosso território, gostaríamos de ter uma palavra a dizer”, explica a presidente da autarquia, sublinhando que foi “surpreendida pela reportagem na sexta-feira”. A Câmara sabia que o filme estava a ser rodado na cidade, até porque a produtora também pediu à autarquia a autorização de utilização de alguns espaços públicos em Tomar para outras cenas do filme, autorização essa que foi concedida.

“Na reportagem são levantadas diversas questões. Não temos nada a ver com isso. O que nos interessa é se efetivamente o património sofreu danos e que medidas foram tomadas”, afirma Anabela Freitas, mostrando-se particularmente chocada com a questão das botijas de gás colocadas no Convento. “A ser verdade, é muito perigoso, e aquilo não é um património que possa ser assim reconstruído depois. Mas quero acreditar que tudo foi feito com cautela e sob condições de segurança”, conclui a autarca.


Entretanto, as reações não se fizeram esperar. O Bloco de Esquerda foi o primeiro a pronunciar-se sobre o caso na esfera polícia, pedindo uma audição parlamentar do ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes. A audição aconteceu na terça-feira e Castro Mendes remeteu as explicações para o inquérito que está em curso para apurar responsabilidades no caso — aberto logo na segunda-feira pela DGCP –, recusando fazer “juízos de valor e condenações na praça pública antes de ter o apuramento rigoroso dos factos”.

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