"Estas
coisas não acontecem por acaso: há uma promoção da cidade de Lisboa como um
centro para o investimento estrangeiro, querem Lisboa concorrida, cosmopolita,
limpinha. Um terramoto é uma coisa destrutiva e, depois de acontecer,
normalmente há uma limpeza e constrói-se de novo. É mais ou menos essa a
intenção".
Leonor
Duarte, psicóloga e fundadora da Academia Cidadã
“Em Lisboa está tudo à espera de
arrendar a casa à Madonna”
10 Junho 2017
Ana França
Alugar ou comprar uma casa em Lisboa a um preço razoável
está a tornar-se uma tarefa quase impossível. Há quem culpe o alojamento local,
há quem diga que a mudança é normal. Fomos ouvi-los.
Levantavam-se cedo, às vezes na mesma casa, outras vezes
cada um na sua, e esperavam por aquele “pling” que anuncia a chegada de um
email ao ecrã do telemóvel. Tinham subscrito os alertas de todas as
imobiliárias e de todos os sites que agregam os anúncios das casas disponíveis
para arrendar em Lisboa. Algumas um pouco longe, outras um pouco caras, mas com
a certeza de que em breve apareceria alguma coisa e poderiam finalmente viver
juntos.
“Ao início, enquanto percorria as páginas de anúncios, ia
também vendo mobília, decoração, ia planeando os pormenores, aquela
possibilidade de ter o meu espaço com ele, dava-me energia. Agora é apenas um
processo deprimente, mas necessário, porque não queremos desistir”, diz Sílvia,
que tem 27 anos e trabalha n’ A Vida Portuguesa. Namora com Eduardo, 34 anos,
fotógrafo e arquiteto a tempo parcial.
Começaram à procura de casa em outubro de 2016, e nem um nem
outro poderiam sonhar que, chegados quase ao verão de 2017, ainda estariam a
viver, não só separados, como tão longe de encontrar um T1 como estavam há sete
meses. “Em abril dissemos que não a um senhor que estava a fazer obras numa
casa, em Alcântara, e que só teria a casa pronta em julho ou agosto. Agora só
faltam dois meses para essa data e nunca pensamos que ainda estaríamos à
procura”, diz Eduardo ao Observador, sentado ao lado de Sílvia, numa esplanada
do Príncipe Real, um dos bairros mais caros de Lisboa, onde há muito deixou de
ser possível para este casal pensar viver.
O tempo foi passando entre viagens à “Outra Margem”, voltas
pelas mercearias e cafés dos bairros de Lisboa tentado tropeçar num dos tais
“achados” e agentes imobiliários dispostos a oferecer, além de opções de casas,
“lições de moral por eu ainda estar a recibos verdes”, diz Eduardo. Os anúncios
e as (poucas) casas que foram ver podiam arquivar-se todas em três categorias:
casas em estado de conservação precários, casas longe de Lisboa ou casas com
rendas muito acima das possibilidades do jovem casal.
“O volume de anúncios está a diminuir e, ao mesmo tempo, a
rapidez com que as casas desaparecem é surreal. Ligas 15 minutos depois de o
anúncio ter sido colocado na Internet e a casa já não está lá. Se for ao fim do
dia, o telemóvel já está desligado. Os senhorios devem comprar um daqueles
cartões SIM descartáveis, que só usam para aquele dia e depois deitam fora
porque a voragem de telefonemas deve ser uma coisa impossível de aguentar”, ri
Eduardo.
Em 2011, a primeira vez que veio viver para Lisboa, Eduardo
alugou um T1 na Mouraria e, depois, um outro na Calçada do Combro, perto do
Chiado, no centro de Lisboa — ambos por 450 euros. Agora vive num quarto, perto
do Saldanha, por 350. A casa não tem sala e vivem mais seis pessoas com ele. Um
T1 a 450 euros no centro de Lisboa é hoje em dia um “achado”, apesar de serem
normalmente casas desenhadas para ocupação singular ou, no máximo, para duas
pessoas.
Um parênteses para uma pesquisa rápida no Casa Sapo. Ali
mesmo, através dos dados móveis do telemóvel, o que é que conseguimos ver? Um
T1 em Arroios por 750 euros, um outro em Campolide por 1.200 e um outro, na
Estrela, por 900 euros. Nenhum deles novo e as áreas variam entre os 50 e os
100 metros quadrados.
A vida de Eduardo acontece dentro do quarto, é ali que janta
e ali que trabalha e isso está a deixá-lo “maluco”. Quando não está no Saldanha
está na Estefânia, onde Sílvia vive, também com mais seis pessoas. “Pela
natureza do meu trabalho acabo por fazer muita coisa a partir de casa e, como
não há um espaço comum, estou muito no quarto. Trabalhares no sítio onde
dormes, onde comes, não é mesmo nada saudável”, diz. O número de casas para
alugar diminui todos os dias. É uma tempestade perfeita criada pela conversão
de habitação anteriormente destinada ao arrendamento em alojamento local, para
turistas, e pelo aumento da venda de prédios inteiros que depois se tornam
hotéis ou hostels reduzindo também assim a oferta de apartamentos para
arrendamento. E o aumento da procura não está só patente nas estatísticas, é
uma coisa que lhes bate à porta.
A cidade tem hoje mais de 13 mil apartamentos e casas
listadas na plataforma Airbnb. Em 2009 eram duas.
“Sábados de manhã é certinho. Estou eu a arrumar ou a fazer
o almoço e começam a tocar à campainha lá do prédio, já aconteceu tantas, tantas
vezes. Tocam e perguntam se o apartamento é nosso, se estamos interessados em
vender, se não é nosso de quem é e se sabemos, então, se o dono está
interessado em vender. É que quem procura acha e alguém, eventualmente, lhes
dará o contacto do proprietário, que pode muito bem optar do vender”, conta
Sílvia.
O preço médio de aluguer de um apartamento já está nos 830
euros, 10 euros por metro quadrado ao mês, segundo dados da Imovirtual. O
último estudo da consultora imobiliária CBRE confirma estes números e sublinha
que o valor dos arrendamentos em Lisboa subiu 23% no último ano. Mediadores
imobiliários estimam que, em algumas zonas de Lisboa, os preços do arrendamento
tenham disparado entre 30% e 40% desde 2014, o ano em que as plataformas
eletrónicas de arrendamento chegaram em força à capital. Só no último trimestre
de 2016, as rendas subiram 14,6%, de acordo com o Boletim da Confidencial
Imobiliário. Quando passamos para os imóveis novos, o valor médio é de 1070
euros mensais.
As zonas mais caras para arrendar casa em Lisboa são o
Parque das Nações, onde a renda média ronda os 1080 euros, e as Avenidas Novas,
onde os preços ascendem a 998 euros. Os dados da Uniplaces confirmam essa
tendência, apesar de esta plataforma estar apenas destinada ao arrendamento de
quartos, que, em Lisboa, registaram um aumento de preço perto dos 10%, bem
superior ao apresentado pelos imóveis no Porto (3%). A culpa? É da procura, que
cresceu 70%.
Mais uma pesquisa rápida, desta vez na página da Imovirtual,
mostra um pouco desta realidade: há um T2 em Belém por 1.200 euros por mês, um
T1 no Restelo por 850 euros, e um T2 em Campolide por 1.450 euros. Fica o
aviso: é possível que estas ligações já não dirijam o leitor à casa em questão
quando estiver a ler este artigo porque mesmo estas casas, com preços que estão
muito acima de um ordenado médio português (913 euros, segundo a Pordata), são
arrendadas em pouco tempo. Os potenciais inquilinos alimentam a “esperança”
numa bolha que eventualmente rebente e obrigue o mercado a oferecer preços mais
baixos, mas isso pode estar longe.
“Não há nem se prevê a médio prazo uma queda dos preços.
Lisboa é uma cidade que está em todos os guias turísticos do mundo, com
história e bairros antigos e pitorescos, mas ao mesmo tempo com bons colégios,
hospitais, estradas, transportes: um cenário ideal para qualquer estrangeiro
com algum dinheiro e há muitos nesta categoria. Além disso, Lisboa é uma cidade
onde as casas são baratas para um francês, um suíço ou um americano com algum
poder compra. Muito mais barata que Paris ou Londres”, diz um agente
imobiliário da Century 21 ao Observador.
O que se passa em Lisboa, continua, “é uma cruel
demonstração da regra mais básica da oferta e da procura”, que, “como em outros
negócios”, acaba por obliterar a concorrência mais pequena. Enquanto “a
possibilidade de fazer muito dinheiro existir, porque existe e a procura ainda
é muito maior do que a oferta, os preços só vão aumentar”, completa.
Bolha? Qual bolha?
“Não pode haver bolha se a procura excede a oferta e é
preciso não esquecer que nos países onde houve bolhas imobiliárias, como em
Espanha ou nos Estados Unidos, as subidas de preços das casas estavam nos três
dígitos”, diz Francisco Quintela, co-fundador da imobiliária especializada em
imóveis de luxo Quintela e Penalva, comentando o facto de o Fundo Monetário
Internacional (FMI) ter lançado o alerta para os perigos de uma bolha
imobiliária em Portugal, já que os imóveis valorizaram 6,4% no último ano, o
15.º registo mais elevado dos países analisados.
"O que se passa nos bairros históricos, e já fora
deles, é um processo de profunda mudança que reflete a conjugação, no mesmo
tempo, de fatores de mudança conjuntural, que se prendem com as tentativas de
sair da crise que vem de 2008 e com as oportunidades criadas para o sector do
turismo num país e numa cidade com as vantagens competitivas que tem, nesse
sector e neste contexto particular".
Walter Rodrigues, professor e diretor do curso de Sociologia
do ISCTE-IUL
Numa entrevista ao Diário Imobiliário, Francisco Quintela
disse que, “em primeiro lugar, os bancos estão mais cautelosos e as pessoas também”;
e, por outro lado, “os novos empreendimentos que têm sido construídos têm mais
qualidade e são baseados em estudos de mercado sólidos”, o que resulta numa
venda quase imediata das novas construções. O resultado é serem vendidos pouco
depois de comercializados.
Ainda recentemente, Portugal foi considerado pelo segundo
ano consecutivo o sétimo melhor destino para investimentos imobiliários na
Europa, pelo relatório Emerging Trends in Real Estate Europe, um relatório da
consultora PwC que analisa as vagas de investimento no imobiliário a nível
europeu. “Estas análises consideram Portugal como um dos destinos mais
aliciantes para se realizar investimentos imobiliários, o que por sua vez
reflete que há muita procura e que os preços não são considerados demasiado
elevados”, disse ainda aquele responsável.
Ao seu lado aparece também Luís Lima, presidente da
Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária de Portugal
(APEMIP) que considera que o preço das casas é “elevado” em “algumas cidades do
país”, mas descarta a existência de uma bolha imobiliária. “Em Portugal nunca
vai haver uma bolha imobiliária. O que está a acontecer é que em algumas
cidades do país, nomeadamente Lisboa e Porto, e numa parte do Algarve, há zonas
específicas onde os preços, para mim, estão acima daquilo que é o valor
razoável”, mas, acrescenta, “não podemos olhar para o imobiliário como sendo
igual em todo o país”, disse Luís Lima depois da publicação do estudo do FMI.
O mesmo organismo ressalva que pode ainda não ser hora de
entrar em pânico, mas vai deixando o aviso: Portugal integra um grupo de 18
países aos quais os autores do estudo chamam “dust and boom“, ou seja “queda e
explosão”, aqueles onde as casas mais desvalorizaram tendo em pouco tempo
ascendido a preços novamente bastante elevados. O estudo nota que esta evolução
surge apesar da contração do crédito em Portugal e do quase congelamento dos
ganhos médios no país e por isso alertam para o potencial impacto desta
escalada na saúde financeira das famílias e nos riscos que possam vir a correr
ao sentirem a pressão para adquirir um imóvel.
“Mesmo que os preços subam só devido à oferta, o impacto no
endividamento das famílias pode ser adverso para a estabilidade financeira” uma
vez que “se a subida de preços não encontra correspondente nos rendimentos das
famílias” e “se a entrada de investidores estrangeiros continua a puxar os
preços” as famílias “podem ser obrigadas a um maior esforço (risco) para
comprar ou arrendar uma habitação”, alertam os economistas.
Lisboa está a mudar? Sim, “e isso é normal”
O conceito de “gentrificação” teve, desde a sua criação,
“uma utilização caótica e muito frequentemente uma apropriação ideológica”, diz
ao Observador Walter Rodrigues, professor e diretor do curso de Sociologia do
ISCTE-IUL. A sua criação está “diretamente ligada à transformação de áreas
residenciais urbanas da cidade de Londres, de composição social operária, em
áreas predominantemente reocupadas por uma população com profissões
intelectuais, científicas, artísticas e com elevadas qualificações académicas”.
Hoje, o conceito é usado de forma um pouco mais lata, mas
continua a referir-se a um processo “de recomposição social”, iniciado em
finais da década de 1950, que remete para uma “reestruturação urbana, que por
sua vez era uma consequência da reestruturação económica, que afastou
definitivamente as fábricas dos centros urbanos enquanto se assistia a um
crescimento do terceiro sector económico”.
É um processo que está “a mudar Lisboa há algumas décadas”,
pese embora a relativa lentidão das mudanças, que são agora um pouco mais
evidentes devido ao turismo, um setor que foi visto — e concretizado — como uma
ajuda para sair da crise. Por isso, o investigador argumenta que “o que se
passa nos bairros históricos, e já fora deles, é um processo de profunda
mudança que reflete a conjugação no mesmo tempo de fatores de mudança
conjuntural, que se prendem com as tentativas de sair da crise que vem de 2008
e com as oportunidades criadas para o sector do turismo num país e numa cidade
com as vantagens competitivas que tem, nesse sector e neste contexto
particular”. Essas mudanças conjunturais passam pelo turismo, mas não param
nele.
“Como o [Michael] Fassbender comprou uma casa em Alfama e a
Madonna foi vista por aí a sondar o preço das quintas em Sintra, as pessoas
colocam as suas casas a arrendar por valores risíveis à espera de uma sorte
dessas. Toda a gente pensa que vai aparecer uma Madonna a quem arrendar a
casa“.
“O crescimento de sectores económicos que exigem qualificações
de topo, o crescimento do leque de escolhas em matéria de estilos de vida, que
passam pela valorização de determinados aspetos da vida urbana, do consumo às
novas formas de residencialidade, mas também para um incremento da diversidade
da ‘etnopaisagem urbana’ (consequência da atual fase da globalização)” são tudo
fatores que convergem no sentido de uma recomposição do tecido social e urbano
das cidades.
Para Walter Rodrigues é importante que o estudo destas
modificações não seja apropriado pela ideologia. Para o professor, as
discussões sobre “desertificação” e “desaparecimento das gentes de Lisboa” está
“estafada”.
“É preciso dizer isto sem rodeios: a queixa da
‘desertificação dos bairros históricos’ prende-se com uma noção de cidade em
que numa parcela muito significativa havia sobreposição num mesmo espaço de
todas as funções urbanas: trabalho, residência, consumo, etc.. Ora, essa cidade
já não existe, ou quando existe é uma reinvenção de novos residentes, com novas
profissões e novos estilos de vida. A população que abandonou os bairros
históricos foi maioritariamente uma população jovem que protagonizou um
processo de mobilidade social ascendente quando rumou às periferias. A que
permaneceu foi, essencialmente, a mais idosa e com menos qualificações
escolares e profissionais”.
Na sua opinião, a conceção de “lisboeta”, de “gentes locais”
e de bairro histórico “está na base de muitos argumentos que se vêem
difundidos, até por especialistas, que têm uma noção equívoca do conceito de
identidade e de vida urbana”, porque “as cidades, como as sociedades, como as
identidades não são estáticas”.
“Esses bairros históricos ficaram, assim, com um flanco de
oportunidades para o mercado imobiliário e para a procura de novos residentes.
No caso de Lisboa, as características urbanísticas de uma parte significativa
dos bairros históricos reduz o leque da sua procura, sendo sobretudo procurados
por jovens em início de vida independente, novos imigrantes, arrendamento
turístico.”
Para Eduardo este processo afeta “toda a cidade” o que cria,
“mesmo sem ser essa a intenção direta de quem vende ou arrenda a preços
elevados”, uma espécie de “barreira social”, impenetrável não só aos mais
pobres mas mesmo aos que têm “rendimentos médios”. Sílvia completa: “É a
ganância normal de quem esteve muito tempo inerte pela contenção orçamental,
sem possibilidade de vender ou rentabilizar os seus bens. Agora querem
aproveitar tudo, sofregamente, porque pode vir aí uma bolha, porque esta
bonança pode não durar, porque é urgente aproveitar esta onda de investimento,
porque em Portugal não se pensa muito no dia de amanhã”. As fotos das filhas de
Madonna com camisolas do Benfica, calçada portuguesa debaixo dos pequenos pés e
legendas como “onde a vida começa” ajudam à promoção do país, mas não é certo
que ajudem a acalmar a situação.
Para o casal, há muita coisa a convergir para esta situação.
Não são apenas os turistas, ou os investidores estrangeiros ou os senhorios
que, findos os contratos, não renovam e sobem as rendas até “onde der”. É tudo
isto, e tudo isto “só pode ser controlado pelo Estado”, defende Eduardo. Diz
que está “triste e preocupado” e não apenas porque gostava de ter uma casa para
viver com Sílvia. É que “há uma sensação de cada um por si” que o “assusta” e o
deixa “um pouco desanimado com o futuro disto a que chamamos comunidade”.
“Como o [Michael] Fassbender comprou uma casa em Alfama e a
Madonna foi vista por aí a sondar o preço das quintas em Sintra, as pessoas
colocam as suas casas a arrendar por valores risíveis à espera de uma sorte
dessas. Toda a gente pensa que vai aparecer uma Madonna a quem arrendar a
casa“, diz Eduardo.
“Segundo terramoto de Lisboa”
Leonor Duarte, psicóloga e fundadora da Academia Cidadã,
parte do movimento Morar em Lisboa, diz que o que se está a passar em Lisboa é
“um segundo terramoto”. A diferença é que os terramotos não são premeditados e
esta convulsão, na sua opinião, não foi apenas uma fúria da natureza. “Estas
coisas não acontecem por acaso: há uma promoção da cidade de Lisboa como um
centro para o investimento estrangeiro, querem Lisboa concorrida, cosmopolita,
limpinha. Um terramoto é uma coisa destrutiva e, depois de acontecer, normalmente
há uma limpeza e constrói-se de novo. É mais ou menos essa a intenção”, refere
Leonor Duarte, de 45 anos, ao Observador.
“Eu sou igual a qualquer arrendatário em Lisboa: vivo em
Alfama, estou em perigo e estou com medo. O meu contrato pode não ser renovado,
mesmo que ainda ninguém me tenha dito que é essa a intenção. Não acredito que
haja alguém a arrendar casa nas zonas mais centrais que neste momento possa
dizer que não se preocupa com o seu futuro. Não existem contratos estáveis, até
porque eles agora são quase todos de um ano ou menos. O medo é generalizado.”
"Estas coisas não acontecem por acaso: há uma promoção
da cidade de Lisboa como um centro para o investimento estrangeiro, querem
Lisboa concorrida, cosmopolita, limpinha. Um terramoto é uma coisa destrutiva
e, depois de acontecer, normalmente há uma limpeza e constrói-se de novo. É
mais ou menos essa a intenção".
Leonor Duarte, psicóloga e fundadora da Academia Cidadã
As conclusões da ativista baseiam-se nos emails que a Morar
em Lisboa recebe, e que são “cada vez mais”. Segundo conta Leonor Duarte “há
pessoas que escrevem emails ‘a gritar’, entre aspas, porque receberam uma carta
do senhorio a dizer que o seu contrato não será renovado”. É preciso depois
entender exatamente qual a situação do inquilino e muitas vezes, conta, “estas
cartas são enviadas às vezes um ano, um ano e meio antes de o contrato acabar”.
São uma espécie de “carta com medo dentro”, diz, porque “os
avisos de fim de contrato não têm qualquer fundamento legal se não forem enviados
120 dias antes do fim do contrato”. E, portanto, se por um lado podem ser
olhados como benéficas, uma vez que dão mais tempo aos inquilinos para
encontrarem nova morada, acabam por ser vistos por muitas pessoas como uma
espada pendurada em cima da cabeça.
Foi precisamente uma dessas cartas que fez soar o alerta no
número 25 da Rua dos Lagares. Há cerca de um ano, as 16 famílias, cerca de 35
pessoas, que habitam este prédio na Mouraria — na verdade, a meio de uma rua
que divide Mouraria e a Graça — receberam uma carta a avisar que o prédio tinha
sido vendido e que os seus contratos não seriam renovados.
Todos juntos, e depois de uma reunião no café do bairro,
foram à Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, que prometeu apoio jurídico,
escreveram cartas a Fernando Medina, Presidente da Câmara de Lisboa, que ainda
não respondeu, a António Costa, primeiro-ministro, que lhes respondeu a dizer
que o caso está a ser analisado, e a Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da
República, que lhes disse que o melhor seria encontrarem um advogado para mover
um ação coletiva, caso existissem bases legais para isso.
Não é certo que existam. O prédio foi vendido e agora é da
Iberaquisições, uma empresa de aquisição de imóveis e o que se diz no prédio é
que o novo proprietário, que nenhum dos inquilinos conhece, pensa reconverter o
imóvel em alojamento local. A empresa não respondeu aos contactos do Observador
e por isso não foi possível confirmar a intenção dos novos proprietários, que,
de resto, não têm que dar justificações, perante a lei, sobre o que fazem com
os seus imóveis.
Já há, contudo, quatro frações reservadas a este modelo de
arrendamento que foram reconvertidas, porque os inquilinos decidiram sair antes
do fim dos seus contratos: no número 1 da Travessa do Terreirinho o 1.º e o 2.º
direito estão destinados a alojamento local e, no número 3 e no número 5, dois
prédios que só têm um apartamento cada por causa da inclinação da rua, ambos
estão também apenas disponíveis para arrendamento turístico. Fazem parte do
número 25, que é um prédio que ocupa uma rua e duas travessas.
Carla Pinheiro vive na Mouraria desde sempre, 47 anos
portanto, e neste prédio há 10. O filho cresceu aqui e também perdeu o pai
aqui. Na parede em frente à travessa dos Lagares eles ainda estão juntos, a
jogar futebol, nas fotografias tiradas entre 2009 e 2011. É um mural a preto e
branco ao qual Carla chama “o mural dos pré-históricos” porque os que ainda não
morreram “estão na mesma em vias de desaparecer”.
É um tema que emociona toda a gente. A conversa ainda só vai
na parte burocrática e Rosário Teixeira já está a chorar, olhos postos em
Carla. “Eu prometi ao marido desta miúda que tomava conta dela e do filho dele,
prometi-lhe no caixão e agora se me tiram aqui de ao pé dela o que é que eu
faço? Como é que eu cumpro esta promessa?”, pergunta Rosário que dali a pouco
tem que voltar para o armazém de distribuição de mercadoria chinesa onde
trabalha. Carla, por seu lado, acabou de chegar do seu turno como encarregada
de limpeza num hotel do Martim Moniz. Agora tem que ir para a casa ficar com a
mãe, que tem 85 anos, está praticamente cega e não pode estar sozinha. Daqui a
pouco, Nelson chega da escola e há que fazer o jantar. E porque Carla já está
ciente de que vai ter mesmo de sair da casa onde vive, já começou a fazer
prospeção de mercado. “Os T2 que tenho visto passam os 900 euros e eu, pelo
menos para o meu filho, tenho que ter um quarto, mesmo que eu durma com a minha
mãe”, conta Carla, que tem 48 anos recebe um ordenado mínimo.
À frente de Carla, no 1.º direito, está Rosário, de 50 anos,
habitante do número 25 há sete e da Mouraria há 25. Costumava viver em frente,
num T1 com Carlos, seu marido, mas decidiram adotar Marlisa, agora com 7 anos,
e começaram um ambicioso plano de remodelação para receber a bebé. Alugaram o
andar abaixo do seu, do mesmo senhorio, e ligaram os dois. Os preparativos
afundaram a família em dívidas. Iam pedindo créditos para pagar outros e “às
tantas só pagavam juros”. O tribunal fez-lhes um plano de reestruturação da
dívida que pagam “religiosamente” todos os meses, mas depois disso e da renda
não sobra muito.
Marlisa irrompe da porta do prédio em direção à mãe. Diz que
esteve a ouvir a conversa da janela e começa a chorar, aos soluços, que não
quer sair daqui. Enumera uma data de amigas e amigos e sai a correr pela Rua
dos Lagares fora, à procura deles. “Agora vai ter com eles e esquece mas é só
até se voltar a lembrar”, diz Rosário. “Eu já não lhe posso dar propriamente
uma vida de luxos e agora ela pede-me para lhe prometer que ficaremos na única
casa que ela conhece e é só mais uma coisa que eu não posso assegurar”, diz.
Constância Lopes, do rés-do-chão esquerdo, ainda não sabe se
terá que sair porque lhe disseram que a lei não permite o desalojamento de
alguém com mais de 65 anos, só se ela deixasse de pagar a renda. É de facto
isto que diz a lei, mas ficar aqui sem nenhuma das pessoas que conhece “não
seria a mesma coisa”. No 2.º esquerdo vive a família Bernardino. Olinda vive
nesta casa há 60 anos, veio para aqui com 7. A mãe era a cabeleireira mais
requisitada do bairro e ela também o foi durante outros 40. Ainda tem tudo
montado, mas o salão já não funciona. Casou com Gentil Bernardino, de 68 anos,
e teve uma filha já com 42, Lara, que agora tem 23. Na casa dos Bernardino
ainda vive São, cunhada de Olinda, e Solange, filha de São. É uma casa
apertada, tetos baixos e colchas e renda por cima das camas, um sótão com
escadas de acesso totalmente na vertical, onde Lara dorme. “Eu não entendo
muito bem isto, porque isto é um bairro, não é o Chiado com monumentos e
igrejas e lojas famosas. Isto é um sítio residencial não faz sentido que isso
se perca para uma população sazonal que não vai fazer disto a sua casa”, diz
Lara que come rápido para ir trabalhar para a Baixa.
Olinda diz que não tem nada contra a habitação turística mas
que isso “não pode colocar as famílias em causa”. E o problema é que já nem há
comércio, e mesmo os turistas já notaram isso. “Não é só o problema da
habitação, o comércio tradicional também está a desaparecer. Os prédios já não
têm lojas por baixo, nós aqui até tínhamos uma loja que vendia galinhas e
coelhos, isso já foi há muito tempo mas até há pouco existia uma mercearia e
uma loja com os vegetais mais frescos de toda a Mouraria”, diz Olinda.
"Eu não entendo muito bem isto, porque isto é um
bairro, não é o Chiado com monumentos e igrejas e lojas famosas. Isto é um
sítio residencial não faz sentido que isso se perca um bairro para uma
população sazonal que não vai fazer disto a sua casa."
Lara Bernardino, lojista e moradora do número 25 da Rua dos
Lagares
Carla lembra um dia em que estava a estender a roupa e que
um turista francês lhe perguntou, improvisando ele o português e ela o francês,
onde estavam as varandas cheias de roupa que se viam nas fotografias de Lisboa.
“Pois, olhe, agora é só hotéis e esses têm lavandaria”, disse ela.
A família de Olinda vive com a pensão de Gentil, de 400
euros, tem duas jovens em casa, uma delas na Universidade, e é apenas o
ordenado dele e o de São, que trabalha numa livraria, que sustenta a casa. Um
T5, ou mesmo um T4 onde as duas jovens dividissem um quarto, na mesma área,
pode custar perto de 3.000 euros.
“Os pequenos empresários de alojamento local não são
sanguessugas”
O alojamento local foi a salvação de muitas famílias, cerca
de cinco mil, segundo a Associação do Alojamento Local de Portugal, que, nos
anos mais críticos da crise, conseguiram assim equilibrar as suas finanças. É o
caso de Sofia Santos, de 35 anos, que tem um apartamento arrendado perto do
Miradouro da Graça que deixou de pagar quando o escritório de arquitetos onde
trabalhava resolveu reduzir a equipa. Como não estava nos quadros, acabou por
sair, tal como mais dois outros empregados. “Era impossível pagar a renda
sozinha. Fiquei desempregada em 2015, pouco tempo depois de ter acordado com os
proprietários um aumento de renda de 600 para 750 euros pelo T2 que dividia com
o meu namorado. Era impossível apenas uma pessoa suportar aquela renda e se não
tivéssemos colocado o outro quarto a arrendar teríamos que nos mudar”, diz.
Mudar, contudo, não era opção, porque o namorado de Sofia
tem a mãe bastante doente, e precisa de estar perto dela. A solução passou por
alugarem um dos quartos da casa, com autorização do senhorio. Sofia entretanto
está a trabalhar. Reconhece as dificuldades de arrendar um apartamento, e que o
turismo está a tirar lugares a pessoas que queiram viver em Lisboa, mas foi
esse turismo que lhe permitiu manter a casa onde vivia.
Xana Libano, programadora cultural de 40 anos, começou por
sub-arrendar uma casa na Mouraria, de onde se mudou depois de ter um filho
porque a casa tinha acessos difíceis. Reparou que o senhorio tinha intenção de
rentabilizar a sua propriedade através do arrendamento turístico e propôs
geri-la, pagando uma renda e assinando um contrato com possibilidade de
arrendar a terceiros. Esse dinheiro extra possibilitou-lhe fazer uma pausa no
trabalho a tempo inteiro e investir na família. “Na altura foi este pequeno
negócio que me possibilitou dedicar-me ao meu filho, ter uma vida mais
sossegada e mesmo assim ser independente financeiramente“, diz Xana.
“Alguns proprietários percebem que há este potencial, mas
não querem ser eles a fazer a exploração do negócio e a arriscar com a
sazonalidade. É um negócio como outro qualquer, que envolve renovar e melhorar
os apartamentos e que acarreta custos”, acrescenta Xana, que considera que os
meios de comunicação social “diabolizam” o alojamento local mas que este modelo
de negócio ajuda muita gente que precisa de completar o seu rendimento e
dinamiza as zonas onde se insere. “Os pequenos empresários de alojamento local
não são umas sanguessugas oportunistas. Estão dispostos a pensar no melhor para
o território ou bairro onde intervêm. E não enriquecem com este negócio. É
apenas uma oportunidade de negócio que acaba por resultar quase sempre no
desenvolvimento do próprio bairro ou rua”, diz Xana.
Com a nova proposta de lei de dois deputados socialistas
para o alojamento local, que prevê que sejam os condóminos a decidir se um
determinado prédio pode ou não ter frações destinadas a alojamento, as opiniões
voltaram a dividir-se. O presidente da Associação Lisbonense de Proprietários
(ALP), Luís Menezes Leitão, diz ao Observador que “o projeto do PS é
precipitado e muito radical — as assembleias de condóminos têm a
responsabilidade de gerir espaços públicos, não de ditar o que cada
proprietário faz com o seu apartamento”.
Garantindo que a “grande maioria dos apartamentos em Lisboa
são alugados a longo prazo” e que apenas “cerca de 45 mil” são destinados ao
alojamento local, Luís Menezes Leitão rejeita que a culpa da escassez de casas
para arrendar seja deste modelo de alojamento. “As rendas estão a disparar
porque o mercado de arrendamento esteve congelado anos e anos e enquanto as
rendas não foram liberalizadas os senhorios preferiam sempre vender”.
"Lisboa tem experimentado uma renovação muito benéfica
que não teria acontecido se os senhorios estivessem a cobrar rendas muitas
pequenas. Só existe um interesse na reabilitação urbana porque o mercado
oferece vantagens para quem quer arrendar ou vender"
Luis Menezes Leitão, presidente da Associação Lisbonense de
Proprietários
“O arrendamento é um negócio de risco em Portugal, há gente
que simplesmente não paga as rendas e um processo de despejo pode demorar um
ano a ser concluído enquanto que, nesse espaço de tempo, o senhorio não tem
como reaver o seu imóvel.” Na opinião de Menezes Leitão, há bairros no centro
onde a escassez de oportunidades de arrendamento acessível “é uma realidade”,
mas, defende, no resto de Lisboa isso ainda não se verifica.
O presidente da ALP diz também que todo o investimento em
reabilitação que Lisboa tem experimentado é “muito benéfico” e que “não teria
acontecido se os senhorios estivessem a cobrar rendas muitas pequenas”. “Só
existe um interesse na reabilitação urbana porque o mercado oferece vantagens
em reabilitar para arrendar ou vender”, conclui. Está a comprar-se mais e isso
também reduz o número de frações disponíveis.
O retorno do acesso mais fácil ao crédito, as taxas de juro
em baixa e os spreads dos bancos um pouco mais contidos fizeram disparar os
créditos à habitação. Uma renda pode hoje ser equivalente ou até mais alta do
que uma prestação ao banco. O facto de Portugal estar a atrair cada vez mais
turistas, se bem que com incidência em focos geográficos específicos como
Lisboa, Porto, e Algarve, tem levado os portugueses a apostar em casas para
arrendar.
“Enquanto no arrendamento tradicional se consegue uma taxa
de rendimento da ordem dos 4% ao ano, no arrendamento turístico chega-se
facilmente a taxas de 10% ou até mais”, disse Miguel Poisson, presidente
executivo da ERA, ao semanário Expresso. Segundo a OCDE, Portugal é o país onde
o preço das casas mais desvalorizou desde o ano 2000 — cerca de 26%. Ou seja, a
atual valorização das casas, aliada ao potencial de rentabilizar o investimento
através do mercado de arrendamento, torna o mercado imobiliário nas grandes
cidades bastante atraente. Segundo o Global Property Fund Index, num universo
de 32 países analisados, Portugal está entre os países que geraram retornos
mais elevados em 2015.
De dois a dez mil apartamentos para alojamento local
Até quem trabalha no ramo imobiliário é apanhado
desprevenido quando tenta alugar uma casa. A diretora de uma imobiliária em
Lisboa aceitou contar ao Observador a sua própria experiência, tanto a pessoal
como aquela que adquiriu trabalhando na área, desde que o pudesse fazer sob
anonimato. Diz que “a mínima perceção” de que ela possa estar “contra os
proprietários” ou “preocupada com a situação do alojamento local” pode levá-la
a perder a confiança dos clientes.
Conta que “também sofreu na pele as mudanças bruscas no
mercado” e entendeu que “é uma situação que afetava cada vez mais pessoas”.
Desde 2009 que vivia no Saldanha, onde arrendou um último andar — tipo loft —
por 650 euros.
Na altura os amigos acharam “caríssimo”, mas como a casa era
o que pretendia e considerava o valor justo, avançou. “Após o primeiro ano de
contrato, a renda já tinha subido para 750 euros, mas mesmo assim a minha
senhoria não pareceu satisfeita. Disse-me que gostava de fazer a experiência de
arrendar a turistas e perceber quanto poderia ganhar”, diz. Em meados de 2014 a
senhoria disse que queria terminar o contrato porque precisava da casa, mas
mais tarde veio a colocá-la no Airbnb e recusou a proposta de aumento de renda
para 1.000€ por achar o arrendamento a turistas mais lucrativo e conveniente.
“Fiquei triste, porque tinha sido cumpridora, tinha cuidado
da casa, estava ali há vários anos e assim, de repente, estava sem a minha
casa”, conta a responsável, que considera que o arrendamento se tornou um
negócio “frio”, onde as pessoas “cada vez contam menos” e que, apesar dos
inúmeros benefícios trazidos pelo turismo e investimento estrangeiro, a cidade
parece ter perdido um pouco a noção de qual é a sua função principal: “Ter
pessoas a viver nela”.
Apesar de o Saldanha não ser uma zona tão turística como a
Baixa, já começa a sentir-se também a pressão. O preço médio de um quarto perto
das Avenidas Novas na plataforma de alojamento local ronda os 73 euros por dia.
Zona onde esta agente imobiliária chegou a arrendar um T2 por 1.500 euros,
antes de o mesmo apartamento ser alugado em janeiro de 2017 a um estrangeiro
por 3.000 euros por mês. Atualmente, são diversas as pessoas que a procuram com
histórias semelhantes. As circunstâncias não afetam apenas as rendas mais
baixas, a maioria dos clientes são de classe média com contratos de
arrendamento a terminar, na ordem dos 600 a 1.000 euros.
Quase todos já procuraram sozinhos e viram as suas
tentativas de arrendamento frustradas. Jovens médicos, advogados, consultores,
que sempre residiram no centro em casas arrendadas, por estarem numa fase
inicial de carreira, também estão a ter dificuldades. “Alguns tentaram ganhar
tempo, optaram por suportar uma renda mais elevada durante um ano enquanto
procuram a casa que irão comprar, não sentem confiança no mercado e em tomar
decisões sob pressão e sem aconselhamento”, acrescenta ainda.
Em 2009 existiam dois anúncios de casas disponíveis para
arrendar na plataforma Airbnb. Hoje são cerca de 1o mil frações disponíveis. A
própria empresa disponibiliza, mediante pagamento, vários gráficos sobre a
evolução da sua presença nas principais cidades do mundo. Este gráfico, feito a
partir de números da página AirDNA, mostra os números relativos a Lisboa.
Só em Lisboa, a Airbnb registou no ano passado 718 mil
hóspedes, que geraram uma faturação de 72 milhões de euros para os
proprietários dos imóveis. Segundo um inquérito da Airbnb, os hóspedes que
ficaram alojados em Lisboa gastaram ainda 404 milhões de euros, deixando um
impacto na economia da capital da ordem dos 476 milhões de euros.
Também Maria e Nuno Brazão, com 36 e 37 anos respetivamente,
e cujo agregado familiar dispõe de um rendimento cerca de um terço superior à
média registada em Portugal (cerca de 28.700 euros por ano segundo dados do
portal Pordata), estão a ter muita dificuldade em encontrar uma casa maior,
para expandirem a família. Atualmente vivem em Campo de Ourique. Ela é da área
de comunicação na MEO, ele diretor de projetos na PT e estão “está sempre à
espera que o senhorio se vá informar dos preços que se estão a praticar no
bairro” e lhes peça um aumento equivalente. Quando começou a reparar “nos
preços que se cobram por garagens em Campo de Ourique”, decidiu começar à
procura de alternativas.
A ideia, ao início, não era comprar — era só mudar para uma
casa maior, ficar no centro de Lisboa, mas os preços “são uma autêntica
loucura”. Maria admite que a família não tem as mesmas restrições orçamentais
que outras pessoas que também possam estar à procura de uma casa maior, mas
mesmo assim tudo o que viu para arrendar significaria “dar mais de metade do
rendimento para renda“, uma espécie de “linha vermelha” para a família, que
“prometeu a si mesma” que o dinheiro seria usado para lazer, viagens, cultura,
e outras experiências.
Maria admite que a família não tem as mesmas restrições
orçamentais que outras pessoas que também possam estar à procura de uma casa
maior, mas mesmo assim tudo o que viu para arrendar significaria "dar mais
de metade do rendimento para renda", uma espécie de "linha
vermelha" para a família, que "prometeu a si mesma" que o
dinheiro seria usado para lazer, viagens, cultura, e outras experiências.
Maria Brazão, profissional de comunicação empresarial da MEO
“Não há quase casas para arrendar porque quem tinha prédios
inteiros, aqui na zona, vendeu-os. E agora as únicas coisas disponíveis ou são
mesmo muito caras, de luxo, ou são, por exemplo, casas com áreas de T2 que se
anunciam como T3, mas que depois vamos ver e dois dos quartos são interiores,
como já nos aconteceu. Já não é certo que, mesmo as casas mais caras, tenham
aquelas condições que se esperavam desses preços”, conta Maria, que decidiu
começar a procurar casa para comprar na zona de Arroios ou Penha de França. “É
que entre arrendar um T3 por 1.500 euros ou pagar 700 por um empréstimo à
habitação, não restam muitas dúvidas”.
Último recurso: a “carta violino”
À porta da Associação dos Inquilinos Lisbonenses (AIL) está
uma senhora de braço dado com a filha, ambas abaladas pela conversa no gabinete
de um dos funcionários. Vive na zona do Intendente e que, de há um ano para cá,
conta, não tem tido sossego. Faz 65 anos em novembro e, porque as pessoas com
mais de 65 anos estão protegidas do aumento das rendas e da transferência de
contrato, a menos que isso seja acordado entre ambas as partes, acusa o
senhorio de ter feito tudo para a retirar de casa antes de completar essa data.
“Quer que eu saia porque tem que alugar a casa por mais dinheiro, porque os
valores do mercado estão muito mais altos e eu tenho medo porque ele telefona e
escreve cartas e depois volta a telefonar, e pressiona-me e isto é todos os
dias”, conta.
O secretário-geral da AIL está a olhar para ela e a abanar a
cabeça. “As pessoas não podem assinar coisas sem falarem connosco ou com um
advogado, porque depois ficam sem armas legais com as quais lutar”, diz António
Machado. O próximo, e último, passo, é agora a redação daquilo que por aqui já
se chama “a carta violino”, um apelo à compaixão dos senhorios, uma última
tentativa, mas sem força legal.
A associação que António Machado dirige está assoberbada de
pedidos de ajuda. Gente que pede ajuda para declarar carência financeira e
impedir o aumento da renda, outros que trazem as cartas dos senhorios a
informá-los de que os seus contratos não serão renovados, outros que receberam,
por baixo da porta, panfletos de alguma agência imobiliária a perguntar se o
proprietário quer vender o apartamento e acham que aquilo quer dizer que a casa
vai ser vendida. “O que se passa em Lisboa é uma subversão significativa do uso
dos prédios para habitação, que pressiona as pessoas nas zonas mais centrais de
Lisboa a saírem dos seus bairros e isso afeta particularmente os mais idosos e
os mais fragilizados”, diz António Machado no seu gabinete na sede da AIL.
"Se a Câmara reconhece que 70% das famílias não têm
acesso ao arrendamento nem ao crédito, que a oferta está a decrescer todos os
dias, então é uma obrigação de quem decide que haja oferta, porque eu não sou
contra a existência de propriedade, sou é contra as ameaças à coesão social e
ao abandono dos nossos bairros."
António Machado, secretário-geral da Associação de
Inquilinos Lisbonenses
Dos problemas passa logo para as suas propostas de solução,
que não divergem muito das que são defendidas pelas associações que têm surgido
nos últimos anos com a intenção de alertar para aquilo que consideram um
problema de falta de casas para arrendar.
Propõe, por exemplo, que se reservem pelo menos metade das
frações de um prédio para arrendamento de longa duração, que os impostos sobre
o alojamento local subam dos 13%, quando os que são cobrados aos senhorios que
arrendam fora desse modelo são de 28%, que se construa mais habitação e que a
Câmara seja chamada a intervir quando um prédio que está licenciado para habitação
passa a alojamento.
A lei que acaba com os limites mínimos dos contratos de
arrendamento, que neste momento são de “0 a 30 anos”, também são, segundo
António Machado, um problema. “A larga maioria dos contratos celebrados hoje em
dia em Lisboa tem a duração de um ano apenas, mas nem a esse mínimo o senhorio
está obrigado”. Quem tem que resolver estes problemas, na sua opinião, é a
Câmara Municipal, porque apesar de existir uma lei que permite que o alojamento
local seja considerado habitação, as coisas “têm que ser analisadas ao nível
local”.
“Se a Câmara reconhece que 70% das famílias não têm acesso
ao arrendamento nem ao crédito, que a oferta está a decrescer todos os dias,
então é uma obrigação de quem decide que haja oferta, porque eu não sou contra
a existência de propriedade, sou é contra as ameaças à coesão social e ao
abandono dos nossos bairros”, resume António Machado.
Fernando Medina, presidente da Câmara Municipal de Lisboa,
frisou isso mesmo quando anunciou a construção de entre cinco e sete mil novos
apartamentos com rendas abaixo dos valores do mercado. Por outro lado, a Ordem
dos Advogados nota que, apenas em 2016, foram despejadas quase 1800 famílias
através do Balcão Nacional do Arrendamento (BNA), que processa e oficializa os
pedidos de despejo por parte dos senhorios, por falha de pagamento de pelo
menos duas rendas.
O sociólogo Walter Rodrigues diz que “o arrendamento urbano
para fins turísticos tem vantagens claras para a economia da cidade e do país”,
mas concorda que faz falta “uma mais eficaz regulação desse setor para haver
equilíbrio e razoabilidade” — uma regra “válida para a economia em geral”,
porque “um mercado sem regras não é um mercado, é apenas um caos de que alguns
se aproveitam sem benefício de todos, isto é, do bem comum”.
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