“O património não é só uma marca para
pôr a render”
Filme do Monty Python Terry Gilliam
está a gerar polémica por causa das rodagens no Convento de Cristo, em Tomar,
que puseram uma pira de madeira com 12 metros de altura a arder num dos
claustros. Em causa, diz um antigo director, não está o que aconteceu, mas o
que podia ter acontecido.
JOANA AMARAL CARDOSO e LUCINDA CANELAS 6 de Junho de 2017,
7:50
Uma pira com 12 metros de altura a arder no meio de um
monumento que é património mundial causa, mais do que estranheza, preocupação.
Não pelos danos que causou, mas pelos que poderia ter vindo a causar,
independentemente da presença de peritos em efeitos especiais, bombeiros e
técnicos do património, independentemente da existência de um seguro destinado
a cobrir eventuais acidentes. “Não é porque caíram seis telhas e há algumas
pedras partidas que a situação é alarmante, é porque se fez uma enorme fogueira
num dos claustros, é porque se levaram dezenas de botijas de gás para dentro de
um conjunto que é único no mundo. Juntar fogo e botijas de gás no Convento de
Cristo? Nunca devia ter acontecido.”
É assim que Jorge Custódio, arqueólogo e historiador do
património que durante cinco anos (2002-2007) dirigiu o Convento de Cristo, em
Tomar, reage à recente polémica gerada em torno da rodagem do filme The Man Who
Killed Don Quixote naquele monumento que é património mundial desde 1983.
Entre 24 de Abril e 10 de Maio, a equipa que o Monty Python
Terry Gilliam dirige nesta co-produção que junta a espanhola Tornasol, a belga
Entre Chien et Loup, a francesa Kinology e a portuguesa Ukbar Filmes
instalou-se neste monumento, filmando em vários espaços, da icónica charola (o
oratório dos cavaleiros templários) à horta dos frades, passando por dois dos
sete claustros do conjunto – o do silêncio (o principal ou de D. João III, jóia
dos arquitectos João de Castilho e Diogo de Torralva) e da hospedaria.
Foi precisamente neste último que, noticiou na passada
sexta-feira o programa de informação da RTP Sexta às 9, foram detectados
estragos no monumento – telhas e pedras partidas – atribuíveis à rodagem, que
ali terá chegado a contar com uma equipa de cem pessoas.
Foi também na sexta-feira que terminaram as filmagens de The
Man Who Killed Don Quixote, projecto que persegue Terry Gilliam há quase 20
anos (foi assolado por problemas vários, dos financeiros aos meteorológicos, e
manteve-se inacabado até aqui) e que volta agora a estar na mira, desta vez dos
que criticam, e as palavras são de Jorge Custódio, a “excessiva mercantilização
do património”.
Quando se trata do Convento de Cristo, explica, a “pressão
para fazer receita” é ainda maior, porque o interesse que o monumento desperta
– com um valor artístico e arquitectónico que ultrapassa em muito a história de
Portugal – é também ele maior: “Este é um monumento de grande simbologia para a
história de Portugal e da Europa, muito complexo, porque documenta várias fases
da Igreja. É altamente identitário. Não há seguro que cubra um monumento
destruído e em cenário nenhum – em guião nenhum – o dinheiro deve ser mais
importante do que o monumento.”
Inquérito a caminho
Entre os danos causados pelas filmagens estão “quatro
fragmentos pétreos”, expressão usada tanto pela responsável da Direcção-Geral
do Património Cultural (DGPC), Paula Silva, como pela directora do convento,
Andreia Galvão, na resposta conjunta enviada à RTP, quanto pela Ukbar Filmes, a
produtora portuguesa. Há ainda seis telhas partidas, que esta empresa diz serem
“convencionais e de fabrico recente”.
“A responsabilidade é da produtora”, disseram Paula Silva e
Andreia Galvão na mesma resposta enviada à RTP, e o custo da reparação,
estipulado após vistorias técnicas do convento e da empresa CaCO3, Conservação
do Património Artístico, é de 3500 euros, diz ao PÚBLICO Pablo Iraola, da
Ukbar. Inclui a substituição das telhas e uma limpeza geral, além da
recuperação de danos como “um canto da base de uma coluna” com cerca de cinco
centímetros, diz o produtor, ou “o bordo de um degrau” junto a um dos
claustros.
A rodagem, devidamente autorizada pela DGPC, rendeu 172 mil
euros ao Estado. O acompanhamento de técnicos do convento foi constante, diz a
produtora portuguesa, e no claustro da hospedaria foi filmada uma cena em que
uma imagem de uma santa é queimada numa pira feita de velharias, “uma fogueira
inspirada por Las Fallas, em Valência”, explicava este fim-de-semana o
realizador na sua página de Facebook. Reagia assim à notícia e à polémica
subsequente, querendo pôr fim a “disparates ignorantes”.
BE quer ouvir ministro da Cultura sobre alegados estragos no
Convento de Cristo
BE quer ouvir ministro da Cultura sobre alegados estragos no
Convento de Cristo
O PÚBLICO procurou obter esclarecimentos junto da
directora-geral do Património, mas foi informado por uma assessora de que Paula
Silva não faria declarações. “O assunto está a ser avaliado internamente”,
disse a mesma assessora. A directora do monumento, Andreia Galvão, também adiou
para mais tarde quaisquer esclarecimentos.
No sábado, a DGPC fizera já saber que ia “abrir um inquérito
para apurar a veracidade” de “algumas situações e acontecimentos tornados
públicos” pelo programa da RTP que alegava também que haverá desvio de dinheiro
na bilheteira do convento, à semelhança do que acontecera no Mosteiro dos
Jerónimos e na Torre de Belém, objecto de uma investigação da Polícia
Judiciária em 2014.
Lógica mercantilista
Maria de Magalhães Ramalho, a arqueóloga que preside à
comissão portuguesa do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios
(ICOMOS-Portugal), diz que o que se passou na sequência da rodagem do filme de
Terry Gilliam no Convento de Cristo é o reflexo de uma estratégia que tem vindo
a comprometer a salvaguarda do património em Portugal e que tem olhado para
monumentos, museus e até cidades como “imagem de marca” e não como “valor
identitário que é preciso pôr acima de qualquer lógica mercantilista”.
A suborçamentação dos monumentos e museus tem empurrado
directores e outras chefias para a realização de diversas iniciativas que
muitas vezes põem em causa a própria integridade do património que o Estado é
chamado a proteger, defende Ramalho, pondo no “mesmo pacote preocupante” as
rodagens em Tomar e a recente exposição de veículos eléctricos no Museu
Nacional dos Coches. “É preciso dizer a quem decide que o património não é só
uma marca para pôr a render, para pôr a fazer dinheiro. É preciso acautelá-lo.
Não vale tudo. Isto é insustentável em termos de futuro.”
Esperando que a situação no convento tenha servido para
“reequacionar a rentabilização comercial” dos espaços de valor patrimonial ao
cuidado do Ministério da Cultura e das autarquias, a presidente do ICOMOS-Portugal
acrescenta: “Não sei como vai o senhor ministro explicar no Parlamento uma
situação que não tem explicação. Como é que se autoriza uma fogueira num
claustro do Convento de Cristo? Como é que se pode dizer que o que aconteceu
foi um acidente? Não podemos desculpar os responsáveis – se os directores não
têm condições para trabalhar com os orçamentos que recebem do ministério, têm
de se unir e exigir mais condições.”
O ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, vai estar
esta terça-feira na Comissão parlamentar de Cultura para falar da situação do
Côa – já objecto de um relatório em jeito de queixa da comissão nacional ao
ICOMOS internacional –, do estado da arqueologia náutica e subaquática e, por
força das circunstâncias, do Convento de Cristo.
Jorge Custódio não se opõe a filmagens e outras iniciativas
nos monumentos sob tutela da DGPC, mas diz que o cuidado que se deve pôr nas
autorizações não pode permitir situações como a de Tomar. “O que tivemos ali
foi uma autorização arbitrária, irreflectida ou mesmo irracional do monumento.
É preciso impor condicionantes que garantam a sua integridade, coisa que aqui
não aconteceu. Não se pensou o suficiente e, mesmo com a presença de alguns
bombeiros e técnicos do monumento quando se fez a tal pira, talvez haja até
incúria.”
O claustro da hospedaria – o nome advém de à volta dele se
organizarem os quartos onde ficavam os que pernoitavam no convento, quer fossem
representantes da Igreja e da corte, quer fossem peregrinos que se dirigiam à
Terra Santa ou a Santiago de Compostela – é um dos mais importantes do
conjunto, diz Jorge Custódio. Construído na primeira metade do século XVI (o
conjunto é edificado entre os séculos XII e XVII), é como um “livro de
arquitectura” e um “claustro para as relações externas”: “Ali ficava quem vinha
de fora. E é por isso que por ali passaram figuras muito importantes da nossa
história. A vida interna do convento passava pelo chamado 'claustro do
silêncio' e pelo dos corvos.”
Quando foi director do convento, recorda Custódio, foram ali
rodados três filmes, incluindo O Quinto Império, de Manoel de Oliveira, e foram
vários os pedidos de autorização que teve de indeferir: “Havia pedidos para uso
de fogo em grandes quantidades e nós dissemos não. Autorizei peças com um ou outro
archote, velas e lamparinas, mas mais nada. Nunca autorizei que se levassem
dezenas de bilhas de gás para dentro daquele convento.”
Para este arqueólogo e historiador, o que é preciso fazer
agora é apurar a verdade dos factos – “é fundamental encontrar os responsáveis
em todo este processo e, depois, responsabilizá-los efectivamente”.
Seguro de 2,5 milhões
E será que é possível saber que problemas tinha o claustro
da hospedaria antes da chegada de Terry Gilliam e da sua equipa?
Pablo Iraola remete para o Convento de Cristo o detalhe
sobre os danos pré-existentes no monumento e os resultantes das filmagens, mas
garante que foram sempre procuradas soluções que não afectassem o património.
“Nunca usámos uma coluna para suster um cabo”, exemplifica, “cada decoração foi
feita em paredes falsas, não há um furo”. Uma nota da Ukbar alega ainda que o
perito chamado ao local pelas entidades responsáveis considerou que “nenhum
destes danos foi causado por algum tipo de uso indevido ou excessivo”, mas sim
que “poderia ter acontecido a qualquer visitante”. O PÚBLICO tentou contactar a
CaCO3, empresa de conservação e restauro a que pertence este perito e que
trabalhou já em vários monumentos nacionais, como os palácios nacionais da
Ajuda e de Mafra, sem sucesso.
A produtora era obrigada a fazer um seguro de
responsabilidade civil no valor de 2,5 milhões de euros, mas nem sequer vai
accioná-lo, diz Pablo Iraola, que não sabe ainda quando começarão as
reparações. Já Terry Gilliam, via Facebook, é mais intempestivo: “Tudo o que
fizemos lá foi para proteger o edifício… E fomos bem sucedidos. Não se abateram
árvores, não se partiram pedras”, diz, elogiando “um dos mais gloriosos
edifícios” que já viu.
Na verdade, houve algumas pedras partidas e as árvores que
estavam no claustro desapareceram – mas segundo a produtora portuguesa o corte
das árvores “ocorreu durante a limpeza no final da rodagem, tendo os serviços
do convento de Tomar justificado a decisão com o facto de não se tratarem de
espécimes autóctones (foram plantados há alguns anos para a rodagem de outro
filme)”. “Tirámos uma árvore e podámos três; foi o convento que tirou as
podadas”, especifica Iraola, porque “estava no seu plano de manutenção” para o
claustro da hospedaria.
A cena da fogueira neste claustro é dada como exemplo de
eventos no convento que “podem incluir artes de pirotecnia em locais
considerados apropriados, desde que devidamente acompanhados por profissionais
credenciados, por bombeiros e protecção civil", indicavam Paula Silva e
Andreia Galvão na mesma resposta conjunta à RTP. Foi filmada por “uma equipa
experiente”, defende o produtor, a da empresa de efeitos especiais espanhola
Reyes Abades, que já montou uma falsa pira no mesmo Convento de Cristo para outro
filme e que trabalhou com fogo na catedral de Salamanca ou no Teatro Romano de
Mérida.
Segundo a produção, a pira de Tomar era composta por uma
estrutura de aço coberta de madeira tratada com materiais retardadores de fogo
e com 12 metros de altura. No local estavam elementos dos bombeiros e da
protecção civil.
Questionado pelo PÚBLICO sobre se o pedido de cedência do
espaço contemplava uma cena com pirotecnia, o produtor diz: “Não há dúvida de
que tinham conhecimento do que estávamos a fazer e não houve oposição.”
Acrescenta ainda não ter sido identificado “nenhum” dano relacionado com a cena
do sacrifício da santa, que terá durado cinco minutos, alimentados por cerca de
40 botijas de gás, e que a sua equipa estava alertada para os cuidados a ter
durante os muitos dias de estadia no convento. Em torno da cena estavam mais de
20 extintores e dois circuitos de água, adianta, por seu turno, a Reyes Abades.
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