O que é que falhou neste sábado?
Tudo, tal como falha há décadas
Só não se sabia onde o raio ia cair, mas
muitos avisaram que onde caísse seria uma desgraça. Ninguém esperava que
tomasse estas proporções, mas a ausência de aposta na floresta conduziu a este
barril de pólvora. Como já aconteceu antes e irá voltar a acontecer. Será que é
desta que tudo muda?
ANA FERNANDES, ALEXANDRA CAMPOS e NATÁLIA FARIA 18 de Junho
de 2017, 21:08
Não há rigorosamente nada de novo a dizer. Já tudo foi
estudado, explicado e escrito na última década e meia. Houve comissões para
todos os gostos e feitios. E foi feito muito trabalho sério. Faltou tudo o
resto. Faltou pôr a tratar de incêndios florestais quem percebe de floresta.
Faltou integrar prevenção e combate. Faltou ordenamento. Faltou pensar no longo
prazo. E adiou-se o mesmo de sempre: fazer da floresta uma prioridade, fazer de
um terço do território nacional uma prioridade.
Houve, ninguém nega, uma conjugação extraordinária de
factores adversos, como já tinha acontecido em 2003: ao ar seco e temperaturas
altas juntaram-se as trovoadas secas e o vento forte numa tragédia de dimensões
inéditas no país que provocou pelo menos 61 mortos e 62 feridos, alguns em
estado grave, no concelho de Pedrógão Grande. Estes, por sua vez, podem ter
provocado a queda de linhas de alta tensão, gerando mais focos de ignição,
acrescenta Paulo Fernandes, investigador da Universidade de Trás-os-Montes e
Alto Douro. Mas isto aconteceu em vários pontos do território — “houve uma
quantidade anormal de fogos no Alentejo”, adianta o investigador — sem as
mesmas consequências. Qual foi a diferença? O tremendo barril de pólvora que é
o Pinhal Interior (que já é uma mistura de duas monoculturas: pinheiros e
eucaliptos). Que se junta a muitos outros país fora. E é neste ponto que
Portugal insiste em falhar.
“Todos pensam que quem percebe de cozinha são os gordos e
não os cozinheiros. Com os incêndios florestais passa-se o mesmo”, resume
Henrique Pereira dos Santos, arquitecto paisagista. Nesta guerra — pois não há
outro nome a dar, uma guerra em que Portugal se envolve ano após ano e perde
sempre —, o conhecimento florestal é o soldado raso no teatro de operações.
A estratégia em vigor, depois de anos de avanços e ainda
mais recuos, assenta em três pilares — os três pilares rachados, como lhes
chama Paulo Fernandes: a vigilância e detecção, entregue à GNR; a prevenção, da
responsabilidade do Instituto da Conservação da Natureza; e o combate, feito
pela Autoridade Nacional de Protecção Civil. Cada vez que alguma coisa corre
mal, um dos pilares atira as culpas para o outro. Pelo caminho fica a
coordenação desta gente toda, aponta o engenheiro florestal.
“Não há qualquer
integração entre combate e prevenção, tem de se criar um corpo profissional,
que esteja permanentemente envolvido na prevenção e no combate”, defende
Henrique Pereira dos Santos. Só assim, aqueles que no Inverno abriram caminhos,
aceiros e desmataram conheceriam o terreno para no Verão enfrentar as chamas,
sabendo quais os locais onde estas poderiam ser melhor combatidas e o fogo
estancar. Assim como teriam conhecimentos suficientes para saber por onde o
incêndio tenderia a evoluir, antecipando-o, em vez de passar a vida a correr
atrás dele, como agora acontece.
Foi esta mesma estrutura que aqueles que mais sabem de
floresta em Portugal propuseram há dez anos, entre muitas outras medidas que
poderiam ter começado a permitir que o país se preparasse para finalmente
começar a vencer algumas batalhas. Por ser “demasiado ambiciosa”, esta proposta
de um Plano de Defesa da Floresta contra Incêndios (PNDFCI) foi reduzida à sua
ínfima expressão e a prioridade foi para os do costume: o combate. Uma decisão
que Ascenso Simões, que na altura era secretário de Estado no Ministério da
Administração Interna liderado por António Costa, actual primeiro-ministro,
assumiu no rescaldo dos incêndios do ano passado como um “erro grave”.
Ou seja, o conhecimento técnico tem sido paulatinamente
destruído — ou ignorado — em Portugal. Os serviços florestais são uma pálida
imagem do que foram, os guardas florestais foram integrados na GNR e os
conselhos dos silvicultores são esquecidos assim que o Outono ameniza o clima.
Avisos com 50 anos
Não foi apenas após os terríveis incêndios de 2003 e 2005
que se descobriu que Portugal era particularmente vulnerável aos incêndios, não
só pelo seu clima mediterrânico como devido às alterações climáticas. Os avisos
começaram em 1965, quando os engenheiros florestais Moreira da Silva, Vasco
Quintanilha e Ernâni José da Silva elaboraram o relatório Princípios Básicos de
Luta contra Incêndios na Floresta Particular Portuguesa, onde constava tudo o
que agora se discute como se fosse novidade: o diagnóstico — as monoculturas e
desertificação rural conduziram ao desastre — e a solução — a redefinição da
gestão florestal privada no minifúndio através da criação de polígonos
florestais com dimensão para potenciar a sua correcta gestão (as actuais Zonas
de Intervenção Florestal), a importância do planeamento florestal e a adopção
de sistemas de prevenção e combate assentes na profissionalização dos seus
agentes.
São pelo menos 50 anos a dizer o mesmo para orelhas moucas.
“Estamos sempre focados no imediato, não se equilibra o orçamento entre a
prevenção e o combate, não se pensa na gestão do território, continuamos
focados na protecção civil quando este é um problema de geografia física e
humana já com um século e meio e que demorará décadas a resolver”, diz José
Miguel Cardoso Pereira, do Instituto Superior de Agronomia e que liderou a
equipa que propôs o tal PNDFCI “demasiado ambicioso”.
E agora, por onde (re)começamos? “Pelo interface entre os
espaços rurais e urbanos, reduzindo a carga de vegetação e, por consequência, o
risco, libertando assim meios” que, em vez de estarem a defender as casas,
deixando as chamas correrem livres nos matos e florestas, estão concentrados na
luta contra o incêndio, acrescenta Cardoso Pereira. E, claro, “criar uma
estrutura integrada mais especializada em meio florestal”.
No mesmo sentido vai Luciano Lourenço, director do núcleo de
investigação de incêndios florestais da Universidade de Coimbra, que lamenta
que muitas das medidas de prevenção que foram previstas no PNDFCI nunca tenham
saído do papel. “Há anos que se fala na necessidade de criar faixas de
segurança em torno das habitações e das unidades industriais. Bastava que essa
medida tivesse sido implementada para que se tivessem evitado algumas destas
mortes”, aponta. Para o investigador, além de poupar vidas, estas faixas de segurança
fariam com que “deixasse de ser prioritário colocar os bombeiros nas aldeias —
porque elas estariam protegidas —, permitindo que se concentrassem no combate
ao incêndio”.
Todo o sistema de prevenção e combate a incêndios precisa de
ser reformado, reforça Paulo Fernandes. “Esta originalidade portuguesa de ter
fases Alfa e Charlie não faz sentido hoje. Um sistema moderno não pode estar
dependente do calendário, tem de ter flexibilidade para responder sempre que
necessário, até por causa das alterações climáticas.”
Numa altura em que o Dispositivo Especial de Combate aos
Incêndios Florestais para 2017 está ainda na fase Bravo, e sendo que a fase
Charlie, que vai ter os meios de combate na sua capacidade máxima, começa só no
dia 1 de Julho, o investigador Xavier Viegas concorda com a necessidade de uma
maior flexibilidade do dispositivo. “O problema é que essa flexibilidade não é
nada fácil e levaria à introdução de cláusulas nos contratos que seriam
impeditivas do ponto de vista económico ou prático”, ressalva, porém, o
professor na Universidade de Coimbra, com anos de investigação na área dos
incêndios florestais.
Portanto, o caminho mais seguro e com mais resultados
continua a ser o da prevenção. Como? “É preciso pegar nas pessoas válidas que
vivem nestes meios rurais e dar-lhes capacidade de se organizarem e de se
auto-protegerem num cenário de incêndio, evitando assim que fiquem à margem do
processo como hoje em dia”, sugere Xavier Viegas, para defender que cada núcleo
habitacional deste tipo deveria, por outro lado, ter “espaços de refúgio
seguros para onde as pessoas pudessem encaminhar-se sem terem que se fazer à
estrada para fugir ao fogo”.
Por outro lado, o Fundo Florestal Permanente deveria ser
totalmente canalizado para as associações de produtores, que asseguram que a
floresta é gerida, defende Américo Mendes, professor na Universidade do Minho e
presidente da Associação Florestal do Vale do Sousa. Para envolver cada vez
mais os proprietários, haveria também de aumentar o interesse económico de uma
floresta diversa, que deixasse de estar refém das monoculturas que lhe dão um
rendimento rápido: o pagamento dos serviços prestados ao ecossistema.
Tudo, mas mesmo tudo isto e muito mais, já foi dito e
repetido. Por isso, Paulo Fernandes pede que se retirem ilações desta tragédia.
“Acho inconcebível que responsáveis do Governo e até o Presidente da República
comecem logo a declarar à queima-roupa que tudo correu muito bem” porque isto,
acredita, contribui para “a desresponsabilização”.
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