O estranho caso da falta de vagas e
das “moradas falsas” na Filipa de Lencastre
POR O CORVO • 8 JUNHO, 2017 •
A posição cimeira no ranking nacional das escolas
secundárias públicas torna a Filipa de Lencastre extremamente cobiçada. A ponto
de o número de vagas se revelar sempre insuficiente, apesar de a área do
agrupamento escolar ser das mais pequenas de Lisboa. Os moradores da zona
queixam-se que não conseguem inscrever os filhos, devido à sistemática
“falsificação de moradas” por parte de outros progenitores. Existirão turmas em
que dois terços dos encarregados de educação não são pais das crianças. Um
problema que atinge ainda o pré-escolar e o ensino básico e para qual
contribuirá também a forma como está desenhado o mapa do agrupamento. Há duas
petições a pedir medidas urgentes. A directora da escola nega, contudo, que
haja “moradas falsas” e garante cumprir a lei “rigorosamente”.
Texto: Samuel Alemão
Em meados de Abril
passado, enquanto tentava inscrever os dois filhos no próximo ano lectivo, um
no pré-escolar e outro no primeiro ano do ensino básico, na secretaria do
Agrupamento de Escolas Dona Filipa de Lencastre, Ana Sardoeira apercebeu-se de
que algo não batia certo. A residente no Bairro do Arco do Cego, onde o
estabelecimento se localiza, ouviu diversos pais de candidatos a alunos naquele
agrupamento desconfiou que muitos não seriam daquela área. Diziam coisas e
faziam perguntas estranhas às funcionárias que o deixavam denotar.
“Lembro-me, por
exemplo, de que, a certa altura, uma mãe disse ‘demorei seis meses a conseguir
a documentação, com os comprovativos de residência, não me diga que agora não a
consigo entregar’. Ora, quem vive na zona, não precisa de tanto tempo para
obter tais documentos”, recorda. Nessa altura, ficou também a saber que os seus
filhos teriam poucas possibilidades de ali ficarem, por falta de vagas. A
partir desse momento, e juntando as suspeitas já acumuladas sobre o assunto em
conversas com outras pessoas, decidiu que era altura de fazer algo para o que
considera ser uma epidemia. Estava lançada a petição “Chega de moradas
falsas!”, dirigida à Assembleia da República.
Nesta, pede-se, antes de mais, que “para os critérios de
prioridade nas matrículas, passe a ser considerada em primeiro lugar a morada
da criança, e só depois a morada do encarregado de educação”. E, logo de
seguida, exige-se que “como comprovativo de morada da criança seja utilizada a
morada fiscal que consta do Cartão de Cidadão”. Uma exigência que dá eco às
preocupações presentes de muitos pais, não só daquela zona da cidade, como do
resto do país. Em paralelo a essa recolha de assinaturas, que tem um âmbito
nacional, uma outra está a decorrer, centrada no estabelecimento de ensino que,
em 2016, foi o mais bem classificado no ranking das escolas secundárias
públicas. A petição “O FILIPA É DE TODOS: Os nossos filhos também têm direito a
estudar no Filipa de Lencastre”, lançada poucos dias antes, além denunciar o
problema das alegadas moradas falsas, pede também a revisão da Carta Educativa
de Lisboa, dependente da Câmara Municipal de Lisboa.
Parece mero pormenor,
mas o mapa de distribuição dos alunos pelas escolas revela-se determinante na
hora das matrículas. A reduzida abrangência geográfica do agrupamento Filipa de
Lencastre – apenas a escola secundária com ensino básico Filipa de Lencastre e
a EB1 nº 154 -, conjugada com a utilização do expediente de dar moradas
falsificadas por muita gente de fora que ali quer ver os filhos a estudar, fará
com que muitos moradores sejam prejudicados. Como consequência, a maioria dos
alunos não serão, efectivamente, residentes na área do agrupamento. “Percebo
que toda a gente queira o melhor para os filhos, mas não podem fazer com que
uma escola pública funcione como uma espécie de colégio privado”, diz a O Corvo
Joana Amores, promotora da petição reclamando o direito de acesso ao Filipe de
Lencastre pelas crianças residentes nas imediações.
A moradora junto à
Praça de Londres, cujos filhos são os primeiros numa linhagem de cinco gerações
da mesma família a viverem no mesmo prédio e a não poderem estudar no cobiçado
liceu, reclama a revisão urgente da Carta Educativa de Lisboa, desenhada em
2008 pela Câmara Municipal de Lisboa. O documento, integrante do Plano Director
Municipal (PDM), estabelece as fronteiras das áreas de abrangência de cada
agrupamento escolar e resulta da adaptação dos dados demográficos do Censos
2001 articulada com projecções de demanda educativa para o ano em que foi
elaborada. De acordo com as mesmas, seriam necessárias para aquela área apenas
19 turmas, do pré-escolar ao secundário, o que contrastaria com as 52
existentes. Ou seja, um excedente de 33 turmas.
A carta educativa
desenhada nesse ano apenas apresentava previsões de carência de duas turmas no
pré-escolar e de duas no segundo ciclo do ensino básico. Já o terceiro ciclo do
básico e o secundário deveriam, de acordo com o mesmo documento, apresentar
para cada ciclo de ensino um excedente de oferta de 14 turmas. Mas o texto que
acompanhava essas previsões assinalava que, “no entanto, e tal como para outros
agrupamentos anteriores deste Grupo Centro, este balanço não reflectirá a procura
efectiva nas escolas deste agrupamento, provavelmente decorrente da proximidade
aos locais de trabalho dos pais”.
A hipótese levantada
pelo documento oficial toca, afinal, num dos aspectos mais falados pelos pais
que residem na área do agrupamento e não encontram lugar para os filhos estudar
perto de casa. Muitos garantem que uma grande parte das vagas é ocupada por
alunos cujos progenitores são funcionários de grandes instituições situadas nas
imediações: Ministério do Trabalho e Segurança Social, Instituto Nacional de
Estatística, Caixa Geral de Depósitos e Instituto Superior Técnico. Serão esses
mesmos os responsáveis por um processo maciço de contrafacção de moradas.
“Parece que vale tudo. Qual a educação que querem dar aos filhos, quando eles
mesmos participam num processo fraudulento?”, questiona Ana Sardoeira, notando
que, apesar da dificuldade em inscrever o seu filho, a cobiçada escola tem
alunos das mais diversas proveniências: Benfica, Telheiras, Cascais ou Loures.
Entre os pais revoltados com a situação, circulam relatos
dos diversos estratagemas utilizados por alguns dos outros pais para conseguir
passar à frente dos demais. Desde um que deu a morada do Hotel Holiday Inn,
situado nas imediações, até um outro que, a troco de um trabalho de manutenção
numa casa situada na área do agrupamento, terá conseguido permissão do senhorio
para instalar uma torneira no quintal dessa morada com o respectivo contrato da
água em seu nome. Tal coincide com a informação de que há pessoas a vender a sua
morada, mas também a existência de turmas em que, alegadamente, dois terços dos encarregados de educação não
serão pais das crianças.
Por causa disso, a
petição “Chega de moradas falsas!” pede ainda que o encarregado de educação
“seja também quem exerce o poder parental ou, em situações excepcionais
devidamente fundamentadas e validadas pela escola, a pessoa a quem foram
delegadas essas competências”, sendo que “a fundamentação terá de esclarecer
qual a relação de parentesco com a criança, e por que motivo é o encarregado de
educação”. E sugere que “não seja possível alterar o encarregado de educação
durante o ano lectivo, salvo por motivos de força maior comprovados”, como
morte, doença, alteração do poder parental ou outros casos semelhantes. “Acho
que estas situações deveriam ser fiscalizadas de forma mais eficaz, até porque
as pessoas assinam um termo de honra, quando fazem das matrículas”, nota Ana
Sardoeira.
Já Joana Amores,
promotora da petição “O FILIPA É DE TODOS”, prefere enfatizar a premência da
revisão da carta educativa da capital “para que, pelo menos estas situações de
discrepância entre o que ela impõe e as necessidades da população residente não
se verifiquem de forma tão gritante”. Uma situação agravada pela desadequação
desse documento com a nova realidade administrativa da cidade, com a criação de
novas freguesias em 2012. “Esta área da cidade, que é muito central, está em
grande renovação, há cada vez mais casais novos com filhos, mas constata-se que
não há escolas”, afirma, lamentando que a falta de oferta pública obriga muitos
pais a inscreverem os filhos no privado.
Apesar de eleger a
revisão da carta educativa como prioridade, a recolha de assinaturas por si
promovida não deixa, contudo, de propor “que se resolva o problema das moradas
falsas em que a utilização abusiva de moradas leva ao cúmulo de haver pais que
atribuem a responsabilidade de encarregados de educação a terceiros que não têm
ligações familiares com as crianças”. Foi isso mesmo que, na semana passada,
foi dizer à comissão de educação da Assembleia Municipal de Lisboa (AML) – onde
a presidente do órgão, Helena Roseta, admitiu a discussão do assunto, por
reconhecer a sua relevância social, apesar fazer notar que se trata de uma
“matéria da competência do governo”.
A directora do
Agrupamento de Escolas Dona Filipa de Lencastre, Laura de Medeiros, que será
ouvida pela mesma comissão na tarde desta quinta-feira (8 de Junho), garante a
O Corvo que o seu estabelecimento “cumpre rigorosamente a lei” e que “não há
moradas falsas”. Ideias que fez questão de frisar. “Tenho o maior respeito por
actos de cidadania como estes. O direito à indignação é legítimo”, diz,
referindo-se às duas petições, “mas a mesma tem de ser fundamentada, para não
pôr em causa o bom-nome das instituições”. Garantindo que a escola tem todos os
cuidados em pedir os comprovativos de morada que acompanham os pedidos de
inscrição dos alunos – assegurando-se de que os encarregados de educação vivem
efectivamente na área do agrupamento -, a responsável admite, todavia, que não
é possível controlar as “delegações de competências” dos encarregados de
educação.
Ou seja, se alguém se
apresenta como encarregado de educação de uma criança e tem um comprovativo de
residência da área, não haverá razões para duvidar dessa pessoa. Ainda assim, a
directora da escola prefere salientar que o critério de residência “não é o
mais importante, de acordo com a lei”. “O factor que está em primeiro lugar é o
de o candidato ser uma criança com necessidades educativas especiais”, afirma,
antes de lembrar que “os únicos alunos que entram equiparados a residentes são
os do ensino articulado”, o qual prevê um currículo misto, conjugando as
vertentes do ensino artístico com as restantes componentes do ensino regular.
“Cumprimos sempre o quadro legal. Quando temos dúvidas, perguntamos à tutela”,
afirma Laura de Medeiros, acrescentando que não compete à direcção da escola
comentar os limites e o desenho do mapa do agrupamento. “Não é uma decisão
nossa”, afirma.
Mas, então, os pais
que agora se queixam, moradores na vizinhança da Filipa de Lencastre, não têm
razão? “É claro que custa termos de dizer não aos pais, por não haver vaga. Mas
estes critérios são aplicados a todos. Aqui não se fazem favores, cumprimos a
lei”, frisa a directora do agrupamento, lembrando que “não existe a figura
legal da lista de espera” para a inscrição nas escolas públicas.
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