Como passámos a ter estradas onde
corremos o risco de ser incinerados
JORGE PAIVA
20 de Junho de 2017, 12:29
Não me vou alongar demasiado com a história do desastre da
cobertura florestal deste desgraçado país, pois está explicitada no artigo
"Os incêndios e a desertificação de Portugal florestal", publicado no
PÚBLICO, há cerca de dez anos. Apesar de andar a alertar para as causas dos
piroverões anuais que acontecem há cerca de quatro dezenas de anos e como se
pode resolver o problema, os governos sucessivos que temos tido, não só nada
fizeram, como também têm sido colaboracionistas na florestação mono-específica,
contínua e contígua, sem o mínimo de ordenamento e regras.
Sabemos que antes da última glaciação (Würm) a laurisilva
[floresta (silva, em latim) sempreverde, com predominância de árvores da
família dos loureiros (laurus, em latim)] era a floresta que tínhamos no país.
Durante o período glaciar, esta floresta praticamente desapareceu em Portugal
Continental (existem apenas algumas espécies reliquiais), teve uma cobertura
florestal semelhante à actual taiga que circunda a parte continental norte do globo
terrestre, em torno do círculo polar árctico. São disso testemunho as relíquias
do pinheiro-de-casquinha (Pinus sylvestris) que ainda se encontram em algumas
das zonas montanhosas mais frias do Gerês. Finda essa glaciação, isto é, após o
início do período actual, o Holoceno (Antropogénico), com o desaparecimento da
laurisilva e da taiga, o respectivo nicho ecológico continental foi ocupado por
uma nova floresta na qual predominam árvores da família das Fagáceas
(Fagaceae), como carvalhos, a faia e o castanheiro. Designo por fagosilva este
tipo de floresta, em consonância com a referida laurisilva. Quando o homem
inicia o cultivo de cereais e a domesticação de animais, há cerca de 8-7 mil
anos, inicia-se a degradação da fagosilva. Os Descobrimentos e respectiva
Expansão provocaram uma tremenda devastação da fagosilva, completada, mais
tarde, com a construção da rede de caminho-de-ferro, cujas travessas das vias
férreas eram de madeira de carvalho.
Assim, as montanhas, particularmente as da região entre o Douro
e o Tejo, foram praticamente desarborizadas. Com as montanhas desarborizadas, a
população passou a viver do pastoreio. A pastorícia intensiva também teve
grande impacto na destruição da flora portuguesa. Os fogos e a prática das
queimadas nas regiões agrícolas e também nas regiões de pastoreio contribuíram
e continuam a contribuir para a desertificação das nossas montanhas. A partir
de certa altura, essas áreas de mato foram rearborizadas com o pinheiro bravo
(Pinus pinaster). Particularmente depois da criação dos Serviços Florestais e
da política de arborização do Estado Novo, Portugal passou a ter a maior área
de pinhal contínuo da Europa.
As nossas montanhas transformaram-se então num imenso
pinhal, outrora cobertas fundamentalmente por carvalhais caducifólios.
O povo que vivera da floresta primitiva (caça, bolota,
castanha, etc.), após a destruição desta, passou a viver dos matos
(pastorícia), passando, seguidamente, a viver do pinhal, que lhe dava madeira,
lenha, resina, plantas para “cama” para o gado, depois adubo para os campos de
cultivo e muitos objectos manufacturados artesanalmente, como colheres, garfos
e até facas.
A partir de meados do século passado (XX), muitos pinhais
foram substituídos por eucaliptais e eucaliptaram-se muitíssimas outras áreas.
Os eucaliptos interessam mais às celuloses por serem árvores de crescimento
mais rápido do que os pinheiros. Nas últimas décadas incrementaram-se tão
desenfreadamente as plantações de eucaliptos que se criou em Portugal a maior
área de eucaliptal contínuo da Europa.
Com as montanhas ocupadas por eucaliptais, deu-se o êxodo
rural pois, como os eucaliptos são cortados periodicamente de dez em dez anos,
o povo não fica dez anos a olhar para as árvores em crescimento sem ter mais
nada que fazer. Assim, o povo, além do abandono rural a que foi “forçado”,
ficou ainda numa dependência económica monopolista, um risco para o qual não é,
nem nunca foi, alertado. Desta maneira, as nossas montanhas passaram a estar
cobertas por florestas mono-específicas, com árvores altamente inflamáveis (o
pinheiro por ser resinoso e o eucalipto por ter produtos químicos aromáticos,
arremessando ramada inflamada à distância, por esses produtos serem voláteis e
explosivos). Por isso, designo este tipo de floresta por ignisliva (do latim
ignis=fogo e silva=floresta), ou melhor, por sugestão da Prof. Maria de Fátima
Silva, hilépiros (do grego hyle=floresta e pyr=fogo) ou xilópiros (do grego
xylon=madeira e pyr=fogo). Como estamos habituados ao termo laurisilva, talvez
seja melhor adoptar ignisliva para a floresta que agora temos. Mas, como há
muito designo por piroverões os Verões que temos tido há umas décadas, talvez
prefira o termo xilópiros, pois temos estado a plantar floresta para termos
madeira para arder.
Quando a floresta era de pinhal continuo, os Serviços
Florestais controlavam-na e não tínhamos Verões com tantos incêndios, nem tão
devastadores. A partir da década de 80 do século passado, governos sucessivos
resolveram não só acabar com os Serviços Florestais, como também delapidaram
toda a técnica (material e humana) existente, assim como todo o património
construído (as designadas Casas dos Guardas Florestais). Por outro lado, como
já foi referido, deu-se a desumanização do meio rural, além do abandono a que
foram votadas as montanhas pela diminuição de técnicos florestais. Sem
profissionais florestais habilitados (engenheiros florestais e silvicultores,
técnicos e guardas florestais), não só se pinheirou e eucaliptou sem regras,
criando-se áreas contínuas e contíguas da dita floresta ígnea.
Passámos então a ter Verões com incêndios devastadores (os
tais piroverões) e risco de transitar em determinadas estradas, ladeadas desse
tipo floresta durante muitos quilómetros sucessivos. Há concelhos
perigosíssimos, como aqueles aonde agora aconteceu a última desgraça. Assim,
quando amigos meus estrangeiros querem visitar Portugal viajando de automóvel,
indico-lhes os concelhos por onde não devem transitar (neste devastador
incêndio morreu um francês). É só irem ao Google e verem como estão muitas estradas
(nacionais e municipais) para se capacitarem de que não só não estou a mentir,
como também para se acautelarem. Actualmente, em Portugal, corre-se o risco de
ser incinerado numa estrada.
Na minha opinião, enquanto não efectuarem o ordenamento do
território, não criarem novamente Serviços Florestais e os apetrecharem
tecnicamente e com profissionais habilitados, nunca vamos deixar de ter
piroverões. Não é com voluntários que o problema se resolve, mas com
profissionais e no terreno TODO O ANO. Podem dizer-me que os Serviços
Florestais eram uma estrutura muito “pesada” (onerosa) e que exigia muito
pessoal habilitado. Mas, conheço muita estrutura política “pesadíssima” e com
pessoal a mais, mas a que nenhum governo conseguiu pôr fim a tal despesismo
DESNECESSÁRIO. Bastam alguns exemplos. A Madeira tem uma superfície de 741 km2
e tem 11 câmaras. O Algarve tem uma superfície de 4.997 km2 (mais do que seis
vezes a da Madeira) e 16 Câmaras. Portanto, a Madeira deveria ter apenas duas
câmaras (seria uma diminuição brutal de pessoal e estruturas). Ainda por cima
tem uma Assembleia Legislativa com 47 deputados. A Região Autónoma da Madeira é
“pesadíssima” comparada com os Serviços Florestais. Temos imensas freguesias
com menos de 5000 habitantes. Que desperdício em pessoal político e
burocrático. E argumenta-se que os Serviços Florestais - a única estrutura
profissionalizada e habilitada para gerir a floresta e evitar incêndios - teve
que ser suprimida por ser muito “pesada”!!!...
É melhor ficarmos por aqui, pois eu, como português que me
honro de ser, tenho VERGONHA de viver num país que importa madeira de carvalho
para mobiliário, por não replantar a floresta nativa.
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