Há uma vila no Beato que vai ser
recuperada por privados mas as rendas mantêm-se
Privados vão investir cinco milhões
de euros na reabilitação da Vila Dias, em Lisboa. E fica uma promessa: as
rendas mantêm-se e os novos contratos, a pensar em estudantes, não vão além dos
300 euros por casa. "Investir neste projecto é mais seguro do que ter o
dinheiro no banco", dizem.
MARGARIDA DAVID CARDOSO 31 de Maio de 2017, 8:50
A Vila Dias já tinha perdido a conta aos senhorios. Ora era
um procurador, ora era outro. Ora pagavam a renda em mãos, ora faziam depósito
no banco. Lucinda (que pede para deixar o apelido fora da conversa) mora
naquela vila do Beato, em Lisboa, há mais de 50 anos e nunca viu a cara de quem
paga ao final do mês. “Nem vi os novos nem os velhos”.
Os novos senhorios fizeram-se anunciar na semana passada.
Através de uma carta, Lucinda ficou a saber que a vila vai ser reabilitada: uma
sociedade privada tem, desde Abril, a posse dos terrenos e destinou cinco
milhões de euros para a reabilitação das 160 casas da centenária vila operária.
Vão ser pintadas de branco, substituídos os telhados, cuidadas por dentro e por
fora.
Dos promotores da obra, há uma promessa: “Jamais vamos
destruir seja o que for”. José Morais Rocha, à frente da Sociedade Vila Dias
(SVD), diz que o objectivo é “tornar a vila num espaço agradável de convivência
entre jovens e os mais velhos”. Não espera tirar dali lucro imediato. “Não
queremos explorar as pessoas. Sabemos as condições económicas em que vivem e
vamos respeitar isso”, garantiu o engenheiro ao PÚBLICO. Os valores das rendas
já existentes vão ser mantidos e os novos contratos vão ser feitos à luz
daquilo que são os preços praticados pelo programa de Renda Acessível da Câmara
de Lisboa, até 300 euros por habitação.
Os promotores – entre os quais Paula Castro Alves, familiar
dos antigos proprietários – estimam que, das 160 casas da vila, 40 estão
devolutas. São estas últimas que vão receber novos inquilinos e novos
contratos. A sociedade quer atrair jovens, com casas e preços “à medida do
estudantes”.
Mas na óptica dos moradores os números não são tão
optimistas. No Café Ângelo, na esquina de acesso à vila, diz-se que já se
perdeu a conta ao número de portas arrombadas, de casas tomadas ilegalmente.
“Ainda anteontem foi mais uma. Isto não se vê em mais lado nenhum”, está
Catarina a comentar, “são despejados de um lado, ocupam o outro”. Diz-se que os
antigos senhorios só recebiam 65 rendas.
Catarina pede para ser identificada por este nome fictício –
sabe que o ambiente entre moradores já viu melhores dias. As discussões e os
insultos tornaram-se frequentes. De um lado quem cumpre, do outro quem escapa
ao pagamento da renda. Não é só a ocupação que a preocupa: “São os cães
abandonados nas traseiras, o barulho, o lixo. E chamar a polícia é a mesma
coisa que não fazer nada”.
Pensar que Maria Fernanda Neves costumava deixar a chave de
casa na porta, dia e noite, faz todas as vizinhas rirem. “Antes isto era uma
família. Agora só há dois ou três que se entendem”, diz. Vive ali há 56 anos.
Viu as ocupações intensificarem-se há 20. “Todo o mundo manda, mas ninguém
paga”. Quantas vezes já pensou fazer o mesmo. Sente-se gozada: “Olha aquela
parva que paga luz, água e renda”.
Os novos proprietários da Vila Dias destacaram duas pessoas
para “consultar essas pessoas e tentar legalizá-las”. José Morais Rocha adianta
que a SVD quer avançar com “planos de entendimento” com estes moradores para
que sejam pagas as rendas em atraso. “Sabemos que algumas pessoas não vão
conseguir pagar tudo de uma vez, mas queremos tornar estas contas
transparentes”, explicou o promotor.
“Aquilo não era uma casa”
A Vila Dias começou a ser construída em 1888 para alojar os
operários das fábricas têxteis e do tabaco de Xabregas. A degradação desde cedo
se tornou a principal característica. Maria Fernanda Neves trabalhava na
Fábrica do Sabão de dia, dormia num quarto com percevejos de noite. Durante
estes tempos de “casas em que só lhe faltava o colmo”, foi “o ambiente e a
amizade” que a mantiveram na vila. Com o tempo, cada um foi fazendo as suas
“obritas”. Mas hoje, “se pudesse”, Maria já cá não vivia.
A vila é uma estrada de uma via, onde se serpenteiam os
carros estacionados em frente às portas e, nas paredes, há uma antena
parabólica ao lado de cada janela.
O projecto prossupõe uma “reabilitação total do bairro, sem
demolição, com a preocupação de manter a traça histórica” dos edifícios,
garantiu Morais Rocha. A fibra óptica vai substituir as antenas e o branco
volta às paredes sucessivamente interrompidas por diferentes cores. Antes do
projecto dar entrada na câmara, os promotores querem avançar “com as pequenas
reparações mais urgentes”.
A sociedade privada estima um retorno demorado do
investimento. “Afinal há rendas de 40 e 50 euros”, recordou Morais Rocha. Por
agora, importa aos sócios ter o dinheiro investido em imóveis: "Investir
neste projecto é mais seguro do que ter o dinheiro no banco". Estimam uma
rentabilidade (remuneração do capital investido) entre 3 e 4% ao mês.
O projecto tem a aprovação dos vizinhos à mesa do café. As
“casinhas branquinhas, tão bonitas”, convenceram Maria Fernanda. Só lhe faltava
um jardim à porta. Augusta, ao balcão, mal pode esperar pela esplanada.
Idalina espera para ver. “Se vão fazer ou não, eu só
acredito quando vir”. A vida já lhe ensinara a “não esperar muito de promessas
alheias” e já muitos lhe prometeram obras. Há 28 anos naquela morada, viu uma
vez a rua “a ser uma vez sarapintada”. “As obras de minha casa, que está toda
arranjadinha, graças a Deus, fui eu que as fiz”. Antes dos “dois mil contos”
que a irmã investiu, “aquilo não era uma casa”. Os antigos donos faziam
fogueiras no chão. Tinha a sanita na cozinha.
Esses tempos já lá vão, mas os moradores antecipam obras
difíceis. Ainda “há casas a cair de maduras, com os esgotos a ir para a linha,
sem chão nem nada”, descreve Lucinda. Com muitas mudanças, o seu medo é perder
o espaço onde tem os cães. Morais Rocha quer sossegar estas preocupações:
“Vamos respeitar as hortas e os espaços que têm. Não vamos destruir um
património que já não se faz”.
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