A única forma de equílibrar este “serviço” que se tornou avassalador e
omnipresente nos seus efeitos nefastos é reconhecer, tal como as outras cidades
europeias, que a prioridade e os direitos residem no direito à habitaçào
permanente e que o alojamento temporário é um negócio e um serviço, que tem que ser imperativamente e urgentemente regulado através de medidas restritivas pelo
Governo Central. É urgente impôr os limites de ocupação e oferta ao ano e impôr
um número máximo de ocupantes por edifício. Em Amsterdão o limite é de 60 dias
por ano com tendência para diminuir para 30 dias. O número de pessoas por
edifício é de 4.
OVOODOCORVO
"Os turistas ficam espantados por
haver pessoas a viver aqui"
A jurista Inês Horta Pinto lembra que
o Alojamento Local é definido na lei como um serviço
09 DE JULHO DE 2017
Fernanda Câncio
No dia da entrevista, a entrada do prédio onde Inês Horta
Pinto vive está atulhada de malas e turistas. É o quotidiano de um edifício no
qual metade das frações são de Alojamento Local. Uma atividade que, lembra a
jurista, é definida na lei como um serviço, implicando a seu ver uma alteração
de uso das frações de habitação que deve ser submetida à autorização do
condomínio. Contra quem clama inconstitucionalidade, cita um acórdão do
Tribunal Constitucional que fala da "relação de proximidade e comunhão em
que vivem os condóminos" para justificar restrições ao direito de
propriedade.
Em 2013, quando comprou a sua casa, já ouvira falar em
Alojamento Local?
Acho que não. Não havia ainda o boom dos vistos gold nem do
AL. Começava a haver mais reabilitação e havia um certo incentivo para habitar
a Baixa, mas quando comprámos a casa não tinha maneira de saber o que ia
acontecer a seguir. Pelo contrário: o título constitutivo da propriedade
horizontal, que definia os usos, dizia que as frações - exceto as duas térreas,
de entrada autónoma - tinham como destino expresso a habitação. E achámos que
ia ser isso, um prédio de habitação.
Quando se deu conta de que as coisas estavam a mudar?
Em 2014, uns condóminos estrangeiros disseram que iam
começar a emprestar a casa a amigos. Passou a haver um movimento constante e
percebemos que afinal não eram conhecidos deles, que estavam a arrendar a casa.
E comecei a estudar o assunto do ponto de vista jurídico porque o fenómeno foi
aumentando - agora, metade das frações estão afetas ao AL - e o incómodo
também.
Que tipo de incómodo?
O que mais nos causa preocupação é a segurança: é um prédio
pequeno onde toda a gente se conhecia, e a dinâmica alterou-se completamente, é
um entra-e-sai permanente. Tivemos de pôr uma placa em várias línguas a pedir
para fecharem sempre a porta, o que nem sempre fazem. E como não moram cá não
se lembram do apartamento em que estão e tocam às campainhas a meio da noite,
tentam abrir a porta errada... Há grandes sustos. Aliás os turistas muitas
vezes nem se dão conta de que estão num prédio habitado - falando com eles percebemos
que ficam espantados com haver pessoas a viver aqui - e não estão vinculados às
regras. Deixam o lixo no chão no hall do prédio porque não descobrem onde está
o contentor... Devia haver o cuidado de os informar de que aqui moram famílias,
que há horários de ruído, segurança, etc.
Que pode um condomínio fazer?
Fizemos uma alteração ao regulamento do condomínio para
proibir a afetação permanente das frações a aluguer turístico - porque é
preciso distinguir entre situações em que se empresta ou arrenda uma casa por
um mês quando o dono está fora e em regime permanente de AL - mas
informaram-nos logo de que não iriam cumprir. Tínhamos a opção de ir para
tribunal, mas percebemos que não havia clareza jurídica suficiente. A opção da
maioria dos condóminos foi então de impor uma alteração na prestação para as
frações de AL. Pagam mais 50% de quota, um valor que não serve para baixar a
quota dos restantes condóminos, mas para servir de fundo para reparações
relacionadas com o maior desgaste.
Quando fala de falta de clareza jurídica refere-se ao facto
de haver um acórdão do Supremo que considera que o AL é habitação e um outro
posterior, da Relação, a dizer que não é. Como vê esta contradição?
A meu ver o atual regime jurídico já permitia dirimir a
situação. O alojamento local é uma realidade nova mas a regulamentação dos usos
das frações já existe no Código Civil há muito, no regime da propriedade
horizontal. Este trata do destino, ou uso, que os condóminos podem dar às
frações e é o documento que as pessoas consultam antes de comprar. A lei que
criou o alojamento local não derroga o regime da propriedade horizontal, que
diz que não se pode mudar o uso sem autorização dos outros condóminos. A
questão fundamental é pois a de saber se a afetação de uma fração registada
como de habitação ao alojamento turístico é ainda habitação ou outro fim. Ora o
próprio diploma do AL define a atividade como um serviço; fala da
"prestação de serviço de alojamento". E claramente o uso que é dado a
essas frações tem muito mais a ver com atividade hoteleira que com habitação.
Quem diz que não há alteração de uso não pode conhecer a realidade. Mas nesta
situação ou há um acórdão uniformizador do Supremo...
Ou legislação clarificadora. Foram apresentados dois
projetos, um do PS e outro do CDS. O primeiro diz que o condomínio deve poder
autorizar caso a caso, o segundo que este só pode negar autorização se no
regulamento estabelecer, previamente, a proibição do AL. Há quem conteste os
dois por considerar que estabelecem uma restrição inconstitucional ao direito
de propriedade.
Isso não tem fundamento. O Tribunal Constitucional tem
jurisprudência muito clara - o acórdão 44/99 - que diz que o direito de
propriedade não é absoluto e que quanto à propriedade horizontal existem
restrições específicas, justificadas por três ordens de razões. A relação de
proximidade ou comunhão em que vivem os condóminos; razões de ordem pública
ligadas às características técnicas dos edifícios; as razões de política
urbanística - o TC fala da harmoniosa distribuição da localização de edifícios
destinados à habitação e outros fins. E diz: "Compreensível é que cada
condómino tenha de antemão o direito de saber qual o fim não só da sua fração
como o das restantes, atenta a influência que tal destino possa exercer sobre o
desejo de contratar, o preço, etc."
Trata-se pois de ninguém ver defraudadas as suas
expectativas. Que solução preconiza?
A oferta do alojamento local faz todo o sentido e tem o seu
lugar, mas idealmente deveria suceder em prédios destinados a isso. No uso
misto, parece-me ilegítimo afetar ao AL uma fração destinada à habitação sem
concordância dos condóminos. Mas o tempo corre a nosso desfavor: cada vez há
mais AL nos prédios, e a habitação corre o risco de ficar em minoria. Se calhar
só um sistema de quotas pode trazer algum equilíbrio, mas a regulamentação vem
tarde. O ideal teria sido acautelar estas questões no início, até porque lá
fora estas questões já estavam em discussão.
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