segunda-feira, 10 de julho de 2017

"Os turistas ficam espantados por haver pessoas a viver aqui"



A única forma de equílibrar  este “serviço” que se tornou avassalador e omnipresente nos seus efeitos nefastos é reconhecer, tal como as outras cidades europeias, que a prioridade e os direitos residem no direito à habitaçào permanente e que o alojamento temporário é um negócio e um serviço, que tem que ser imperativamente e urgentemente regulado através de medidas restritivas pelo Governo Central. É urgente impôr os limites de ocupação e oferta ao ano e impôr um número máximo de ocupantes por edifício. Em Amsterdão o limite é de 60 dias por ano com tendência para diminuir para 30 dias. O número de pessoas por edifício é de 4.
OVOODOCORVO  

"Os turistas ficam espantados por haver pessoas a viver aqui"
A jurista Inês Horta Pinto lembra que o Alojamento Local é definido na lei como um serviço

09 DE JULHO DE 2017
Fernanda Câncio

No dia da entrevista, a entrada do prédio onde Inês Horta Pinto vive está atulhada de malas e turistas. É o quotidiano de um edifício no qual metade das frações são de Alojamento Local. Uma atividade que, lembra a jurista, é definida na lei como um serviço, implicando a seu ver uma alteração de uso das frações de habitação que deve ser submetida à autorização do condomínio. Contra quem clama inconstitucionalidade, cita um acórdão do Tribunal Constitucional que fala da "relação de proximidade e comunhão em que vivem os condóminos" para justificar restrições ao direito de propriedade.

Em 2013, quando comprou a sua casa, já ouvira falar em Alojamento Local?

Acho que não. Não havia ainda o boom dos vistos gold nem do AL. Começava a haver mais reabilitação e havia um certo incentivo para habitar a Baixa, mas quando comprámos a casa não tinha maneira de saber o que ia acontecer a seguir. Pelo contrário: o título constitutivo da propriedade horizontal, que definia os usos, dizia que as frações - exceto as duas térreas, de entrada autónoma - tinham como destino expresso a habitação. E achámos que ia ser isso, um prédio de habitação.

Quando se deu conta de que as coisas estavam a mudar?

Em 2014, uns condóminos estrangeiros disseram que iam começar a emprestar a casa a amigos. Passou a haver um movimento constante e percebemos que afinal não eram conhecidos deles, que estavam a arrendar a casa. E comecei a estudar o assunto do ponto de vista jurídico porque o fenómeno foi aumentando - agora, metade das frações estão afetas ao AL - e o incómodo também.

Que tipo de incómodo?

O que mais nos causa preocupação é a segurança: é um prédio pequeno onde toda a gente se conhecia, e a dinâmica alterou-se completamente, é um entra-e-sai permanente. Tivemos de pôr uma placa em várias línguas a pedir para fecharem sempre a porta, o que nem sempre fazem. E como não moram cá não se lembram do apartamento em que estão e tocam às campainhas a meio da noite, tentam abrir a porta errada... Há grandes sustos. Aliás os turistas muitas vezes nem se dão conta de que estão num prédio habitado - falando com eles percebemos que ficam espantados com haver pessoas a viver aqui - e não estão vinculados às regras. Deixam o lixo no chão no hall do prédio porque não descobrem onde está o contentor... Devia haver o cuidado de os informar de que aqui moram famílias, que há horários de ruído, segurança, etc.

Que pode um condomínio fazer?

Fizemos uma alteração ao regulamento do condomínio para proibir a afetação permanente das frações a aluguer turístico - porque é preciso distinguir entre situações em que se empresta ou arrenda uma casa por um mês quando o dono está fora e em regime permanente de AL - mas informaram-nos logo de que não iriam cumprir. Tínhamos a opção de ir para tribunal, mas percebemos que não havia clareza jurídica suficiente. A opção da maioria dos condóminos foi então de impor uma alteração na prestação para as frações de AL. Pagam mais 50% de quota, um valor que não serve para baixar a quota dos restantes condóminos, mas para servir de fundo para reparações relacionadas com o maior desgaste.

Quando fala de falta de clareza jurídica refere-se ao facto de haver um acórdão do Supremo que considera que o AL é habitação e um outro posterior, da Relação, a dizer que não é. Como vê esta contradição?

A meu ver o atual regime jurídico já permitia dirimir a situação. O alojamento local é uma realidade nova mas a regulamentação dos usos das frações já existe no Código Civil há muito, no regime da propriedade horizontal. Este trata do destino, ou uso, que os condóminos podem dar às frações e é o documento que as pessoas consultam antes de comprar. A lei que criou o alojamento local não derroga o regime da propriedade horizontal, que diz que não se pode mudar o uso sem autorização dos outros condóminos. A questão fundamental é pois a de saber se a afetação de uma fração registada como de habitação ao alojamento turístico é ainda habitação ou outro fim. Ora o próprio diploma do AL define a atividade como um serviço; fala da "prestação de serviço de alojamento". E claramente o uso que é dado a essas frações tem muito mais a ver com atividade hoteleira que com habitação. Quem diz que não há alteração de uso não pode conhecer a realidade. Mas nesta situação ou há um acórdão uniformizador do Supremo...

Ou legislação clarificadora. Foram apresentados dois projetos, um do PS e outro do CDS. O primeiro diz que o condomínio deve poder autorizar caso a caso, o segundo que este só pode negar autorização se no regulamento estabelecer, previamente, a proibição do AL. Há quem conteste os dois por considerar que estabelecem uma restrição inconstitucional ao direito de propriedade.

Isso não tem fundamento. O Tribunal Constitucional tem jurisprudência muito clara - o acórdão 44/99 - que diz que o direito de propriedade não é absoluto e que quanto à propriedade horizontal existem restrições específicas, justificadas por três ordens de razões. A relação de proximidade ou comunhão em que vivem os condóminos; razões de ordem pública ligadas às características técnicas dos edifícios; as razões de política urbanística - o TC fala da harmoniosa distribuição da localização de edifícios destinados à habitação e outros fins. E diz: "Compreensível é que cada condómino tenha de antemão o direito de saber qual o fim não só da sua fração como o das restantes, atenta a influência que tal destino possa exercer sobre o desejo de contratar, o preço, etc."

Trata-se pois de ninguém ver defraudadas as suas expectativas. Que solução preconiza?


A oferta do alojamento local faz todo o sentido e tem o seu lugar, mas idealmente deveria suceder em prédios destinados a isso. No uso misto, parece-me ilegítimo afetar ao AL uma fração destinada à habitação sem concordância dos condóminos. Mas o tempo corre a nosso desfavor: cada vez há mais AL nos prédios, e a habitação corre o risco de ficar em minoria. Se calhar só um sistema de quotas pode trazer algum equilíbrio, mas a regulamentação vem tarde. O ideal teria sido acautelar estas questões no início, até porque lá fora estas questões já estavam em discussão.

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