O silêncio do fogo na voz da dor...
Carta de uma mãe que perdeu o filho
em Pedrógão Grande.
23 de Julho de 2017, 7:25
Estamos tão cansados, mas não podemos estar. Os mortos não
se calam e não nos deixam cansar. Gritam por Justiça! Exigem Mudança!
A Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande, o
grande, brutal e devastador incêndio que lavrou do dia 17 a 24 de Junho de
2017, nos concelhos de Pedrógão Grande, Figueiró dos Vinhos e Castanheira de
Pêra, é um movimento cívico que partiu dos familiares e amigos das vítimas
mortais desta tragédia. Uma associação cujo mote é apurar responsabilidades e
ajudar a construir um futuro em que tal tragédia e crueldade não volte a
acontecer!
Esta é a descrição do que pretendemos ser, com a ajuda de
todos e a lembrança de todos aqueles que partiram. Porque hoje somos uma
comunidade traumatizada. Uma comunidade sujeita a uma tal brutalidade que não
se nos apaga da memória... O cheiro a terra ardida é algo que nos envolve, que
nos macilenta e que se entranhou em cada um de nós.
A perda de dezenas de vidas e de forma tão trágica que roça
a loucura deixou uma sociedade e todo o seu contexto à volta num luto imposto.
A vida acabou ali, naquela estrada para muitas pessoas. Inocentes. E acabou
também parte de uma vida para os que ficaram. Os que ficámos, ficámos mais
pobres, mais sós, apenas com o alento das memórias, mas com a revolta de toda
esta situação. São filhos sem pais. São pais sem filhos... são casas sem gente,
é gente sem gente, não é natural!
Olho à volta e as pessoas não se riem, choram sozinhas,
acanhadas, não se olham nos olhos, com vergonha pela sua impotência, com medo;
o cenário é deprimente e não nos ajuda a superar com dignidade a tragédia. O
Inverno não tarda e com ele as ruas despidas de vida. Despidas de ainda mais
vida.
Há rancor, ressentimento com o território e com as entidades
públicas. O Estado falhou. A Nação não existiu.
Mas não falhou apenas nesta tragédia. O Estado vem falhando
ao longo de décadas. O Estado padece de uma cegueira crónica, está enfermo de
um tal sentimento de negação de si próprio. Nega o seu estado de país rural, um
país orgulhosamente rural e por isso mesmo rico.
Enquanto Estado é um conceito frio, masculinizado, distante,
de um ente que impõe tributos e leis aos seus súbditos, um amontoado de
entidades supostamente hierarquizadas, com dirigentes supostamente competentes,
e que supostamente deveriam cumprir e fazer cumprir um conjunto de leis e
regras que se vão aprovando (ou não!) conforme as vontades políticas da estação.
Assim se vai governando Portugal. Sem pactos de regime e visão a longo prazo.
Vão-se puxando o tapete uns aos outros, não se apercebendo que, por fim, só
restam cacos, dor e tristeza para governar.
Nação, por sua vez, é um conceito acolhedor, integrador,
feminino, belo, quase maternal, que agrega o seu Povo e o seu Território. É o
que dá sentido à reunião das pessoas num determinado território a que chamamos
“a nossa terrinha”, “o nosso cantinho a beira-mar plantado”, a proa desta
“jangada de pedra”. Portugal.
O Estado falhou nesta tragédia levando consigo o sentimento
de pertença de Nação que tínhamos. O Estado não protegeu a sua Nação. Não
assegurou o seu Território e com ele o seu Povo...
Fomos vítimas desta ausência insuportável de Estado. Ontem e
hoje. Mas não amanhã. Porque já chega de incêndios que ceifam vidas. Incêndios
como os de 2003, 2005 e Junho de 2017, e que contabilizam, até a data, 100
vítimas mortais em solo português, não podem voltar a acontecer. É hora de
todos dizermos “Basta!”. Este Estado que não quer ver secou uma parte
importante da sua Nação, aquela que moveu este país por séculos, o Interior.
A primeira muralha e frente de defesa do País no passado
contra as invasões estrangeiras, o celeiro do País em tempo de vacas magras, o
emissor de soldados nas guerras ultramarinas, o mercado de mão-de-obra barata
em tempos de construção europeia... Quando o Interior e os seus recursos já não
eram precisos, substituídos pela oferta de bens e serviços mais baratos, o Povo
e o Território do Interior foram abandonados À sua sorte. Emigrem! E assim o
fizeram, abandonados à sua sorte.
Não houve solidariedade em tempos de vacas gordas, não houve
estratégia para o Território quando os dinheiros dos Fundos Estruturais
Europeus chegavam a rodos. Foram anos de esquecimento, de esvaziamento
progressivo e consistente das instituições regionais e locais, depois
seguiram-se as empresas e, por fim, as pessoas. Sobreviver é preciso.
Foram sucessivas décadas de descaso com o Interior, de
negligência com o Território, com a Floresta e a Agricultura. Tendo como
consequência a emigração das pessoas em idade ativa, restando uma população
envelhecida e empobrecida a exigir cuidados redobrados do pouco Estado que
restou e que nos foi esventrado e sobretudo das autarquias locais e
misericórdias.
Parecia propositado... o Interior tornou-se terra de
ninguém, envergonhado de o ser, abandonado e, assim, por fim, vergado.
Deveríamos dar graças por nos termos tornado a maior região
eucaliptizada da Europa... Fomos “agraciados” pela falta de oportunidade! O
Território estava a saldos e ninguém quis saber.
O Interior tornou-se um canteiro de ervas daninhas, sem
jardineiros — as suas gentes. Um barril de pólvora em que se soma a indústria
do fogo institucionalizada e um qualquer ano eleitoral. Os ingredientes ideais
para a tempestade perfeita.
A tragédia de 17 a 24 de junho de 2017 estava mais que
anunciada. Foi apenas uma questão de tempo... e o tempo não pára! E com ele
foram muitas vidas abreviadas. Cedo demais... Cedo demais!
Por ti, meu filho...
Nádia Piazza, mãe de uma criança de cinco anos que morreu a
17 de Junho de 2017 em Pedrógão Grande
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