Um edifício, um hospital e uma
circular põem câmara de Lisboa na mira da Justiça
Ministério Público investiga decisões
sobre Torre de Picoas, Hospital da Luz e Segunda Circular durante os mandatos
de Costa e Medina. Associação de Turismo está também sob escrutínio.
JOÃO PEDRO PINCHA e MARGARIDA DAVID CARDOSO 18 de Julho de
2017, 6:30
A construção de um edifício de escritórios de 17 andares nas
Picoas é um dos casos em investigaçãoFoto
A construção de um edifício de escritórios de 17 andares nas
Picoas é um dos casos em investigação GUILHERME MARQUES
O Departamento de Investigação e Acção Penal (DIAP) está a
investigar algumas decisões tomadas pelos serviços de Urbanismo da Câmara
Municipal de Lisboa nos últimos anos. A Associação de Turismo de Lisboa também
está sob suspeita, adiantou ao PÚBLICO a Procuradoria-Geral da República (PGR).
Os inquéritos em cursos centram-se em dossiers sobre os
quais houve decisões polémicas durante os mandatos de António Costa e Fernando
Medina, com Manuel Salgado como vereador do Urbanismo. Sob a mira da justiça
estão a construção da Torre das Picoas, as obras de ampliação do Hospital da
Luz e a Associação de Turismo de Lisboa, informou a PGR, que adiantou ainda não
terem sido constituídos arguidos.
A câmara diz que não foi notificada “nem oficial nem
oficiosamente” destas diligências. “Nenhum técnico, dirigente ou qualquer outro
responsável foi ouvido em qualquer condição a propósito de qualquer processo”,
acrescentou, em resposta enviada por email, o departamento de comunicação da
autarquia.
Algumas das matérias em investigação têm gerado controvérsia
nos anos recentes. A construção de um edifício de escritórios de 17 andares nas
Picoas, no centro da cidade, é disso exemplo. Em 2011, a câmara informou o
então proprietário dos terrenos – na esquina fronteira ao Hotel Sheraton – que
apenas podia construir ali um prédio com sete andares (12 377 metros quadrados,
no total). No ano seguinte, já com os terrenos nas mãos de uma empresa ligada
ao antigo BES, a autarquia autorizou um aumento de área em 89% e os 17 andares
actualmente em construção. Em 2015, quando o PÚBLICO relatou o caso, a câmara
justificou a mudança com a entrada em vigor, em 2012, de um novo Plano Director
Municipal.
A polémica relativa à torre conheceu novos capítulos
posteriormente, quando se percebeu que o empreiteiro tinha cravado um conjunto
de estacas em terrenos que, à data, eram municipais. A descoberta motivou uma
queixa ao Ministério Público, feita pela Assembleia Municipal de Lisboa a
pedido do Bloco de Esquerda, que acabou por ser arquivada. Entretanto, a câmara
vendeu aqueles 27 metros quadrados de terreno por 317 mil euros ao promotor da
torre.
Já a ampliação do Hospital da Luz, na Avenida Lusíada, deu
que falar por ter obrigado à demolição de um quartel do Regimento de Sapadores
Bombeiros que, à época, era o mais moderno de Lisboa. O terreno em que estava o
quartel, contíguo ao hospital, foi vendido em hasta pública em 2014 à então
dona daquele equipamento, a Espírito Santo Saúde, que pagou um euro a mais do
valor-base de licitação: 15,580 milhões de euros.
O projecto de expansão do hospital foi aprovado no ano
passado e o quartel demolido entretanto. Já este ano, os deputados do PCP à
assembleia municipal pediram que o assunto fosse analisado por uma das
comissões permanentes daquele órgão, suspeitando que teriam sido ocupados
terrenos municipais pela obra. Foram, de facto, invadidos por um túnel rodoviário.
E, garante a câmara, o hospital pagará uma renda mensal pela utilização desses
terrenos.
No passado recente, entre 2007 e os anos seguintes, a
procuradora Maria José Morgado liderou uma unidade especial de investigação que
se debruçou não apenas sobre a permuta entre a Feira Popular, propriedade da
autarquia, e o Parque Mayer, que pertencia ao grupo Bragaparques, como sobre
muitos outros negócios, sobretudo imobiliários, ligados às mais-valias
proporcionadas pelos licenciamentos feitos pelo departamento de urbanismo da
autarquia.
Apesar de o caso Bragaparques ter feito cair o executivo
camarário liderado por Carmona Rodrigues, acusado do crime de prevaricação
juntamente com alguns dos seus vereadores, os tribunais acabariam por ilibar os
suspeitos.
“Quem assina de um lado e de outro é Fernando Medina”
As investigações do DIAP incluem ainda a Associação de
Turismo de Lisboa (ATL). Vítor Costa, director-geral da associação, criada há
20 anos para promover a cidade como destino turístico, diz não ter conhecimento
do processo, razão pela qual não presta declarações.
Nos últimos anos, a Câmara de Lisboa tem passado para alçada
da ATL a gestão de vários edifícios, o que lhe valeu críticas da oposição por
“falta de transparência”. “Ninguém sabe como é que os contratos são feitos, se
há ou não há concursos públicos, se as adjudicações são justas, quanto se paga,
quanto se recebe. A câmara usa a ATL para alivar o processo de contratação
pública e evitar o escrutínio da oposição, da Assembleia Municipal e do Tribunal
de Contas”, observa Victor Gonçalves, deputado municipal do PSD.
Os sociais-democratas de Lisboa reafirmam as críticas feitas
no final de 2015. Nessa altura, um grupo de deputados municipais do PSD pediu à
Procuradoria-Geral da República para averiguar a relação entre o município e a
ATL. Acusam António Costa e Fernando Medina de terem criado uma “segunda câmara
em Lisboa, à qual é dado o filet mignon da cidade, e que não presta contas a
ninguém”, nas palavras de Vítor Gonçalves.
A ATL é uma associação privada sem fins lucrativos declarada
de interesse público e este estatuto permite-lhe evitar o escrutínio dos órgãos
municipais e desobriga-a de obedecer às regras da contratação pública. A
presidência da direcção é exercida pela câmara, sendo a presidência adjunta
exercida por um privado.
Os sociais-democratas de Lisboa estimam que o património
atribuído à ATL ultrapasse os 100 milhões de euros. “É o Parque de Campismo, a
Praça da Ribeira, todo o rés-do-chão do Terreiro do Paço, o Páteo da Galé, toda
a zona ribeirinha, incluindo o terminal de cruzeiros e as obras na estação
fluvial de Sul e Sueste, o Pavilhão Carlos Lopes e ainda as obras do Palácio da
Ajuda”, enumera Vítor Gonçalves.
“Acresce que o presidente executivo da ATL é o presidente da
Câmara de Lisboa. Há documentos em que quem assina de um lado é o Fernando
Medina e do outro é o Fernando Medina. Mais não seja, é um convite à falta de
transparência”, acrescenta o social-democrata.
Queixa da oposição dá origem a investigação à Segunda
Circular
O Ministério Público está ainda a investigar a interrupção
das obras da Segunda Circular. A investigação surge na sequência de uma
participação feita por deputados municipais do PSD e do CDS-PP, em Outubro do
ano passado, que pediram à Procuradoria-Geral da República (PGR) para averiguar
se existiram indícios suficientes para anular o concurso público das
empreitadas orçadas em 10 milhões de euros.
As obras estavam em curso quando, a 2 de Setembro do ano
passado, Fernando Medina suspendeu a empreitada “por suspeita de conflito de
interesses”. Em causa, justificou o autarca, estava o facto de o consultor do
projecto da obra ser ao mesmo tempo o vendedor do material que aconselhou. A
empresa de consultoria Consulpav fez uma alteração ao estatuto da sociedade em
Janeiro do ano para poder passar a "fabricar e comercializar" o
pavimento que aconselhara à câmara, meses antes.
Medina disse não ter conhecimento deste facto aquando do
lançamento do concurso, mas não conseguia “afastar as dúvidas de que o mesmo o
tivesse viciado”. O júri do concurso das obras sustentou as dúvidas sobre a
legalidade do concurso, pelo que autarquia suspendeu a obra e abriu uma
auditoria interna.
Auditoria essa, anunciada em Setembro, que só começou a ser
feita no fim do ano passado ou no início deste e na qual participaram apenas o
presidente da câmara e os vereadores das Finanças e do Urbanismo. Isto porque a
maioria socialista na assembleia municipal bloqueara a audição de técnicos,
responsáveis municipais, projectistas da obra e júris do concurso. Por isso, a
comissão sobre as obras na Segunda Circular começou e acabou em vinte minutos,
com o PSD a abandonar a sala e Medina a afirmar que a decisão sobre as obras
foi “muito simples”.
Na semana passada, foram conhecidos os resultados da
auditoria interna: “A comissão não aponta para que exista nenhum crime nem
nenhuma ilegalidade grave”, disse à Lusa o vereador das Finanças, João Paulo
Saraiva. Para acrescentar que “o concurso poderá ter sido prejudicado, na
[vertente da] livre concorrência, pela forma como o projectista se portou desde
o início”.
Ainda que os resultados do inquérito não apontem
"matéria suficiente para enviar ao Ministério Público", Fernando
Medina acabou por o fazer. João Paulo Saraiva explicou que o autarca “decidiu
fazê-lo para o Ministério Público ver se há matéria para investigar".
A participação do presidente da Câmara ao Ministério
Público, sobre a mesma matéria que já está a ser investigada por causa da
participação feita pelo PSD e CDS, ainda não deu entrada, disse fonte da PGR.
Decisões de urbanismo sob investigação
Algumas pessoas chamadas a testemunhar pela Polícia
Judiciária no âmbito destes inquéritos também têm sido inquiridas sobre o Plano
de Pormenor da Matinha, a requalificação do miradouro de São Pedro de
Alcântara, algumas hastas públicas e operações de reabilitação urbana, apurou o
PÚBLICO.
O Plano de Pormenor da Matinha gerou contestação entre os
eleitos da oposição na câmara e na assembleia municipal. Referente a terrenos
entre o Parque das Nações, a linha do Norte e o rio, este plano – desenhado por
Manuel Salgado quando ainda não era vereador – prevê a construção de 25
edifícios de habitação, equipamentos e espaços verdes. Os terrenos são de três
proprietários diferentes e a câmara autorizou a construção faseada por lotes, o
que sempre foi contestado por um dos donos. Esse facto levou alguns deputados
municipais a afirmarem que a autarquia tinha favorecido um dos proprietários –
uma empresa então do universo GES, do grupo Espírito Santo.
Já a requalificação do miradouro de São Pedro de Alcântara
suscitou as dúvidas do vereador do CDS, João Gonçalves Pereira, pela falta de
concurso público. A câmara justifica que adjudicou directamente, em Maio, as
obras de sustentação dos muros do miradouro, no Príncipe Real, à empresa
Teixeira Duarte (5,5 milhões de euros) por se tratar de uma “intervenção
urgente, face ao risco iminente de deslizamento de terras locais ou
globais".
No entanto, o Laboratório Nacional de Engenharia Civil
(LNEC) – a quem a vereação do urbanismo pediu um parecer - nega que haja qualquer
urgência na obra, deitando por terra o argumento dado pelo município para o
ajuste directo. Num parecer datado de Março, os especialistas do LNEC
consideram "desnecessário o reforço das estruturas em causa, a curto
prazo”, deixando claro que “não haveria necessidade de obras imediatas”, nota o
Expresso.
Acresce que os deslizamentos de terra já eram conhecidos da
câmara pelo menos desde 2006 e monitorizados desde 2010, como referiu o
vereador do urbanismo, Manuel Salgado.
A intervenção por ajuste directo foi aprovada com os votos a
favor da maioria socialista, coligada com os Cidadãos por Lisboa, do PSD e da
CDU. Apenas o CDS votou contra.
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