Vila Dias entre a esperança e a
dúvida no restauro prometido por um investidor
POR O CORVO • 3 JULHO, 2017 •
No pequeno café situado na entrada da vila, o assunto não é
a recente eliminação de Portugal na Taça das Confederações ou o rescaldo
político do incêndio em Pedrógão Grande. No micro-cosmos da Vila Dias, um
conjunto de 160 casas encravado na freguesia do Beato, a conversa gravita sobre
o futuro da comunidade, comprada recentemente por uma sociedade privada que
promete a reabilitação total dos imóveis, não para vendê-los ou anunciá-los no
AirBnB, mas sim para que sigam nas mãos dos atuais moradores.
O combustível do
debate bem que poderia ser o facto do setor privado está a fazer o papel do
poder público. Mas, após décadas de abandono total, esse “detalhe” é encarado
pelos moradores ainda com mais suspeita que celebração. Erguida em 1888, como
residência dos operários da Fábrica de Fiação de Xabregas, a Vila Dias
acompanhou a gradual derrocada do setor fabril no século passado, até se
transformar, nas últimas décadas, num bairro popular. Desde então, a
deterioração física tem-se somado à emocional e as pessoas que lá vivem
coleccionam promessas não cumpridas e frustrações.
É a esse passivo concreto e de carne e osso que o engenheiro
Morais Rocha, administrador da Sociedade Vila Dias, se está acostumar. Anónimo
no balcão do café, ele acompanhou atento o rosário de queixas dos moradores à
reportagem de O Corvo. Nenhuma delas causada por ele ou a empresa que
representa, mas que, desde Maio, passaram a ser problema dele. Em menos de uma
hora no local, Morais Rocha ouviu histórias de sanitas instaladas no meio da
sala, de imóveis sem casas de banho e de cozinhas escoradas por madeiras, na
iminência de desabar.
O desafio não parece desanimá-lo. “Esse local é uma riqueza
e vamos reformá-lo todo. Para isso, destinamos um orçamento de 5 milhões de euros”,
afirma o engenheiro. Morais Rocha enumera as melhorias que serão efectuadas:
restauro das fachadas e pintura na cor original, o branco, de janelas,
jardineiras e escadas, e a retirada total das parabólicas, o único item em
número capaz de rivalizar com os problemas. Como a intenção é atrair
gradualmente moradores mais jovens, a promessa é de que os apartamentos passem
a ter finalmente acesso à internet.
Morais Rocha não esconde o orgulho de ser um ponto fora da
curva no mercado imobiliário. “Isto aqui não é para turistas, não. É para os
moradores”, ressalva, sem detalhar como será a contabilidade para rever o
investimento inicial. Principalmente, ao levar-se em consideração o valor baixo
das rendas para o “padrão” de Lisboa, entre 50 euros e 250 euros. Das 160
casas, 40 são devolutas e a expetativa é que estarão disponíveis para os novos
inquilinos no final do ano, quando se deve terminar a recuperação total da
Vila. Haverá ainda a cobrança gradual das várias rendas em atraso.
“Muita gente deixou
de pagar porque os proprietários não davam cara”, justifica uma das moradoras
no acalorado debate no café, Esmeralda Santos. É dela a casa com a cozinha em
risco de desabar. Esmeralda mora na Vila Dias há oito anos e conta que já lá
levou desde a reportagem do Correio da Manhã ao atual primeiro-ministro,
António Costa, quando era presidente da Câmara de Lisboa, para testemunhar o
seu drama. E nada foi feito. Não fosse o marido a improvisar uma escora de
madeira que invade o quintal do vizinho do andar inferior, tudo já teria ido
abaixo.
O Corvo pergunta-lhe,
se tivesse a oportunidade de falar com o proprietário, o que diria. “Que viesse
visitar a minha casa, como outras que aí estão para verem realmente o cerne da
questão”, responde ela, ainda sem saber que o mesmo estava ali, a menos de dois
metros, apoiado no balcão do café. E foi justamente o que o empresário fez.
Minutos depois, estava a observar com os próprios olhos “o cerne da questão”.
Calmo, orientou a moradora como proceder e garantiu que, na próxima semana, o
problema, que nem o tal jornal nem António Costa resolveram, estaria solucionado.
Menos cétpica estava Maria Fernanda Neves, moradora da Vila
Dias há 57 anos. “Acho que vai ficar muito bem, não é? Dizem que vão fazer e a
gente tem que confiar”, acredita, menos preocupada com o restauro físico e mais
com o da vizinhança. Nos últimos anos, alguns imóveis não ocupados foram
invadidos e a área ficou mais insegura. “Espero que não ponham cá gente má.
Isso aqui era uma família e deixava-se inclusive a chave na porta”, relembra,
antes de se permitir um pequeno desabafo: “Queria mesmo que tudo corresse bem,
para ter paz. É tudo o que eu quero”.
Texto + Fotografias +
Vídeo: Álvaro Filho
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