No Bairro do Intendente, em Lisboa,
ainda há quem viva com medo
Um grupo de moradores e comerciantes
do bairro lançaram uma petição para regular o consumo de droga nas ruas, mas
discussão divide a população residente.
CATARINA REIS 24 de Julho de 2017, 8:22
Prostituição e droga sempre foram selos que se colavam ao
Bairro do Intendente, na freguesia de Arroios. A fama tirou-lhe o proveito,
entretanto restaurado com a chegada da sede de candidatura do então presidente
da Câmara — e actual primeiro-ministro — António Costa para o Largo Pina
Manique, o coração do bairro. Moradores e comerciantes não esquecem e ainda
elogiam a sua dedicação à reestruturação da zona. A marginalidade nunca mudou
de morada, mas melhorou com a sua vinda, dizem. Agora, lamentam o retrocesso,
que se esconde em zonas menos afamadas, como as ruas dos Anjos e do Benformoso.
O Largo Pina Manique, esse, é hoje um lugar de passagem para um novo público,
alheio aos problemas do bairro.
Os moradores relacionam o regresso da decadência das ruas às
obras no Cais do Sodré, antigo ponto de encontro para venda e consumo de droga.
Este ano, 271 assinaturas deram voz a uma petição que já chegou à Câmara
Municipal de Lisboa. Entre outras soluções para fazer frente ao consumo de
droga nas ruas, moradores e comerciantes pedem mais policiamento e a
revitalização da rua dos Anjos.
“Já houve uma
melhoria, como toda a gente sabe. Foi bastante agradável. Mas de há alguns
meses para cá, as coisas voltaram a piorar. É só ir lá fora e ver, mais ou
menos a partir das três da tarde. Todos os dias”. Filipa, 27 anos, gere um
restaurante tradicional português que é também vegetariano, o Sabor K Intende,
o único na rua dos Anjos. O restante comércio é sobretudo bares e lojas de
indianos. Juntamente com o antigo sócio, Bruno, agora político em França,
redigiu a petição que chegou às mãos da presidente da Junta de Freguesia de
Arroios, Margarida Martins. Há uma semana, Filipa marcou lugar na Assembleia
Municipal. Foi a última vez que viu discutido o assunto junto de quem procurava
uma resposta. Esta, está por dar. “A petição foi feita há nove meses. Não temos
resposta nem prometeram discutir mais sobre o assunto”, esclarece.
Em entrevista ao PÚBLICO, Margarida Martins, presidente da
Junta de Freguesia de Arroios, garante que as queixas estão a ser ouvidas e
discutidas. “Tem havido reuniões na junta, com a polícia, inclusive. Temos
outra esta segunda-feira para discutir este assunto”, explica. Mas, alerta,
“não é algo que se consiga combater de um dia para o outro. Até porque não se
pode combater de um lado e correr o risco de ver o problema ir para outro. Tem
que se combater em conjunto”.
É entre a Rua dos Anjos e a Rua do Benformoso que se desenha
o bairro do Intendente. Há um cheiro de cerveja derramada pelo chão. As casas,
a maioria de vidros partidos, azulejos sujos e portas sempre abertas, fazem
convites à troca e consumo de estupefacientes. No centro, o Largo, o coração da
área. Um órgão renovado, agora local de encontro de um público jovem e
cosmopolita.
Falar no processo de viragem do que foi e do que é hoje o
Intendente é, para todos os que lá moram, relembrar 2011, ano em que António
Costa, na altura presidente da Câmara Municipal de Lisboa, faz as malas e ruma
ao bairro. Aqui instalou a sua sede de candidatura. Já em 1849, no lugar que
entretanto ocupou, havia uma oficina de olaria, entregue às mãos de alguém que
dava pelo mesmo nome, António Costa.
A antiga oficina Viúva Lamego tornou-se também a sede da
esperança de um renovado bairro. Os, até então, invisíveis ganharam rosto e
deixou de haver medo de ali passar. Contudo, os problemas não foram
erradicados.
Rosa Ribeiro, 54, mora na Benformoso desde os seus três
anos. Quando chegou, “ainda não havia consumo e tráfico de droga. Havia
prostituição”. “Este bairro sempre foi um bairro boémio”, lembra. Desde cedo,
aprendeu que ambas as realidades integravam os traços da cultura deste bairro.
Foi o ambiente em que cresceu. Mas agora, pela primeira vez, pondera abandonar
a sua casa.
“À porta da casa do meu filho estão sempre pessoas a
consumir. Há bem pouco tempo, foi ameaçado com uma faca. Há mais tempo
empurraram a minha nora, que tinha a bebé de um mês ao colo. Bateram com a
cabeça e foram parar ao hospital em estado grave”, conta uma das moradoras mais
antigas, para quem chamar as autoridades se tornou prática diária. “Todos sabem
que isto existe. Acontece há mais de 20 anos, não dois dias. E a polícia não
faz nada. Para mim, isto só pode ser corrupção”, desabafa.
Um projecto em abandono
Quem caminha pelo revitalizado Largo do Intendente não
imagina o ambiente, contrastante, que se respira nas ruas adjacentes. Separa-os
pequenas passadeiras, entre o moderno e o que sempre lá ficou. “Parecem duas
aldeias diferentes. É um mundo completamente à parte”, desabafa Filipa.
A altura das casas, frente a frente, distanciadas por uma
estreita rua de paralelos cinzentos, tapa o sol que por ali vai espreitando.
Nas sombras, de um lado para o outro, vagueiam prostitutas, presença habitual
na zona. Mas, desabafa Filipa, “fossem esses todos os problemas”.
Também o tráfico de droga faz parte da mobília da casa.
Sofre o seu restaurante, que tem sobrevivido de clientes habituais e dos dias
de folga do mundo da droga. Chegou àquela rua na altura em que o problema
parecia estar extinto. “Acontece-me regularmente ter pessoas mesmo ao lado da
porta a consumir estupefacientes e ver chegar clientes que, ao repararem nesta
situação, recuam e decidem não entrar. Se me levarem a jantar a um sítio assim,
também prefiro não entrar. Tenho que me pôr no lugar das outras pessoas”,
acrescenta.
Já Marta Silva olha o bairro como um lugar mais maduro e
“bem comportado”, no qual nunca se sentiu realmente insegura. Bailarina de
profissão, passa a maioria do seu tempo no Largo do Intendente, onde edificou,
num edifício abandonado, a cooperativa cultural Largo Residências.
“Pousei os pés no Intendente há seis anos. No entanto, já
trabalhava nesta freguesia e neste bairro há mais de dez. Por profissão e por
uma questão pessoal, sempre fui de trocar as grandes avenidas pelas ruelas. Por
isso, ia passando aqui”, conta. “Eles não se metem com os outros”. “São menos
do que em 2011”, antes das reformas aplicadas por António Costa, “mais do que
em 2013”, mas “as ruas não estão conflituosas”.
Admite ser uma “voz contraditória” no bairro. Não concorda
com a petição que chegou à Assembleia Municipal. Compreende o ponto de viragem
que a zona tem sentido “nos últimos dois anos”, mas não com as soluções
propostas. Explica que o problema do Intendente “é o produto de algo que demora
muito tempo a ser feito e de algo que foi, entretanto, mudado” e que isso
“entra em colisão com os interesses que as pessoas têm do presente, do
imediato”.
Ainda assim, concede legitimidade “à avaliação que algumas
pessoas fazem”, pois “um projecto de reabilitação que foi bem começado, com uma
filosofia estratégica e pluridisciplinar, foi um pouco abandonado nos últimos
anos”.
Atraídos pelas melhorias sociais implementadas pelo antigo
presidente da câmara, no Largo do Intendente instalaram-se novos investidores,
novo comércio. Entretanto, “os consumidores de rua, pelo trabalho de
proximidade, pela presença de crianças e de clientes habituais nos
estabelecimentos, começaram, organicamente, a ter muito mais cuidado com aquilo
que faziam na rua. O consumo na rua foi reorganizando-se e isto deixou de ser
um lugar por onde ninguém passava”, explica Marta.
Depois de Casal, o Intendente
“Houve uma fase no bairro em que qualquer pessoa que
entrasse aqui tinha que pisar uma seringa”, recorda António Vasconcelos. Na
passada quinta-feira, moradores, comerciantes e interessados pela história do
bairro reuniram-se no Largo para discutir a transformação do Intendente.
“Ninja” ou “Tozé”, como é por lá conhecido, lamenta ter passado e representado
o pior daquele bairro. Fez parte de um mundo a que chamou “a ponte para o
antigo Casal Ventoso”. “Comprava-se lá, consumia-se aqui”, explica.
Tozé não poupa nos elogios à que é agora a sua casa e admite
que comparar “o Intendente de 1978 e de 2017 é o mesmo que beber um copo de
água e um litro de óleo”.
Nessa altura, os problemas subiam as ruas do bairro para se
instalar em outras ruas. Na porta 6F, na Rua da Palma, tem morada uma antiga
lavandaria, “com mais de 100 anos”, conta a responsável. Durante os 53 anos de
presença na loja, são apenas três o número de vezes que se atreveu a visitar o
bairro do Intendente, situado mesmo nas suas costas.
Em tempos, a insegurança morava à sua porta. “As pessoas
tinham medo de vir para aqui e nós sofremos muito com isso”. Antigamente, tudo
o que luzia “era roubado”. Debaixo dos andaimes que ocupavam a rua, consumia-se
e vendia-se droga a qualquer altura do dia, sem receio dos olhos alheios. A
chegada da 4ª esquadra da PSP à Rua da Palma veio acalmar o infortúnio destes
comerciantes.
Hoje, a polícia guarda as portas e todos os que por cá
passam parecem caminhar mais seguros. Que o diga João Ramalho, 67 anos,
taxista, bom conhecedor da fama destas ruas. “Mudou tudo. Principalmente o
Largo. Era um sítio com muita prostituição, muita droga. Eu não gostava de passar
ali”. Nesta tarde, era de lá que vinha. A Rua dos Anjos faz parte do seu
itinerário para passear o cão.
Filipa ainda olha para as artérias do novo Largo como
pedaços de um Intendente esquecido. Para Marta, “a grande falha dos últimos
anos foi a resposta social”. “A resolução do problema deveria ter começado
quando começamos a falar do plano de desenvolvimento comunitário. Se isso
tivesse acontecido, acho que não estaríamos com tantos problemas como estamos
agora”.
Trabalhar no terreno, através do processo de entaipe dos
prédios e casas abandonados do bairro, é, para a presidente da Junta de
Freguesia de Arroios, a melhor forma de combater o problema. Contudo, sublinha
que para que isso aconteça necessita da lei a seu lado e “só a Câmara pode
forçar isso”.
Texto editado por Ana Fernandes
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