António Costa: o princípio do fim da
maior fraude da política portuguesa?
Num partido que se orgulha de ser
laico e maioritariamente agnóstico ou ateu (se é que há diferenças entre estes
dois conceitos), é tão bizarro ver a fé inabalável dos seus militantes nas
virtudes divinas (otimistas irritantes) do seu líder máximo
04/07/2017
João Lemos Esteves
1. Na semana transata escrevemos, neste espaço, um artigo
cujo título suscitou controvérsia: sobre a tragédia de Pedrógão Grande,
declarámos então que o “Estado ficou a nu (e não foi bonito de se ver)”. Muitos
(sobretudo entre a “elite” política nacional) julgaram tratar-se de um exagero
com laivos populistas. Outros – menos, cada vez menos – consideraram que se
tratou somente de um título “com piada” e de um texto “excessivo”, com
“ressabiamentos anti-costistas”. Enfim, foi o normal: em detrimento de se
discutir a substância, discute-se a forma. Em vez de se discutir os problemas
por nós escalpelizados, prefere-se analisar as intenções ou os sentimentos do
autor do texto.
2. Em vez de reconhecerem que há um problema sério e de
consequências (ainda) imprevisíveis na máquina administrativa do Estado, os
apoiantes da geringonça preferem desencadear manobras de diversão, arranjar
“inimigos externos” e persistir na adulação quase incomodativa de António
Costa. O PS – e, hoje, já o PCP e o Bloco de Esquerda (foi emocionante ver
Fernando Rosas a dar um “miminho” no ombro de Pedro Silva Pereira, na passada
quinta-feira, na TVI24) – trata António Costa como se fosse o seu deus. Num
partido que se orgulha de ser laico e maioritariamente agnóstico ou ateu (se é
que há diferenças entre estes dois conceitos), é tão bizarro ver a fé
inabalável dos seus militantes nas virtudes divinas (otimistas irritantes) do
seu líder máximo. Há qualquer coisa de místico na veneração – diríamos mesmo
submissão intelectual – dos socialistas a António Costa.
3. De tal modo que há socialistas patriotas e inteligentes
que já perceberam que a geringonça pode, a prazo, liquidar a credibilidade do
PS – mas preferem a comodidade e o comodismo do silêncio. Da resignação.
Preferem ver o seu partido, a sua pátria, a caminharem para o precipício, a
assumir a ousadia e a bravura intelectual da discordância, do alerta e da
prudência. Quando nós escrevemos, há oito dias, que o “Estado vai nu”, mal
sabíamos quão erradas se revelariam as nossas palavras. Contudo, ao invés do
que afirmaram os nossos críticos, falhámos por defeito – e não por excesso.
Efetivamente, o excesso pressupõe que a análise política exceda a realidade,
que vá além da realidade. Ora, o nosso diagnóstico foi mais benigno que a
realidade; ficou aquém da realidade. Logo, há oito dias, dizer-se que o Estado
vai nu poderia ser tido como dramatismo; hoje, dizer-se que o Estado vai nu
pode ser tido como simplificação da realidade. Relendo o texto da última edição
deste “Secar o Pântano”, concluímos que, afinal, as nossas palavras foram
eufemísticas.
4. Com efeito, à luz dos factos que apurámos no espaço de
uma semana, afirmar-se que o Estado vai nu é o único elogio que se pode
formular a António Costa: aquilo que tem sucedido nos últimos dias, no coração
e no cérebro da máquina da administração pública, é constrangedor.
Inexplicável. Indescritível. É pavoroso (não há adjetivação possível que
retrate com fidelidade o quão embaraçoso tem sido o governo português na última
semana). Primeiro, os portugueses vieram a saber que, de facto, a tragédia de
Pedrógão Grande foi amplificada pelo caos administrativo e pela desorganização
da máquina administrativa. A sensação com que se fica é que não há liderança,
não há procedimentos definidos com rigor, não há um plano de contingência, não
há planeamento, não há rigorosamente nada! A administração pública, para a qual
(e bem) nós pagamos impostos, multiplica-se por uma série de entidades,
organismos e agências – no final, porém, ninguém sabe como agir, quais as suas
funções e a quem devem reportar. Que António Costa não julgue que logrará
enganar os portugueses com a história da trovoada seca: esta pode ter sido a
causa inicial dos fogos; não foi certamente a causa da tragédia.
5. Como se não bastasse, a semana terminou de forma ainda
mais desastrosa para Costa: armamento militar poderoso foi furtado na base
militar de Tancos, lançando a preocupação na comunidade internacional (não só
entre os portugueses) e ferindo a credibilidade do Estado português. A noção de
que o material assim subtraído tem como destino a sua comercialização no
mercado negro para causas terroristas lança dúvidas sobre a capacidade de
Portugal para lidar com estes fenómenos (ou, noutra perspetiva, lança certezas
sobre… a incapacidade portuguesa): afinal, o setor que tem como premissa
essencial da sua existência a organização e a disciplina é tão caótico como a
administração interna, a educação ou a agricultura sob a batuta de António
Costa.
6. Concluindo: a administração pública – como os fenómenos
recentes comprovam – espelha aquilo que é o governo. É um governo geringonçado,
logo é uma administração pública geringonçada – logo, é um Portugal
geringonçado. Se o
governo de António Costa resulta de um entendimento político
exótico, de arranjinhos políticos permanentes entre forças que se odeiam e da
concessão de favores a uns e a outros, como poderíamos esperar que a
administração pública não fosse também uma manta de retalhos em que cada um
manda à sua maneira? Quer seja na administração interna, quer seja na defesa,
quer seja na educação ou noutro setor qualquer, é cada um por si e Deus por
todos. É o desenrascanço nacional na versão geringonça: deu-se poder às várias
estruturas que são dominadas por cada um dos partidos que apoiam o governo, criando
uma espécie de “policentrismo decisório” dentro da administração – do qual o
próprio governo não consegue agora desenvencilhar-se…
7. Podemos, pois, começar a assistir ao princípio do fim da
maior fraude da política portuguesa: António Costa, o génio da política –
criação que contou com a conivência de muitos, incluindo (ou sobretudo?) da
comunicação social. Que Costa tem muito jeito para habilidades e arranjinhos,
lá isso tem. Mas querer reduzir a política a esta política é um insulto à
inteligência dos portugueses e um atentado ao nosso futuro coletivo.
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