"Não faz sentido continuarmos a dar benefícios fiscais
a fundos imobiliários"
A presidente da Assembleia Municipal de Lisboa defende a
criação de uma plataforma pública com informação sobre valores das rendas e
quer que a câmara tenha um papel regulador no mercado imobiliário.
JOÃO PEDRO PINCHA 10 de Julho de 2017, 8:55
Em fim de mandato, Helena Roseta faz um balanço positivo dos
últimos quatro anos, mas admite que é necessário reforçar a fiscalização à
câmara. E define a habitação e a mobilidade como as prioridades dos Cidadãos
Por Lisboa -- o movimento a que preside -- para os próximos anos.
Considera que a actuação da assembleia municipal tem
contribuído para um escrutínio eficaz da acção da câmara?
É a nossa obrigação legal e constitucional. Quem tem de
fazer esse juízo não sou eu. Os eleitores é que têm de julgar se nós temos
cumprido essa missão ou não. Mas comparando a forma como trabalha a Assembleia
Municipal de Lisboa com a forma como trabalham as outras e as condições que
temos, e que exigimos, vê-se que há uma diferença muito grande. Penso que, na
medida das nossas possibilidades, temos cumprido o nosso papel fiscalizador,
quer em termos de escrutínio das propostas camarárias, quer em termos de
possibilidade de os cidadãos também participarem nesse escrutínio. Penso que
somos a única assembleia municipal do país que tem tantas comissões permanentes
a funcionar.
E dizem-me: “Mas isso custa dinheiro.” Pois custa, mas a
democracia tem custos. Eu já tornei público que o orçamento da assembleia
municipal é 0,1% do orçamento do município. É um custo perfeitamente
comportável. Agora, penso que vai ser preciso mexer na legislação por forma a
que as assembleias municipais tenham um melhor reconhecimento, até do ponto de
vista legal. O ponto mais crítico, para mim, é o facto de não terem autonomia
administrativa e financeira. Ou seja, uma assembleia municipal só reúne se a
câmara autorizar que as senhas sejam pagas aos deputados. Isto é caricato: o
órgão fiscalizador só pode reunir se o órgão fiscalizado autorizar.
Os deputados municipais, ao contrário do que muitas pessoas
pensam, não são profissionalizados, recebem uma senha de presença por estarem
ali umas quantas horas, mas têm as suas vidas. E como é que vão ter tempo para
analisar as propostas, que são cada vez mais complexas, dossiers difíceis… Acho
que dá uma segurança muito grande, até para os cidadãos, saber que há não sei
quantos pares de olhos a verificar as matérias que passam por ali.
Há abertura para essa discussão neste momento?
Já foi feita várias vezes. Houve sempre alguma abertura dos
maiores partidos e uma pequena abertura dos mais pequenos, o que aliás se
compreende.
Há um paradoxo muito grande. Temos um poder local
consolidado, que praticamente não teve grandes crises nestes 40 anos, ao
contrário do que aconteceu no poder central. Evidentemente que houve
escândalos, houve corrupções, houve processos em tribunal, isso tem havido,
infelizmente, transversalmente em toda a sociedade portuguesa e em vários
escalões de poder. Mas há um ponto que distingue muito o poder local do poder
central: o poder local consome 10% da receita pública e a dívida não chega a
3%. A dívida do poder nacional é de 130%. Portanto não me venham dizer que as
autarquias não gerem bem. Isto é uma prova de que o poder local dá boa conta do
recado. E o paradoxo é este. Agora que está em discussão a atribuição de mais
competências às autarquias, eu vejo muitas instâncias, até associativas, a
desconfiarem, a dizer que é muito perigoso. Façam a comparação do que tem sido
o trabalho a nível de poder central e de poder local e perguntem-se: isto que
estamos a ver, a desertificação do país e as consequências dramáticas que isso
pode ter e já teve – se não houvesse poder local, não seria muito pior? E não é
preferível que o poder local tenha mais meios para que esse poder que está lá,
no território, possa defender o território e as populações? Basta de desconfiarem
do poder local. Confiem um bocadinho, porque se não o Estado nunca chegará aos
sítios onde as pessoas querem que o Estado chegue. Essa é a grande reforma que
falta fazer, para que tenhamos um território mais cuidado e políticas públicas
mais próximas das populações.
Voltando a Lisboa. Tem ideia de quantas recomendações feitas
pela assembleia municipal foram aceites pela câmara?
Nós vamos fazendo alguma monitorização, mas a câmara não tem
de nos dizer se aceitou ou não. O nosso regimento prevê que, a cada dois meses,
as comissões mandem chamar os vereadores dos pelouros para saber o que é que
está a correr e o que é que não está, mas essa parte ainda não conseguimos que
entrasse na rotina de funcionamento da assembleia. Esse é, para mim, um dos
trabalhos privilegiados das comissões. No próximo mandato vamos ter de puxar
por ele. É uma área que vamos ter de melhorar.
Actualmente, uma das maiores preocupações em Lisboa é a
habitação…
Há uma preocupação muito grande porque nós estamos a sofrer
as consequências de uma espécie de tempestade perfeita. Houve a liberalização
das rendas há cinco anos e foi dado um período de transição que acaba agora.
Para alguns, esse período é prorrogado, com as alterações que fizemos na
Assembleia da República, por mais alguns anos. Mas são franjas muito pequenas:
cidadãos com mais de 65 anos ou com 70% de deficiência, ou inquilinos que na
altura em que foi feita a revisão da situação contratual invocaram que tinham
rendimentos muito baixos. São apenas esses. Todos os outros – e aqui está o
grosso – passaram de contratos de duração indeterminada para contratos de cinco
anos ou até menos. E os cinco anos estão a terminar agora. Esta é a primeira
alteração profunda que se deu no mercado da habitação em Lisboa.
Com a liberalização das rendas também se fez a liberalização
das obras profundas. E foi um erro ainda pior, porque se tornou uma obra
profunda um pretexto para despejo barato. Isto foi dito aqui, por vários
intervenientes da sociedade civil, que bastava invocar “obras profundas”, sem
sequer ter de as demonstrar, para poder fazer um despejo com indemnização de um
ano de renda – ainda por cima, rendas antigas. Isso também já foi alterado, mas
pelo caminho atingiu muita gente, não só habitacional mas também
não-habitacional. A maior parte das lojas históricas que fecharam foi por
“obras profundas”.
A terceira circunstância grave foi uma que, à partida, é
positiva, mas que neste contexto de mercado acabou por ter efeitos muito
perversos: uma enorme explosão do mercado turístico. O turismo explodiu em
Lisboa e isso é positivo, houve um enorme aumento de emprego e de receitas. Mas
passou a constituir uma pressão muito grande. E como, quarta circunstância, a
fiscalidade do arrendamento de longa duração é tudo menos amigável, isto fez
com que quem tinha espaços para alugar começasse claramente a fazer a mudança
da habitação permanente para o alojamento local. Isto criou uma escassez
completamente artificial no mercado de arrendamento em Lisboa e nós sabemos,
segundo as leis do mercado, o que é que acontece quando há escassez: o valor
sobe e sobe para níveis completamente incomportáveis.
E falta ainda acrescentar ainda a reabilitação urbana. Na
medida em que a reabilitação urbana torna a cidade mais atraente, também vai
contribuindo para estas coisas todas. Esta reabilitação é feita por
particulares ao abrigo da liberalização das obras profundas e, portanto, sem
qualquer preocupação com a garantia de que se mantém habitação de longa
duração. Todos estes factores criaram aqui uma tempestade perfeita. Estamos num
momento crítico.
A câmara não devia ter um papel mais activo nesta situação?
O que eu entendo é que o papel do município, em matéria de
habitação e políticas de gestão imobiliária, tem de ser um papel regulador.
Estimular quando o mercado está em baixo, por um lado, e contrariar, intervir
mesmo, na política de preços, através do aumento de oferta pública, de medidas
fiscais ou incentivos quando o mercado está demasiado quente. É isso que falta
fazer.
Nós ainda temos os benefícios fiscais aprovados na altura em
que se constituiu a grande área de reabilitação urbana, que é quase toda a
cidade [em 2012]. São benefícios fiscais para um período de grande depressão e
que vão ter de ser passados a pente fino. Não faz sentido nenhum continuarmos a
dar benefícios fiscais a fundos imobiliários ou a investimentos estrangeiros,
não faz sentido nenhum. Temos de perceber que herdámos uma cidade em profunda
depressão. Depressão financeira e depressão geral do mercado. Eu recordo-me de
passarmos na Avenida da Liberdade e os prédios estavam todos a cair, até
ardiam. Passou-se muito rapidamente de uma situação de depressão para uma
situação de sobreaquecimento do mercado.
Há ainda outra componente que é a da informação de mercado.
Nós temos de ter informação pública fiável sobre valores de venda e valores de
arrendamento. Toda a informação que nós temos é informação do lado dos
promotores. A Autoridade Tributária tem informação rigorosa sobre o valor de
todos os contratos de arrendamento e a câmara municipal tem informação sobre o
valor de todas a vendas, porque é obrigatório mandar essa informação por causa
do direito de preferência. Mas essa informação, que é preciosa para a gente
perceber o que é que está a acontecer no mercado, não a temos organizada
publicamente. Vai dar trabalho a montar, mas eu considero que é absolutamente
essencial. Não é possível regular o mercado sem haver transparência do mercado.
Isto tem sido navegação à vista?
É navegação à vista, completamente. E muitas vezes é
reactiva, nem sequer é pró-activa. Por exemplo, o caso da Rua dos Lagares é
reactivo. A câmara vai intervir porque já aconteceu. E perguntar-se-á: “Então
mas num caso destes, em que há possibilidade de 40 pessoas ficarem sem casa,
porque é que a câmara não exerceu direito de preferência?” Porque no momento do
exercício do direito de preferência, a câmara nem sequer é informada do que é
que se passa no prédio. Quando é informada só dizem que está a vender-se por
tal valor, não se diz que tem lá não sei quantas pessoas dentro, quantos
contratos de arrendamento… Também não se dizia no caso das obras profundas.
Agora já passou a ser obrigatório: o proprietário, quando informa a câmara das
obras, tem de dizer qual a situação de arrendamento no prédio, para a câmara
saber com que é que está a lidar. Porque assim a câmara pode impor condições,
nomeadamente que tem de continuar a haver habitação permanente, que as lojas
classificadas não podem ser retiradas, etc.
A reabilitação urbana com essas consequências – a perda de
comércio histórico e de habitação permanente – tem sido permitida pela câmara…
Porque a informação não vinha. Eu procurei perceber porque é
que a câmara intervinha tão pouco e condicionava tão pouco as alterações. É
porque a informação não era obrigatório ser dada. No caso das obras profundas
já passou a ser, mas no caso do direito de preferência ainda não está. Às vezes
são pequenas alterações legislativas que criam condições para se fazer de outra
maneira. Outra coisa muito pequenina: segundo o regulamento PDM em vigor, o uso
habitacional é definido como uso para habitação permanente ou alojamento local.
É o mesmo uso, portanto a câmara não tem de autorizar nenhuma mudança de uso
para as pessoas fazerem um alojamento local. Têm de cumprir as regras do Turismo
de Portugal, do registo, isso tudo, mas não há nenhuma interferência [da
autarquia]. Isso vamos ter de afinar.
E também é necessária uma alteração mais profunda da Lei das
Rendas?
Com certeza. Eu defendo-a, a que fizemos no Parlamento foi
claramente cirúrgica, com uma grande resistência do Ministério do Ambiente –
que tem a tutela –, que ainda estava muito preocupado com o arrefecimento do
mercado da reabilitação urbana e não queria criar dificuldades. Mas era um
compromisso do programa de Governo. Eu fui bastante insultada pelo protagonismo
que tomei nesta matéria, mas nestas coisas quem vai à guerra, dá e leva.
Há uma coisa que está no programa do Governo que ainda
ninguém apresentou sequer, que é voltarmos a ter, na lei do arrendamento, uma
conexão forte entre o valor da renda e o estado de conservação. Esse nexo foi
quebrado pela Lei das Rendas do PSD/CDS e foi mal quebrado. Porque, se houvesse
nexo entre os dois factores, a reabilitação urbana teria sido mais positiva, no
sentido de não permitir aumentos de rendas quando o estado de conservação não é
compatível.
Eu costumo usar a imagem do David e do Golias. Nós estamos a
viver um tempo em que as pressões sobre as cidades são globais e as respostas
são locais. Há uma desproporção enorme entre aquilo que o município pode fazer
e as pressões que se exercem. E só há duas formas de tentar combater isto. Por
um lado é as cidades ligarem-se em rede, percebermos o que é que os outros
fazem para ver o que podemos fazer aqui. Outra é termos uma opinião pública
vigilante. Entre David e Golias, no geral a opinião pública pende mais para o
lado do David, dos habitantes, dos cidadãos.
Falou do caso da Rua dos Lagares. Admite que a câmara venha
a fazer uma expropriação, como foi recomendado pelo Bloco de Esquerda?
É sempre possível e essa recomendação acabou por ser
aprovada. Mas é preciso ter em consideração que, quando se está a fazer uma
negociação, a melhor maneira não é dizer à outra parte aquilo que vamos fazer.
Quanto menos a outra parte souber sobre as possibilidades que há deste lado,
mais hipóteses tem a negociação. A contenção da câmara tem que ver sobretudo
com uma estratégia negocial.
O que lhe parece a proposta do PS de envolver as assembleias
de condóminos na decisão do alojamento local?
Eu escrevi para o PÚBLICO que aquilo assim não se faz. O
problema do alojamento local tem sido muito trabalhado pelo lado do turismo,
tem sido mal trabalhado ou não trabalhado do lado da habitação. O nexo entre as
duas coisas é muito importante. Vamos ter que mexer nessa matéria na próxima
legislatura, na Assembleia da República. O turismo é uma porção importante da
actividade económica do país, tem um impacto importantíssimo e o trabalho que
tem sido feito no sentido de registar [o alojamento local] é extremamente
importante. Agora, há outras medidas a tomar. Há um conjunto de propostas
interessantes. A última que li é da Associação de Inquilinos Lisbonenses e a
preocupação deles não é tanto que o condomínio se pronuncie sobre se concorda
ou não. É mais no sentido de garantir relações de boa vizinhança.
É muito fácil a um operador que tenha muitas unidades de
alojamento local criar empresas na hora para distribuir aquilo por uma data de
operadores diferentes que, na prática, são todos o mesmo. Evidentemente que se
nós formos para uma coisa muito simplista, do tipo “quem tiver mais do que x”,
essa entidade no dia seguinte já não existe, existem éne entidades cada uma com
um. É muito fácil dispersar. A grande crítica que eu fiz à iniciativa do PS é
que é excessivamente simplista. Não é tão simples assim, não é igual em Lisboa
ou no Algarve, não é a mesma coisa em Santa Maria Maior ou em Marvila.
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