“No tempo de Salazar, os ministros
mandavam nos ministérios”
O general Garcia Leandro diz, em
entrevista ao Observador, que se o CEME avisou o ministro da falta de
segurança, a culpa é do ministro. Se não o fez, a responsabilidade é dele.
05 Julho 20171.128
Pedro Rainho
O general Garcial Leandro, 77 anos, foi vice-Chefe do
Estado-Maior do Exército, conselheiro de Portugal na NATO, comandante da missão
das Nações Unidas no Sahara Ocidental. Uma das lições que aprendeu na sua longa
carreira militar explica-se assim: a missão cumpre-se sempre, até se pisar a
linha vermelha. No assalto ao armamento de guerra de Tancos, essa linha foi
ultrapassada quando se encarou como “rotina” uma fragilidade na segurança que
esteve dois anos para ser resolvida e que abriu a porta ao furto do armamento.
Se tem um responsável em mente para o que se passou no parque de paióis de
Tancos, Garcia Leandro não assume, mas diz: “Se o CEME alertou o ministro para
as consequências graves que esta situação tinha, o responsável é claramente o
ministro. Se não alertou, a responsabilidade é dele.”
Dizer que tem havido outros assaltos do mesmo género que o
de Tancos em países como França ou Estados Unidos retira alguma gravidade ao
que se passou na semana passada?
Não, para mim, não tira. O que se passou em Tancos é uma
coisa, o resto é outra. Com o mal dos outros estou eu bem.
Então de que serve este argumento usado pelos responsáveis
políticos?
Existe para dizer que não é caso único, mas o que me
preocupa é este caso, este país, com todas as consequências que isso tem em
termos de segurança para as populações e para a imagem do país no exterior.
"Se o CEME alertou o ministro para as consequências
graves que esta situação tinha, o responsável é claramente o ministro. Se não
alertou, a responsabilidade é dele"
Está-se a dar demasiada importância ao que aconteceu em
Tancos?
Não, não está. Isto é muito grave.
Já disse que isto não podia ter acontecido.
Não podia. A segurança nos depósitos de material de guerra
sempre foi uma das preocupações das autoridades militares. Os paióis sempre
foram uma grande preocupação. Isto é algo que nunca aconteceu na minha vida.
Por todos os sítios por onde andei em guerra e, sem ser em guerra, em missões
internacionais… Para uma coisa destas são precisos lapsos, asneiras, limitações
grandes de meios.
O que revela este assalto?
A minha abordagem não tem nada de corporativo ou
pré-partidário, não tem pré-posições a esse respeito. É só uma questão de
interesse nacional e de avaliar o que se deve fazer para correr bem. Há aqui
três ou quatro aspetos enquadrantes. Um deles é a cultura militar, que é fazer
sempre a missão, mesmo com cortes de meios. Imagine: tem um orçamento de 100
mil euros e faz a missão. Cortam 10 mil, faz. Cortam mais 10 mil e faz. Até que
a casa cai. A cultura é tentar sempre cumprir a missão.
Sempre?
Há momentos em que, como avisei várias vezes, a casa pode
cair, o castelo de cartas vai abaixo. Há uma linha vermelha que não se pode
ultrapassar.
Neste caso, foi passada a linha vermelha?
Isto já vem de trás, é um acontecimento que não se esperava.
Acontece também que, do ponto de vista do sistema de Governo, houve uma grande
alteração. Mesmo no tempo do professor Salazar e de Marcello Caetano, os
ministros mandavam nos ministérios. Tinham muito ou pouco dinheiro, mas o
ministério era piramidal. O ministro estava no topo e tinha o seu dinheiro. De
há 15 anos a esta parte, com a evolução da tecnologia e com a necessidade de
controlar as finanças, o Ministério das Finanças entra, transversalmente, nas
direções gerais todas. Entra, corta, tira e põe. Os ministros não mandam, têm
uma falta de poder muito grande. Até pode haver uma grande compreensão daquilo
que são as necessidades da sua área, mas têm de negociar isso com o Ministério
das Finanças. As Finanças têm uma acumulação de assuntos que, tendencialmente,
fazem paralisar a máquina e, por outro lado, obrigam os ministros a negociar
caso a caso. É um drama permanente.
Essa intervenção das Finanças deve ser limitada?
Há assuntos, tais como a segurança nacional que não podem
ser tratadas dessa maneira. Não estamos a falar de ter ou não ter papel A4.
"Os depósitos tinham sempre pessoal a dormir lá dentro.
Estava sempre ocupado. Mesmo no Ultramar, havia sempre dois militares lá dentro
que nunca saíam."
Isso exige que na tutela esteja um ministro com poder
político.
Tem de ter poder político e compreensão, não pode ter uma
posição em que diz que está ali para dar ordens. Tem de ter uma mentalidade de
aprendizagem, até porque na maior parte das vezes não vão para lá a conhecer os
assuntos. Há pessoas que passaram por ali e que percebiam muito bem aquilo de
que estavam a tratar, como Jaime Gama, Luís Amado, mas a maior parte vai fazer
um on the job training [aprender já em funções].
E Azeredo Lopes?
Prefiro não me pronunciar… O dr. Azeredo Lopes conhece o
sistema internacional. O grande drama da maior parte dos ministros que têm
entrado no Governo é que não conhecem a máquina do Estado. Podem conhecer um
assunto numa abordagem macro, mas não conhecem a máquina do Estado. Isso leva a
que o Governo de Passos Coelho não tenha feito a reforma do Estado. Anunciou a
reforma do Estado, disse que o dr. Paulo Portas ia fazer a reforma do Estado… o
dr. Paulo Portas também aprendeu a fazer on the job training como ministro da
Defesa.
Estávamos a falar de linhas vermelhas. Como é que esse
princípio se aplica ao assalto a Tancos?
As chefias militares das Forças Armadas têm missões para
cumprir e essas missões têm de ter meios, uma estrutura, orçamento, pessoal. Na
questão dos paióis, o que se passou é que, no tempo do dr. Aguiar Branco, o
corte de meios em pessoal, em finanças e em material foi muito, muito, muito
grande. As unidades ficaram muito reduzidas de meios, nomeadamente humanos.
Ao ponto de já não se poder cumprir a missão?
Isso não sei responder. Mas alguém há de saber responder a
isso. Este Governo ainda não conseguiu inverter isso. Agora, temos de ter a
noção de que vivemos num tempo de paz e de calma, mas o mundo não vive. Nós
estamos aqui relativamente tranquilos mas o mundo não está. Temos de estar
preparados para qualquer situação de imprevisibilidade em que tenhamos de
responder no âmbito da segurança nacional, da segurança na aliança Atlântica,
em que temos o nosso papel, dentro da UE, dentro da CPLP, dentro da ONU e
queremos sempre tomar parte disso. Mas não podemos fazê-lo deixando o interior
do país, as ilhas e o mar completamente desprotegidos. Quando chegamos à
questão dos paióis, a localização daquela estrutura obriga a que tenha uma
segurança óbvia, até porque é a zona onde há mais meios militares. Se os meios
militares baixarem até um determinado nível, a partir de certa altura não se
pode garantir a segurança.
"Mesmo no tempo do professor Salazar e de Marcello
Caetano, os ministros mandavam nos ministérios. Tinham muito ou pouco dinheiro,
mas o ministério era piramidal."
Os dados que foram conhecidos indicam que a segurança
naquela infraestrutura estaria a cargo de 10 militares.
Mas não foi sempre assim, já foram 30. E 30 não é a mesma
coisa que 10, independentemente da videovigilância, porque em 1980 não havia
videovigilância. Mas o mundo também era diferente. Isto de se fazerem assaltos
a estes locais não existia.
Portugal não acompanhou essa evolução em termos de
segurança?
Por um lado, tivemos os cortes no orçamento e no pessoal.
Por outro lado, tínhamos o sistema de videovigilância que estava obsoleto e ia
ser substituído. Onde é que está a falha? A falha está em dizer que determinado
equipamento não está em condições, que esse equipamento é vital e não pode ser
sujeito à rotina da burocracia.
Não se pode esperar dois anos para intervir…
Tem de ser já. E aí é que o chefe militar tem de dizer que
não se responsabiliza e perguntar ao ministro se assume a responsabilidade. Tem
de dizer que não tem condições para fazer a segurança. Normalmente, quando as
coisas são postas assim, a resposta é positiva. As pessoas não querem ficar com
a responsabilidade em cima. Mas, historicamente, não são os ministros que ficam
com a responsabilidade em cima, são os generais e os almirantes. Situações de
grande responsabilidade não podem ser tratadas como situações de rotina, são
situações excecionais e não podem ter uma decisão de rotina.
Interpreto das suas palavras que este Chefe do Estado-Maior
do Exército (CEME) nunca terá tomado essa posição de princípio de dizer: assim
não dá.
Não sei o que foi feito.
Mas sabemos o que existe.
Relativamente aos paióis, essa decisão tinha de ser tomada.
Não se pode cortar na segurança dos paióis e a questão da videovigilância tinha
de ser resolvida. Depreende-se das palavras das pessoas que estão em funções
que estão de tal modo esmagadas pelo peso das Finanças que perdem a capacidade
de distinguir o que é extraordinário e vital daquilo que é rotina.
O comandante do Exército não deve ter essa capacidade
independentemente das circunstâncias?
Tem. E tem de avisar: “Olhe que a partir de agora não
garanto a segurança disto.” E admito que tenha avisado. Agora, não sei de quem
é a responsabilidade.
Exonerar cinco comandantes resolve a questão ou serve para
aliviar a pressão sobre os responsáveis políticos?
O CEME tomou essa decisão, que não é muito habitual, no
sentido de o processo não ter qualquer limitação ou constrangimento.
Mas a informação que tenho é a de que estes comandantes que
foram exonerados colaboraram desde o primeiro momento com a investigação,
facultaram tudo o que lhes foi pedido.
Esta questão tem esse racional apresentado pelo CEME, mas
tem outro. A humilhação para os comandantes que foram suspensos
transitoriamente. Podemos dar aqui um exemplo futebolístico: o Fernando Santos
diz que os seus jogadores são os melhores, sempre, e que iria com eles para
qualquer lado. Era isto que os coronéis estavam à espera que lhes dissessem.
Qual seria a solução para o assacar de responsabilidades
neste caso?
Acho que é deixar correr. A investigação há de chegar ao
final e os responsáveis por essas patrulhas, se as coisas estavam a correr
normalmente, não têm nada que temer.
Este CEME tem condições para continuar em funções?
Não queria pronunciar-me sobre isso. O ambiente que se criou
relativamente a ele no Exército é mau, ele tem de ter a confiança do seu
pessoal. Esta questão é muito [do âmbito de responsabilidades] do senhor
primeiro-ministro. E o mecanismo comportamental do Presidente da República é
muito curioso, mas é correto. Numa primeira fase, dá sempre apoio moral. Numa
segunda fase, diz que é preciso assumir as responsabilidades.
Fica a sensação de que está tudo refém dos inquéritos. Não
há tomadas de posição pessoais sobre as falhas, não se assume responsabilidade
e não se tiram consequências se não houver um inquérito que atribua essa
responsabilidade.
O CEME acha que estava a fazer o melhor que podia com a
segurança dos depósitos de material de guerra. Não tenho dúvidas de que isso é
verdade, mas dentro de uma linha de rotina. Não numa linha de situações
excecionais. Nessa linha de situações excecionais, não respondeu. No mecanismo
de pensamento militar, em todas as situações têm de se ver as hipóteses, as
chamadas modalidades de ação: qual é a modalidade mais perigosa e qual é a mais
provável. Neste caso dos paióis, tinha de se fazer um cuidadoso misto. Julgo
que nunca acreditaram na possibilidade de aquilo ser assaltado. Porque se
tivessem acreditado o esquema montado teria sido diferente.
"Esta questão tem esse racional apresentado pelo CEME,
mas tem outro. A humilhação para os comandantes que foram suspensos
transitoriamente."
O senhor tem um responsável identificado, só não quer
apontá-lo.
Pode deduzir isso do meu pensamento, mas eu não sei qual é o
responsável. Porque se o CEME alertou o ministro para as consequências graves
que esta situação tinha, o responsável é claramente o ministro. Se não alertou,
a responsabilidade é dele.
O ministro está manietado? Como seria visto um segundo
afastamento de um CEME no mesmo mandato de um ministro?
Nesta entrevista, nem o entrevistado nem o entrevistador se
podem substituir a um assunto que é do primeiro-ministro.
António Costa tem de intervir diretamente neste processo?
Ele está no topo do executivo.
Em setembro morreram dois instruendos do curso de Comandos
e, nesse momento, o CEME não suspendeu nem exonerou qualquer responsável
militar. O CEME devia ter agido?
Não lhe sei dizer porque a estrutura do regimento de
Comandos obriga a vários patamares de responsabilidade. Pode ter acontecido que
ao nível do comando tudo tenha sido bem feito e tenha sido mal executado por
outras pessoas. Nestas forças especiais, existe gente muito nova cheia de
vontade de fazer coisas e que depois exagera.
O coronel Dores Moreira é suspeito de falsificar documentos.
O que lhe pergunto é se houve uma duplicidade de critérios na intervenção do
CEME?
Não lhe sei dizer.
Disse há pouco que, no tempo em que estava no ativo, a
segurança dos paióis era algo relevante.
Os depósitos tinham sempre pessoal a dormir lá dentro.
Estava sempre ocupado. Mesmo no Ultramar, havia sempre dois militares lá dentro
que nunca saíam.
Aqui fala-se de rondas espaçadas em 20 horas.
Isso tem muito a ver com o corte dos efetivos, que tem
enormes consequências. Para aquele dispositivo dos paióis havia cinco unidades
responsáveis, e isso quer dizer uma coisa: não havia nenhuma unidade que tivesse
efetivos suficientes para garantir aquela segurança, que teve de ser
substituída.
Tancos não é a única infraestrutura com elevado grau de
sensibilidade. Há outros pontos em que a segurança possa estar comprometida e
para que se deva olhar?
Julgo que não é a minha opinião que conta. Julgo que isso é
imediato. Assim que isto aconteceu até o senhor ministro se envolveu e disse
que tinha de ser feita uma fiscalização cuidadosa noutros paióis. No que
respeito à dimensão e importância, os maiores são os de Santa Margarida. Existe
um depósito de material NATO, na margem sul, mas é da NATO.
O assalto a Tancos teve grande repercussão internacional. A
imagem do Exército fica fragilizada com este episódio?
Acho que sim, o próprio CEME disse isso.
E do ponto de vista internacional? Portugal integra várias
organizações — já as referiu, aliás. Fica comprometida a credibilidade do país?
Há uns anos, estava na RTP, no programa Prós e Contras, uns
dias depois da prisão do antigo primeiro-ministro José Sócrates. O programa até
foi adiantado para haver a certeza daquilo que ia acontecer, se ficava ou não
em prisão preventiva. Essa mesma pergunta foi-me feita, naquele caso em relação
à detenção de um antigo primeiro-ministro, e eu disse que, com certeza, punha
em causa a posição portuguesa no contexto internacional.
E em relação a Tancos?
Hoje, tenho dúvidas. Os escândalos a nível mundial são
tantos e tão grandes que não sei se terá tanta importância.
Terá mais se um dia este material for usado num atentado
terrorista em Madrid, Paris, Londres…
Claro, com certeza. Mas as redes de criminalidade organizada
são muito boas. E não é este material que vai resolver o problema deles. Isto
ajuda. Se fossem só pistolas ou munições que tivessem sido levados esse
problema não se punha. Os explosivos, os lança-granadas é que chamam a atenção
para isso. Até porque há material que pode ser usado para fazer explodir um
caminho de ferro, um comboio, um avião. Mas os especialistas em informação
consideram que o assalto está mais ligado a tráfico de armas. Agora, é evidente
que isto não traz elogios para o país.
E não podemos ficar a perder na relação com os parceiros da
NATO, parceiros europeus, etc.?
O facto em si é muito mau, mas daí a tirar consequências
gerais para o futuro não creio que possa acontecer.
Que lição se deve tirar de tudo isto?
Nunca deixar passar a linha vermelha. É bom não esquecer
isto: quem fica sempre com a responsabilidade são os chefes militares. Os
políticos passam, mudam, vão fazer outra coisa, até podem ser substituídos, mas
não ficam com a responsabilidade. O chefe militar tem de ter o cuidado de não
deixar entrar estas situações em incapacidade de cumprimento.
Fazendo esse alerta, e não havendo a tal resposta por parte
do poder político de que falava, o chefe deve sair?
Isso tem de ser analisado caso a caso, pessoa a pessoa.
Alertando, conforme a gravidade da situação, então deve dizer que não contem
mais com ele.
O senhor já teve responsabilidades como vice-CEME. No seu
caso, o que faria?
Lembro-me de um caso de um general americano, comandante da
NATO na Bósnia. Veio a ser mais tarde CEME nos EUA — imagine a dimensão daquilo
— e estava nessas funções quando foi a invasão do Iraque. Ele dizia que o
Iraque tinha a dimensão de França e que precisava de 450 mil homens para pôr
lá. E o secretário de Estado da Defesa — que, por acaso, se chamava Donald
[Rumsfeld], um nome que começa a ser perigoso — disse que nem pensar, não lhe
dava mais de 175 mil. E o general disse-lhe: “Então, não conte mais comigo,
vou-me embora.”
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