Prédio avança na Mouraria mesmo contra a vontade de vizinhos
e de divisão camarária
POR O CORVO • 19 JULHO, 2017 •
Depois de mais de um
ano e meio de obras, e de dúvidas sobre a evolução das mesmas, o pior receio
dos moradores da zona das Olarias, na Mouraria, parece confirmar-se. O
condomínio “AMouraria”, que está a ser construído, desde 2015, no local de um
antigo palacete do século XIX, situado entre o Largo das Olarias e o Jardim da
Cerca da Graça, deverá contemplar um terceiro edifício de arquitectura
contemporânea, a edificar em parte do espaço do antigo jardim dessa
propriedade, situada no enfiamento entre a Rua dos Lagares e a Calçada do
Monte. Isto apesar de a sua construção, alega a Divisão de Projectos e
Edifícios da Câmara Municipal de Lisboa, chocar com a suposta reserva daquele
espaço para uma área verde.
É a confirmação de um
cenário que tem sido motivo de conversas entre os moradores e fazia já parte
das campanhas publicitárias para a comercialização do condomínio – promovido
pela empresa luso-francesa Sustentoasis SA, ligada ao grupo Libertas -, quando
ainda nem sequer existia autorização camarária para construir esse prédio.
Mesmo um abaixo-assinado dos moradores foi insuficiente contra o avanço do
projecto. Apesar das garantias em sentido contrário, dadas a O Corvo, há um
ano, pelos donos do empreendimento, será mesmo construído o tal prédio,
baptizado como “Jardim dos Lagares”. Isto apesar de os residentes o
considerarem lesivo dos seus interesses, devido ao impacto visual e à alegada
redução da exposição solar das suas casas.
O edifício nascerá
contra a vontade da Divisão de Projectos e Edifícios da Câmara Municipal de
Lisboa, num local que, argumentam os seus responsáveis, deveria estar reservado
a permanecer como “espaço verde de recreio e produção a consolidar”, de acordo
com o Plano de Urbanização do Núcleo Histórico da Mouraria (PUNHM). Tanto que
vetaram a sua construção, por “não existir enquadramento regulamentar”. Um
indeferimento contrariado, porém, pelo director de Departamento de Projectos
Estruturantes, que alega ser “um lapso material” a sua caracterização como
“zona verde”. Razão pela qual o prédio recebeu luz verde da Direcção Municipal
de Urbanismo e do vereador Manuel Salgado.
O empreendimento em
causa, AMouraria, compreende a reabilitação de dois velhos edifícios do século
XIX – o tal palacete, situado no Largo das Olarias, e um prédio na Calçada do
Monte – e ainda a construção do referido terceiro edifício (“Jardim das
Olarias”) para os transformar em “19 modernos apartamentos”. Quando o projecto
estiver terminado, encontrar-se-á dotado de um jardim com piscina, sobrelevado
à cota da Rua dos Lagares, para uso exclusivo dos condóminos. Haverá também
lugar para spa, sala de fitness e, construído sob a piscina e o espaço verde
circundante, um parqueamento para 71 automóveis – ao lado do qual surgirá
também um espaço comunitário. A brochura promocional garante que este será o
“único condomínio privado com um grande jardim, piscina e parqueamento, no
centro histórico de Lisboa”.
Ora, a referida
piscina e a sua zona envolvente, bem como o parque subterrâneo que surgirá sob
essa área, foram construídos naquilo que era o logradouro do palacete. No
espaço sobejante, no enfiamento entre a Calçada do Monte e a Rua dos Lagares,
os promotores imobiliários vislumbraram, desde o início, uma boa oportunidade
para construir o mencionado prédio, comercializado como “Jardim dos Lagares”, e
assim aumentar as possibilidades de valorização do empreendimento. Por isso,
optou-se logo no início do processo por uma operação de destaque de parcela,
permitindo a sua autonomização cadastral em relação ao conjunto. A intenção
inicial foi, todavia, chumbada pelos serviços da CML, em 2015, por chocar com
as restrições impostas pelo já referido Plano de Urbanização do Núcleo
Histórico da Mouraria (PUNHM). Avançaram, apesar de tudo, todas as outras
obras. Mas a pretensão original manteve-se, percebe-se agora.
Mesmo que os
trabalhos no terreno, durante o ano passado, apenas deixassem perceber a
operação de reabilitação dos dois prédios do século XIX e os trabalhos de
construção da garagem, sobre a qual ficará a piscina, os moradores da zona
ouviam da boca dos operários que o terceiro edifício era mesmo para erguer. Uma
pretensão confirmada, já no final do ano passado, pela entrada nos serviços
camarários de um pedido de licenciamento para a alteração do projecto inicial
durante a sua execução – uma prática relativamente comum em projectos
imobiliários desta envergadura.
O prédio “Jardim dos
Lagares” – sob o qual se situará o tal espaço social, a ceder à Cozinha
Comunitária da Mouraria – é avaliado na memória descritiva elaborada pelo autor
do projecto, o arquitecto José Mateus, como exemplo de “contemporaneidade,
através de um reflexão sobre aqueles que são alguns dos aspectos fundamentais
da arquitectura existente no local” e qualificado como “sóbrio”. O imóvel terá
uma altura de cerca de 13,5 metros, correspondente a quatro pisos acima da
soleira – menos dois do que o inscrito no projecto inicial, chumbado, há dois
anos, devido, entre outros motivos, ao incumprimento das regras do PUNHM. A
nova versão não colheu, no entanto, o parecer favorável da Divisão de Projectos
e Edifícios dos serviços de urbanismo da Câmara de Lisboa.
Num parecer de março passado, a que O Corvo teve acesso, o
técnico responsável propõe o indeferimento do prédio por considerar “não
existir enquadramento regulamentar para a pretensão em análise”, reiterando-se
o entendimento que justificou a decisão inicial. Ou seja, o sítio onde se vai
construir o prédio será, de acordo com a sua leitura do PUNHM, uma zona
destinada a manter a sua funcionalidade área verde ou de “logradouro/vazio
urbano”. “Este terreno, mesmo acolhendo novas ocupações com usos de equipamento
e parque de estacionamento, não perde o seu carácter de espaço vazio, não sendo
prevista a sua ocupação com nova construção destinada a habitação em
continuidade de frente de rua, com definição de novo logradouro”, lê-se no
parecer, que mereceu a concordância do chefe de divisão.
Opinião contrariada
pelo director do Departamento de Projectos Estruturantes, que, a 15 de maio,
faz uma interpretação distinta do mesmo PUNHM. O responsável considera que a
“extensão do espaço verde a esta parcela se tratou de um lapso material, uma
vez que se pretendia transpor o desenho do jardim da cerca do Convento da
Graça”. Por isso, e porque “o projecto de arquitectura se ajustou à envolvente
construída, apresenta uma volumetria conforme as regras da altura média das
fachadas, não interfere com o sistema de vista (…) e constitui um contributo
contemporâneo qualificado para a regeneração urbana do bairro e da cidade”, deu
o seu visto positivo – que mereceu a provação final de Manuel Salgado, a 6 de
junho.
De nada valeu o
abaixo-assinado, entregue em abril passado, por centena e meia de moradores da
Mouraria. Nele se considera que o prédio projectado “viola o PUNHM, que
determina que o local onde se pretende construir o prédio é destinado
exclusivamente a criação de um espaço cultural recreativo e Zona Verde (Jardim
público)”, o que, alega-se, “contraria a lógica de usufruto público” subjacente
ao plano de urbanização do bairro.“O edifício de habitação que a Sustentoasis
S.A pretende construir poderia comprometer não só o acesso público da população
a um espaço verde mas também o sistema de vistas dos prédios vizinhos”,
consideram os residentes.
O Corvo questionou a
CML, na passada quinta-feira (13 de julho), sobre esta assunto. “É comum um
parecer negativo da Divisão de Projectos de Edifícios, validado pelo chefe de
divisão, ser ‘chumbado’ pelos superiores hierárquicos?”, perguntou-se. A
resposta não chegou, contudo, até ao momento da publicação deste artigo.
Texto: Samuel Alemão
Sem comentários:
Enviar um comentário