Câmara quer combater os recantos de
Lisboa que amedrontam as mulheres
A Câmara de Lisboa quer que
"cada uma das pequenas decisões" dos seus técnicos e decisores
contribua para que os espaços públicos da cidade sejam mais seguros para as
mulheres. O debate com os cidadãos trouxe as primeiras ideias sobre o que pode
mudar para uma cidade melhor.
Aline Flor
ALINE FLOR 12 de Julho de 2017, 21:27
Pequenas mudanças,
como a localização das paragens de autocarro em locais mais movimentados ou
mais iluminação, podem fazer a diferença para que as mulheres se sintam mais
seguras
Uma paragem de autocarro isolada e mal iluminada pode levar
uma mulher sozinha a pensar duas vezes se fica ali à espera ou continua a
caminhar até à próxima paragem. Evitar um túnel para atravessar a linha do
comboio à noite pode duplicar o percurso que qualquer um faz para chegar a
casa. E andar num autocarro cheio pode ser uma experiência cheia de armadilhas
- em particular para o sexo feminino. Para tentar minimizar o problema, a
câmara de Lisboa está a estudar soluções que garantam que "a ocasião não
faz o ladrão".
A insegurança toca a todos, mas a equipa do Plano de
Acessibilidade Pedonal (PAP) de Lisboa considera que as mulheres são as que
sofrem mais consequências do medo de estar nos espaços públicos. Por isso, a
câmara abriu o debate aos cidadãos: “A rua respeita as mulheres?”
Em Lisboa, mulheres são cinco vezes mais discriminadas do
que os homens
Em Lisboa, mulheres são cinco vezes mais discriminadas do
que os homens
“Quando falamos da segurança das mulheres no espaço público,
temos que reconhecer quatro coisas: que é um problema, que este problema é
importante, que é um problema que tem solução e que as soluções estão ao nosso
alcance”, afirmou Pedro Homem de Gouveia, coordenador da equipa do PAP de
Lisboa, na abertura da conferência para debater a segurança no espaço público e
nos transportes, na manhã desta quarta-feira.
O cartaz da conferência, com a imagem de uma pessoa vestida
de Mulher Maravilha numa paragem de autocarro, deu o ponto de partida: ainda é
preciso ter “super coragem” para estar sozinha numa paragem à noite, comentou o
coordenador do PAP.
Pedro Homem de Gouveia refere que é preciso começar por
“vencer a culpabilização da vítima”. Isto já foi feito, por exemplo, na
prevenção de atropelamentos, onde a distracção dos peões e condutores tem
costas largas. Contudo, identificados alguns “factores estruturais na base de
grande parte dos atropelamentos”, foi possível à câmara gerir os espaços para
reduzir as situações em que os acidentes costumam ter lugar.
O mesmo pressuposto é aplicado à segurança das mulheres: “Se
dissermos às potenciais vítimas para evitarem usar mini-saia ou um decote,
estamos a limitar os seus direitos”. O papel da autarquia, considera o
coordenador do PAP, é “reduzir o risco nos outros factores”, nomeadamente
intervindo nos espaços públicos de forma a que haja menos oportunidades para
que as agressões tenham lugar. “Se é a ocasião que faz o ladrão, vamos reduzir
as ocasiões”.
Como isso é possível? Por exemplo, colocando as paragens de
autocarro mais próximas de cafés ou nas zonas mais movimentadas de determinadas
ruas. Ou posicionando postes de iluminação mais perto das paragens - ou por
toda a rua. “Se a rua está escura e apenas a paragem iluminada, como é que a
mulher se vai sentir?”, salienta a arquitecta Paula Miranda, do projecto
Trabalhar para os 99%.
Na conferência nos Paços do Concelho, Paula Miranda explicou
que é preciso “planear a cidade com uma perspectiva de género”. Dar atenção aos
problemas comuns para as mulheres permite identificar mais facilmente os
problemas de todos. Por exemplo, perceber que a acessibilidade não se traduz
apenas em rampas para cadeiras de rodas ou bancos mais largos. Também os
cidadãos sem diferenças funcionais precisam deste tipo de acessos: pessoas com
carrinhos de bebés, pais com crianças de colo, cidadãos idosos.
A pergunta também foi feita aos cidadãos, activistas e
profissionais que assistiram à conferência nos Paços do Concelho: numa cidade ideal,
livre de insegurança, “o que é que as faria sentirem-se seguras?”
Mais campanhas de sensibilização e mais vigilância foram
propostas comuns aos vários grupos de trabalho, mas também surgiram ideias para
aplicações móveis de partilha de experiências, botões de pânico nas paragens,
melhor sinalização dos espaços de ciclovia e espaços melhorados de ligação
entre transportes intermodais.
Perspectiva de género em todas as decisões
A equipa do Plano de Acessibilidade Pedonal quer que as
questões de género estejam presentes nas “inúmeras decisões tomadas todos os
dias pelos projectos da Câmara”. Para isso, até ao final do ano, a autarquia
vai elaborar um conjunto de “orientações concretas para técnicos e decisores”,
de forma a que “cada uma dessas pequenas decisões contribua para melhorar as
condições para as mulheres”, afirmou Pedro Homem de Gouveia. E acrescenta que
serão envolvidas todas as entidades relevantes, como a Carris, a EMEL, a PSP, a
Polícia Municipal ou os departamentos das juntas de freguesia.
Nos próximos meses, a autarquia vai levar a cabo um conjunto
de acções para recolher contributos, desde exemplos levados a cabo em outras
cidades a um levantamento de dados sobre as percepções de segurança - e
insegurança - das mulheres nas ruas e transportes públicos.
As primeiras informações já começaram a ser recolhidas: o
Observatório Nacional de Violência e Género, da Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa, realizou em 2016 o primeiro inquérito
municipal sobre a violência de género em Lisboa. Os resultados finais serão
apresentados no próximo mês, mas as conclusões preliminares apresentadas pelo
investigador Manuel Lisboa trazem algumas pistas para reflexão.
Se por um lado “os homens estão menos preocupados com a segurança
quando saem à rua”, os dados mostram que as mulheres sentem-se muito menos
seguras. Uma percepção que leva as mulheres a saírem menos, principalmente à
noite, e este medo de sair à rua é ainda maior entre as mulheres que são
vítimas de violência. O resultado: há menos mulheres a sair de casa para
actividades de lazer, seja para eventos culturais ou para frequentar bares e
discotecas. Apenas 22,8% fá-lo com frequência, quando entre os homens a
proporção sobe para 33,7%.
Adriana Souza, investigadora da Universidade de Brasília e
do ISCTE, caracteriza estas limitações e inseguranças como uma “proibição
silenciosa”. No âmbito do seu doutoramento em Transportes, a pesquisadora
brasileira está a começar a comparar a realidade das mulheres que se deslocam a
pé em Brasília, cidade que já estudou, e Lisboa. No Brasil, o problema do
assédio na rua tem levado a várias formas de mobilização das mulheres, como a
campanha Chega de Fiu-Fiu, criada pelo colectivo Think Olga.
João Afonso, vereador dos Direitos Sociais da CML, reconhece
“o incómodo, o medo e o receio que as mulheres têm de andar no espaço público”.
E refere que a importância de “juntar estas duas áreas de trabalho” - a
mobilidade e a violência de género - para pensar “a vida tal como ela é”, sem
segmentações que separem “realidades conjuntas”.
“As pessoas sentem que isto condiciona a sua vida, que lhes
provoca problemas, mas nem sempre têm noção de que é uma questão de género”,
descreve ao PÚBLICO. A solução, mais uma vez, passa por tornar mais seguros os
espaços por onde as mulheres passam diariamente. E todos os cidadãos - homens e
mulheres - ganham com isso.
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