Nós, os estrangeiros
Laurinda Alves
4/7/2017/ OBSERVADOR
Em plena campanha, Fernando Medina
diz que precisa de todos, mas não explica como nos vai ajudar a todos a viver
numa cidade melhor. Ou se vai continuar a empurrar os lisboetas para fora de
Lisboa.
Fernando Medina diz que precisa de todos nós, lisboetas, e
encheu a cidade de cartazes de fundo branco, vazio, preenchido com duplas
fotografias de apoiantes emparelhados, cujos ombros se sobrepõem e diluem no
efeito gráfico das cores nacionais justapostas, como que a criarem a ilusão
patriótica de que uns não existem sem os outros. O ligeiro desfoque provocado
por este ombro a ombro, sombreado a vermelho e verde, cria uma certa distorção
que também gera confusão. Não são muito felizes, os cartazes.
Abstraindo da qualidade gráfica e da opção dos designers e
consultores de comunicação, o que Fernando Medina nos quer dizer com estes
duetos mais ou menos desafinados, é que precisa de todos e gostaria que todos
estivéssemos com ele, por ele, nas próximas eleições autárquicas. A ideia de
que uns dão vida aos outros, e todos damos vida à cidade, é politicamente
correcta, mas isso não quer dizer que estejamos todos em sintonia. Aliás, sem
querer, o desfoque nos cartazes acaba por sublinhar isso mesmo. Há zonas de
sombra. Muitas.
Foco-me numa das que mais nos afectam a todos, todos os
dias: o trânsito.
Fernando Medina não aparece nos cartazes, mas sabemos bem o
que grita dia após dia aos lisboetas de Lisboa: vâo-se embora! Não têm lugar
aqui, na cidade onde trabalham e moram. Lisboa é para os turistas e para os ‘da
noite’. Ponto.
Os ‘do dia’, que saem de casa de manhã e voltam no fim da
tarde, trabalham arduamente e sustentam grande parte da cidade, mas têm direito
a muito pouco. A cidade tornou-se um lugar difícil para quem cá mora, mas
curiosamente está a ficar um paraíso para os que a visitam e até para os que a
querem comprar. Linda e cheia de luz, Lisboa transborda como nunca. Os
estrangeiros compram e arrendam tudo o que é bom e bonito, os preços disparam,
os turistas passeiam alegremente a pé, de tuk tuk, em carrinhos amarelos de
feira, em autocarros descapotáveis e engenhos anfíbios, mas os lisboetas,
esses, ficaram sem casas com rendas acessíveis, sem faixas de rodagem nas
estradas onde precisam mesmo de circular, sem lugares para estacionamento e sem
transportes públicos eficientes.
Os passeios amplos e o chão liso têm imensas virtudes e
reconheço-as todas, pois tenho visto mais pessoas em cadeiras de rodas a
passear com autonomia pela cidade e mais gente a circular a pé ou de bicicleta,
mas era preciso calibrar medidas. Estes passeios larguíssimos seriam bons, se
não fossem tão exagerados. Se não tivessem acabado com faixas de rodagem e não
tivessem descartado lugares de estacionamento, lá está. Ou seja, se não fossem
agressivos para os moradores que obrigatoriamente moram em suas casas e
imperativamente se deslocam de carro porque não têm alternativas produtivas
para chegar aos empregos ou aos pontos da cidade onde entregam e recolhem os
filhos.
Na Av. 24 de Julho, para dar apenas um exemplo, os passeios
ficaram descomunais e muito vantajosos para ‘os da noite’ porque lhes permitem
multiplicar esplanadas e lugares de encontro para uns se divertirem e outros
fazerem negócio, mas os desgraçados ‘do dia’, que têm horários fixos para
entrar e sair do trabalho, ou deixar os filhos na escola, esses perderam o
pouco espaço que já tinham. Hoje em dia é aflitivo sair e voltar a entrar em
casa em toda a extensão da beira-rio ( e não só!).
Há menos faixas de rodagem e como também deixou de haver
lugares para estacionar nesta mesma 24 de Julho – para manter o exemplo que
todos conhecemos e nos toca a todos por ser passagem obrigatória para quem
precisa de ir à Baixa e ao perímetro alargado do centro histórico – as pessoas
optam por deixar os carros em plena estrada, apropriando-se das poucas faixas
de rodagem que restam, sem que alguém se atreva a desfazer este escandaloso
equívoco. Bonito serviço. Ficamos todos a perder. Todos, os ‘do dia’, quero
dizer, pois os ‘da noite’ circulam com outra descontração e infinitamente menos
trânsito.
O maior escândalo destas opções viárias e rodoviárias é que
os transportes públicos continuam a estar muito aquém das necessidades e
podemos ficar de pé, à torreira do sol ou debaixo de terra, à espera de um
autocarro, de um eléctrico ou de um Metro que nunca mais chegam. No “capítulo
Metro”, importa referir que vezes demais anda com metade das carruagens, coisa
muito pouco simpática para quem usa este meio de transporte, pois cria desconforto
e gera magotes de gente ensardinhada nas poucas carruagens que andam para trás
e para a frente.
Ah! Não me posso esquecer de certas escadas rolantes do
Metro, também, que passam semanas e meses avariadas, obrigando as pessoas a
subir longas escadarias de pedra com os seus carregos habituais que podem ser
malas, mas também podem ser filhos pequenos ou carrinhos de bebé, pois nem
todos os elevadores para utentes considerados ‘prioritários’ funcionam ou
trazem as pessoas até à superfície. Isto, para não falar dos mais velhos, que
sobem e descem com extrema dificuldade, já se sabe.
Os turistas de pé descalço sofrem como nós, mas são os
únicos, porque os outros, os que têm poder de compra, alugam tuk tuks, carros,
carrinhas e camionetas que estacionam rigorosamente onde querem, mesmo que isso
impeça o trânsito de circular (vidé Belém e Av. Brasília todas as manhãs, sem
excepção). Mais, como os eléctricos já se alugam, o caos também passa por
longas filas que se formam porque o eléctrico vai em modo passeio, com paragens
inesperadas e demoradas. Mau demais.
Ainda em matéria de trânsito, acessos e caos na cidade,
importa deixar muito claro que os turistas, e os que trabalham para eles, são
os maiores beneficiários da nova (des)ordem camarária: os tuk tuk, porque se
reproduzem como coelhos, andam devagar, empatam o trânsito e roubam lugares aos
moradores em todos os bairros históricos, mas não só; as camionetas porque
ocupam lugares imprevistos ao longo de miradouros e nas entradas de monumentos,
de museus ou de pastelarias finas, ficando paradas em plena faixa de rodagem, a
obstruir o trânsito; as motas eléctricas de aluguer porque são deixadas não
importa onde, e chegam a ficar aos molhos no meio da estrada ou em lugares
histriónicos que impedem a passagem e até o livre trânsito dos peões. Só visto,
porque contado quase nem dá para acreditar.
Como se tudo isto fosse pouco, Fernando Medina aparentemente
vive muito bem com a forma como a EMEL actua na cidade. Discricionária e
intermitente, usa critérios avulsos e incompreensíveis. Bloqueia violentamente
o acesso de moradores às suas moradas, mas esquece-se de fazer o mesmo com os
selvagens que deixam o carro onde querem, como querem, durante a noite
(especialmente os que vão para a ‘noite’). Um agente da EMEL é um sujeito quase
sempre estranho e com comportamentos erráticos. Tanto pode multar um morador
que estacionou na sua rua (falo de ruas literalmente abalroadas por gente que
não mora ali, mas deixa os carros ali para ir para a ‘noite’, lá está, sem que
nada lhes aconteça), dizia eu, que tanto pode multar um morador que estacionou
bem, só porque não deixou 5m de estrada livre até ao próximo cruzamento, como
pode passar e perceber muito bem as razões desse mesmo morador, passando sem
bloquear ou multar.
Num mundo ideal e numa cidade perfeita, gerida de uma forma
mais que perfeita, até seria compreensível esta lógica de guardar 5m livres até
ao cruzamento. O problema é que em ruas de 20 metros úteis (cheias de
cruzamentos, pois há muitíssimas transversais) é impensável guardar espaço
livre para respeitar a regra dos 5m. Aliás a forma de actuar da EMEL é tão
bipolar, digamos assim, que durante semanas a fio os moradores podem usar esses
mesmos 5m (que são o pouco que lhes sobra da sua rua) para estacionarem os seus
carros, que todos os agentes reconhecem a regra, mas há um dia em que sai para
a rua uma brigada mal humorada e, então, as multas e reboques são a eito. Até
dói.
Em plena campanha, Fernando Medina diz que precisa de todos,
mas não explica como nos vai ajudar a todos a viver numa cidade melhor. Muito
pelo contrário! Afixa cartazes sem mensagem digna de nota, apenas a pedir sem
dar mais nada de volta. Fernando Medina herdou a Câmara de António Costa e
cumpriu um mandato com assinatura própria, reconheço. Deixou obra feita e à
vista, mas falta fazer muita coisa. Visível e invisível. E falta perceber se
vai continuar a empurrar os lisboetas para fora de Lisboa. Para longe da sua
cidade. Para periferias onde os turistas não chegam e os bons transportes
públicos também não.
A cidade vai sendo povoada por estrangeiros que compram
quase tudo, porque podem, e lhes dão um estatuto aparte, livre de impostos.
Lisboa vai-se enchendo de gente que usa e abusa, que suja muito e gasta pouco,
gente de todas as idades e origens que desfila de copo de cerveja na mão pela
noite dentro, gente que se abastece nos supermercados low cost e aluga hostels
baratos, que faz muito barulho e muita porcaria (todas as madrugadas há rapazes
e homens a fazerem chichi directamente contra as portas e paredes de casas
abrangidas pelo círculo alargado da ‘noite’ de Lisboa, deixando um rasto
pestilento e um cheiro nauseabundo); gente que acorda os moradores em ruas
outrora tranquilas, gente sem interesse absolutamente nenhum que vira caixotes
do lixo às 5h da manhã e os põe a rolar pela calçada abaixo sem que alguém com
autoridade apareça para travar a brincadeira, enfim, gente que todos nós,
moradores, dispensaríamos para sempre dos nossos bairros.
Era preciso saber mais, muito mais, sobre o plano de gestão
camarária de Fernando Medina para os próximos tempos. Era preciso saber o que
vai fazer nos bairros degradados e nas comunidades vulneráveis, que estão longe
da vista dos turistas, mas crescem a olhos vistos; era vital que nos mostrasse
caminhos em vez de impedir ruas e acessos; era essencial que nos fizesse sentir
todos cidadãos de primeira, e não habitantes de segunda ou terceira categoria.
Acima de tudo era fundamental que nos dissesse que nós, lisboetas, somos a sua
primeira e última prioridade, pois hoje em dia facilmente nos sentimos
estrangeiros na nossa cidade. Estrangeiros no sentido mais estranho do termo,
note-se. Estrangeiros, como se fossemos nós os exóticos forasteiros e eles, os
de fora, os verdadeiros e queridos moradores.
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