Imagem de OVOODOCORVO |
Tudo esclarecido?” Só podem estar a
gozar
Jamais me passaria pela cabeça que
num país acima do Trópico de Câncer as autoridades andassem a brincar à
contagem dos cadáveres.
João Miguel Tavares
25 de Julho de 2017, 6:22
Até ao passado sábado, sempre considerei que a história dos
supostos mortos de Pedrógão que as autoridades estariam a ocultar não passava
de uma teoria da conspiração, e não das mais inspiradas. Os mortos-fantasma de
Pedrógão Grande rivalizavam com “avistei Elvis Presley”, “Carlos Paião foi
enterrado vivo” ou “o homem nunca foi à Lua”. Jamais me passaria pela cabeça
que num país acima do Trópico de Câncer as autoridades andassem a brincar à
contagem dos cadáveres, dedicando-se a fazer cuidadosas separações entre
“mortes directas” (supostamente 64, falecidas por inalação de fumo ou por
queimaduras) e “mortes indirectas” (pelo menos uma, que o Expresso detectou,
mas que podem ser três, dez ou vinte, porque ninguém sabe ao certo).
E neste ponto, caros leitores, já não há sal de fruto que
trave o profundo mal-estar que se apodera das pessoas decentes. Como se já não
bastasse a dimensão da tragédia, eis que temos a Protecção Civil, o Ministério
da Administração Interna, o Ministério da Justiça e o próprio primeiro-ministro
a desvalorizarem os mortos e os vivos deste país, de uma forma absolutamente
inqualificável, ao barrarem o acesso à mais elementar informação. Na sequência
da notícia do Expresso dando conta de uma 65.ª vítima que morreu atropelada
enquanto fugia de casa, e depois de uma suposta clarificação do tema por parte
da Protecção Civil e do Ministério da Justiça, António Costa tratou de arrumar
a questão com um displicente: “já está tudo esclarecido”. Como? Tudo esclarecido?
Não, senhor primeiro-ministro. Na verdade, tudo continua por esclarecer, porque
as supostas clarificações não clarificaram coisa alguma. O que a Protecção
Civil fez foi veio reafirmar que havia 64 mortos em “consequência directa” do
fogo, e que outros eventuais casos não se integravam nos critérios “definidos”
como vítimas do incêndio. E o Ministério da Justiça, ao ser confrontado com o
pedido para divulgar a lista dos mortos de Pedrógão, declarou não poder revelar
tal informação por ela se encontrar em “segredo de justiça”. Juro. Segredo de
justiça.
A gente esfrega os olhos e não acredita. Entre a declaração
do primeiro-ministro e os comunicados da Protecção Civil e do Ministério da
Justiça o coração balança – qual deles será o mais vergonhoso? António Costa
não quer saber do número de mortos e recusa dar ao país esclarecimentos
básicos. A Protecção Civil diz que para ela só conta quem morreu queimado, o
que faz tanto sentido quanto dizer que na contabilidade de Entre-os-Rios só
conta quem morreu afogado. O Ministério da Justiça invoca o segredo de justiça
para negar o acesso ao nome das vítimas e à forma como morreram, como se o fogo
fosse um malfeitor a monte e pudesse usar a informação para reincidir nas suas
actividades criminosas. Às vezes, parece mesmo que as instituições do Estado se
divertem a gozar com a nossa cara.
E nós, infelizmente, deixamos. Não podemos deixar. De uma
vez por todas, digam-nos quantas pessoas morreram em Pedrógão no dia 17 de
Junho de 2017, fosse por inalação de fumo, queimaduras, acidente de automóvel,
atropelamento, afogamento ou paragem cardíaca; digam-nos quantas morreram de
forma directa, de forma indirecta, ou de que forma for; digam-nos qual o número
redondo e verdadeiro, e de caminho parem de desrespeitar as vítimas, as suas
famílias e todos aqueles que ainda acreditam, porventura ingenuamente, viver
num país civilizado. As pessoas sérias agradecem antecipadamente a atenção.
Sem comentários:
Enviar um comentário