segunda-feira, 24 de julho de 2017

Tudo esclarecido?” Só podem estar a gozar

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Tudo esclarecido?” Só podem estar a gozar

Jamais me passaria pela cabeça que num país acima do Trópico de Câncer as autoridades andassem a brincar à contagem dos cadáveres.

João Miguel Tavares
25 de Julho de 2017, 6:22

Até ao passado sábado, sempre considerei que a história dos supostos mortos de Pedrógão que as autoridades estariam a ocultar não passava de uma teoria da conspiração, e não das mais inspiradas. Os mortos-fantasma de Pedrógão Grande rivalizavam com “avistei Elvis Presley”, “Carlos Paião foi enterrado vivo” ou “o homem nunca foi à Lua”. Jamais me passaria pela cabeça que num país acima do Trópico de Câncer as autoridades andassem a brincar à contagem dos cadáveres, dedicando-se a fazer cuidadosas separações entre “mortes directas” (supostamente 64, falecidas por inalação de fumo ou por queimaduras) e “mortes indirectas” (pelo menos uma, que o Expresso detectou, mas que podem ser três, dez ou vinte, porque ninguém sabe ao certo).

E neste ponto, caros leitores, já não há sal de fruto que trave o profundo mal-estar que se apodera das pessoas decentes. Como se já não bastasse a dimensão da tragédia, eis que temos a Protecção Civil, o Ministério da Administração Interna, o Ministério da Justiça e o próprio primeiro-ministro a desvalorizarem os mortos e os vivos deste país, de uma forma absolutamente inqualificável, ao barrarem o acesso à mais elementar informação. Na sequência da notícia do Expresso dando conta de uma 65.ª vítima que morreu atropelada enquanto fugia de casa, e depois de uma suposta clarificação do tema por parte da Protecção Civil e do Ministério da Justiça, António Costa tratou de arrumar a questão com um displicente: “já está tudo esclarecido”. Como? Tudo esclarecido? Não, senhor primeiro-ministro. Na verdade, tudo continua por esclarecer, porque as supostas clarificações não clarificaram coisa alguma. O que a Protecção Civil fez foi veio reafirmar que havia 64 mortos em “consequência directa” do fogo, e que outros eventuais casos não se integravam nos critérios “definidos” como vítimas do incêndio. E o Ministério da Justiça, ao ser confrontado com o pedido para divulgar a lista dos mortos de Pedrógão, declarou não poder revelar tal informação por ela se encontrar em “segredo de justiça”. Juro. Segredo de justiça.

A gente esfrega os olhos e não acredita. Entre a declaração do primeiro-ministro e os comunicados da Protecção Civil e do Ministério da Justiça o coração balança – qual deles será o mais vergonhoso? António Costa não quer saber do número de mortos e recusa dar ao país esclarecimentos básicos. A Protecção Civil diz que para ela só conta quem morreu queimado, o que faz tanto sentido quanto dizer que na contabilidade de Entre-os-Rios só conta quem morreu afogado. O Ministério da Justiça invoca o segredo de justiça para negar o acesso ao nome das vítimas e à forma como morreram, como se o fogo fosse um malfeitor a monte e pudesse usar a informação para reincidir nas suas actividades criminosas. Às vezes, parece mesmo que as instituições do Estado se divertem a gozar com a nossa cara.


E nós, infelizmente, deixamos. Não podemos deixar. De uma vez por todas, digam-nos quantas pessoas morreram em Pedrógão no dia 17 de Junho de 2017, fosse por inalação de fumo, queimaduras, acidente de automóvel, atropelamento, afogamento ou paragem cardíaca; digam-nos quantas morreram de forma directa, de forma indirecta, ou de que forma for; digam-nos qual o número redondo e verdadeiro, e de caminho parem de desrespeitar as vítimas, as suas famílias e todos aqueles que ainda acreditam, porventura ingenuamente, viver num país civilizado. As pessoas sérias agradecem antecipadamente a atenção.

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