Suposta demolição de prédios na Casal
Ribeiro não vai acontecer, diz promotora
POR O CORVO • 4 JULHO, 2017 •
A suposta demolição de quatro edifícios, com mais de um
século e situados no gaveto da Avenida Casal Ribeiro com a Rua Actor Taborda,
junto ao Saldanha, para dar lugar a um empreendimento imobiliário, gerou um
movimento de contestação liderado pelo grupo cívico Fórum Cidadania LX, que
convocou um protesto no para o fim da tarde (19h) desta terça-feira (4 de
julho). Mas a indignação do colectivo, materializada ainda numa queixa
apresentada, nesta segunda-feira (3 de julho) na Provedoria de Justiça, não
passará, afinal, de um grande “mal-entendido”, garante a O Corvo a promotora
imobiliária que, em janeiro deste ano, adquiriu o quarteirão à Santa Casa da
Misericórdia de Lisboa (SCML). “A nossa intenção é manter a identidade
histórica dos edifícios, não apenas as fachadas, mas também muito do interior”,
assegura Eurico Almeida, gestor do projecto de reabilitação do conjunto, detido
pela firma Carismatik Nauta.
De acordo com o
responsável, os protestos e a queixa patrocinados pelo Fórum Cidadania LX “não
fazem sentido, porque partem de pressupostos errados, de informação
desactualizada”. Os membros deste grupo, responsável por diversas acções
mediáticas e judiciais contra projectos considerados polémicos, criticaram nos
últimos dias o que consideram ser “mais um escandaloso caso de destruição de arquitectura
do final do Século XIX e início do Século XX”. E apresentaram, ainda nesta
segunda-feira (3 de julho) e já depois da convocarem a manifestação de hoje,
uma queixa à Provedoria de Justiça por supostas ilegalidades, ao não terem sido
tornados públicos os propósitos da demolição. “Os edifícios estão em boas
condições estruturais. É mais uma machadada no património daquela zona”, diz a
O Corvo um dos membros do colectivo, solicitando anonimato. Algo que, a crer
nas garantias agora fornecidas pelos novos proprietários dos imóveis, não
acontecerá.
Às preocupações
patrimoniais acrescem assim as dúvidas sobre a legalidade de todo o processo
urbanístico, que prevê a destruição dos imóveis localizados na Rua Actor
Taborda, 55, e na Avenida Casal Ribeiro, 20-24 e 26-34, devolutos há mais de
uma década e até há bem pouco tempo propriedade da Santa Casa da Misericórdia
de Lisboa (SCML). A instituição liderada por Pedro Santana Lopes, através do
fundo de investimento Santa Casa 2004 por si detido – e gerido pela sociedade
de fundos imobiliários FundBox SGFII SA -, vendeu, em fevereiro passado, o
conjunto de prédios à Carismatik Nauta, um investidor privado nacional. A
operação, que terá rendido à SCML uma verba cujo valor não é conhecido, está a
gerar contestação pelo facto de os membros do Fórum Cidadania LX colocarem em
causa a legitimidade legal de se avançar para um novo projecto de urbanização,
entregue a um outro arquitecto, tendo por base uma autorização camarária prévia
Com a venda do quarteirão, o ateliê Saraiva e Associados
tomou conta do dossiê antes nas mãos de Graça Dias – que era autor de um
projecto já muito contestado pelos mesmos activistas, apresentado em 2009 e
aprovado pela Câmara Municipal de Lisboa em Maio do ano seguinte. “Até que
ponto é legal o facto de serem feitas as demolições em curso em edifícios em
relativo bom estado de conservação (longe, portanto, da ameaça de derrocada,
condição exigível ao abrigo do PDM em vigor e desvirtuando definitivamente duas
frentes de quarteirão), tendo por base o licenciamento de um projecto aprovado
pela CML, para depois, com os prédios demolidos, se avançar com um novo
projecto de um outro projectista?”, questionam os membros do colectivo na
queixa endereçada ao Provedor de Justiça, José Faria da Costa. E chamam a
atenção para o facto de, no local, não existir um aviso de prévio de obras,
como dita a lei.
Dizendo-se
surpreendidos pelo que consideram ser uma “mudança repentina de promotor”, os
autores da queixa à provedoria acusam mesmo o anterior dono dos prédios a
demolir, a Misericórdia de Lisboa, de ter realizado “uma operação de pura
especulação imobiliária”. Um apontar de dedo que vai ainda mais longe na
convocatória do protesto a realizar no final de tarde desta terça-feira. “Estes
edifícios eram, até há bem pouco tempo, propriedade da Santa Casa da
Misericórdia de Lisboa (SCML) que os vendeu, com projecto aprovado, numa
operação imobiliária que reforça os sinais já existentes de transformação desta
entidade de alegado cariz social e humanitário em mais um agente imobiliário em
Lisboa”, imputam. “Com efeito, em vez de usar o seu numeroso património para
reforçar a oferta de habitação a custos controlados, a SCML opta por especular
e lucrar com o património que, frequentemente, lhe foi doado para causas
sociais e vem assim contribuir para a gentrificação da cidade”, concluem.
Na mesma convocatória elaborada pelos membros do Fórum
Cidadania LX – feita horas antes da queixa à Provedoria de Justiça e de terem
tomado conhecimento da passagem do processo para o ateliê Saraiva e Associados
-, denuncia-se o que se considera ser um projecto que irá “romper com uma rua
(Actor Taborda) quase composta única e exclusivamente por arquitectura de
transição, abrindo mais um precedente gravíssimo em termos urbanísticos, até
porque se trata de prédios perfeitamente recuperáveis para habitação”. Em
declarações a O Corvo, um dos elemento do colectivo afirma que este caso é
diferente de muitos em Lisboa “porque se trata de outra escala, três edifícios
de uma só vez, e que estão em boas condições estruturais”.
O mesmo membro do
grupo de intervenção cívica diz que esta zona da capital, as Avenidas Novas,
marcada pela existência de muita arquitectura de qualidade do período de
transição entre os séculos XIX e XX, “tem sido bastante fustigada”. “O que
estamos a assistir é o que parece ser uma autêntica ausência de critérios na
aprovação destes projectos, sobretudo se não existir nenhum grau de protecção
dos edifícios”, lamenta a mesma fonte, criticando a opção por mais uma grande
operação de construção – superior a 15 mil metros quadrados, dos quais 6.200
subterrâneos – em detrimento da reabilitação de um conjunto de prédios que
considera arquitectonicamente relevante e coerente com a zona.
Mas toda essa argumentação é agora posta em causa pela
Carismatik Nauta, a empresa que, em janeiro passado, adquiriu o conjunto de
quatro imóveis – e não três, como tem sido anunciado na convocatória do
protesto – à SCML. “Aquilo que pretendemos é, precisamente, o oposto do que se
está a dizer. Desejamos assegurar a manutenção da fachada e reabilitar aquilo que
se pode manter no interior, embora haja partes que estão muito degradadas,
algumas em colapso estrutural”, assegura a O Corvo Eurico Almeida, gestor do
projecto. Por isso mesmo, diz, serão iniciados trabalhos de reforço da
estrutura, para mais tarde realizar uma obra de reabilitação e adaptação do
edifício a uma nova vida. A qual passará pela manutenção da funcionalidade de
habitação, com comércio ao nível térreo. Algo que o promotor prevê que esteja
pronto dentro de dois anos. O arranque dos trabalhos estará a aguardar o visto
camarário à alteração do projecto de Graça Dias que havia sido aprovado em
2010, por parte da Saraiva e Associados. Graça Dias “deu a sua autorização a
esta mudança”, assevera Eurico Almeida.
De acordo com o relatório de gestão da FundBox referente ao
exercício de 2016, disponível no sítio desta gestora de participações de
investimento imobiliário, o fundo fechado de investimento Santa Casa 2004, que
estava depositado na Caixa Geral de Depósitos, era avaliado, a 31 de dezembro último,
em 12,1 milhões de euros. E era dado, à data, como estando em “liquidação”.
Integralmente subscrito pela SCML, “constituiu o essencial da sua carteira a
partir de propriedades antes detidas pela Santa Casa, e vindas à posse desta,
na sua maioria esmagadora, pelo exercício de benemerência”, descreve-se no
mesmo sítio, onde se explica que “o fundo é gerido com vista à regeneração e
elevação do rendimento destas propriedades” e ainda investia em propriedades de
rendimento adquiridas no mercado. Além da Casal Ribeiro/Actor Taborda, o fundo
detinha, nessa altura, outros cinco imóveis em Lisboa.
O Corvo questionou a
Santa Casa da Misericórdia de Lisboa sobre o valor da referida venda, mas
aquela instituição indicou, já à noite, a Fundbox como a destinatária de tal
pergunta.
Texto: Samuel Alemão
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