Às armas, doutor Costa
Se Pedrógão foi mau demais, um roubo
de armas de guerra num tempo de ameaças de ataques terroristas é politicamente
insustentável.
Manuel Carvalho
5 de Julho de 2017, 6:34
É de elementar bom senso pegar no desastre de Pedrógão,
juntar-lhe a vergonha de Tancos, meter tudo no mesmo saco e dizer que
assistimos ao cúmulo do desgoverno. Quando se proclama com cada vez maior
alarde que acabou o estado de graça de António Costa, está-se precisamente a
apontar para um Governo incapaz de garantir um mínimo de eficácia na protecção
civil e o mais leve assomo de segurança nos paióis do Exército. Está-se a
contar uma anedota mais próxima de uma república das bananas do que de um
Estado da União Europeia no século XXI. Meter Pedrógão e Tancos no mesmo saco
pode não ser justo, pode banalizar o drama de 64 pessoas que morreram ou tirar
conteúdo a um roubo que se amplia nas condições de insegurança na Europa. Mas é
um exercício obrigatório. Porque o caso de Tancos funciona como o vento no
desastre de Pedrógão: amplifica a sensação de desatino. O que fica nesta frente
de fogo é a discussão sobre a credibilidade do Estado e a competência de quem o
governa.
Entre os dois desastres há detalhes que nos dão a sensação
que o desnorte vai em crescendo. Em Pedrógão, a única certeza que podemos ter é
que pagámos um preço demasiado elevado (com vidas humanas) por muitas décadas
de laxismo e negligência. A devastação do incêndio que arrasou quase 80% da
floresta da região explica-se pela balda delinquente de ministros e de autarcas
expeditos em pedir e fazer leis, mas relapsos e preguiçosos em zelar pelo seu
cumprimento. Com ou sem downburst, o barril de pólvora estava ali, à vista de
todos, à espera do primeiro capricho do clima ou da primeira falha humana.
Houve erros na protecção civil, esse sistema de comunicações com nome de
larápio (SIRESP) claudicou quando não podia claudicar, houve mudanças de cargos
na protecção civil que tresandam a pequena política e é justo que com tantas
falhas o país exija responsabilidades políticas e peça a cabeça da ministra.
Mas, ainda assim, o que aconteceu nas fragas do pinhal é de um domínio muito
mais providencial do que a vergonha personalizada de Tancos.
Em Tancos, houve um colapso do dever e uma ruína da
exigência militar que não se resolvem com entregas de espadas no Palácio de
Belém. Um Exército que se deixa roubar assim perde num ápice qualquer aura de
credibilidade. Deixa de ser uma entidade na qual os cidadãos confiam para se
tornar numa caricatura ameaçadora. Mais do que uma vergonha, o que está em
causa é uma miséria. Quando o chefe do Estado-Maior do Exército, Rovisco
Duarte, diz que “estes roubos podem acontecer em qualquer Exército, em qualquer
país, desde que haja intenções, vontades e capacidades”, faz-nos o favor de
avisar que estamos sós e indefesos. Porque “intenções, vontades e capacidades”
para roubar armas de guerra sempre houve e haverá.
Se em Pedrógão é decente exigir consequências políticas
pelas falhas do SIRESP ou da protecção civil, em Tancos é obrigatório ser mais
enérgico e intolerante no pedido de responsabilidades. Os cinco comandantes
demitidos por tempo determinado (uma originalidade) podem não ter culpa directa
no que aconteceu, mas têm responsabilidades por não o terem evitado. O chefe do
Estado-Maior pode tentar embrulhar a gravidade da história, mas, perante uma
derrota assim tão copiosa, um comandante só pode oferecer o seu cargo como
expiação. O ministro da Defesa Nacional pode ser (e é) uma vítima do assalto,
pode ter como crédito um mandato inteligente e eficaz, com boas decisões em
casos bicudos como o dos comandos ou o da Academia Militar, mas se assume a
“responsabilidade política” do roubo, tem de o fazer por inteiro. Um assunto
desta gravidade só se mitiga com decisões igualmente graves. Há momentos em que
é preciso dar o peito às balas. A demissão é, por isso, o mínimo que deles se
espera.
Até porque, e uma vez mais ao contrário de Pedrógão, não é
aceitável que nos venham dizer que não havia videovigilância, ou que havia um
plano para suprir essa lacuna. Que se saiba, quando Tancos fez o seu “milagre”
e preparou em tempo recorde as divisões que foram para a Flandres na Grande
Guerra, ainda não havia câmaras de vídeo. E não há notícia de saques de armas
como a da semana passada. Porque pior do que não haver videovigilância é
sabermos que os chefes sabiam dessa falha e ainda assim deixaram o perímetro
dos paióis sem guarda. É sabermos que os assaltantes tiveram todo o tempo do
mundo para cortar redes e arrombar portas, escolher as armas e carregá-las, sem
que nada os incomodasse. É sabermos que, depois de as autoridades notarem o
roubo, não se fecharam fronteiras nem se lançaram medidas de emergência para
recuperar as armas.
Pelo contrário, o que vimos foi uma tentativa pífia de
sacudir água do capote. Quando o chefe do Estado Maior dizia que não lhe
“compete avaliar por que é que a videovigilância estava avariada há cerca de
dois anos” e o ministro admitia que, “por muito estranho que possa parecer”,
ele “não sabe se há falta de vigilância em Tancos”, o que fica no ar é mais um
jogo de passa-culpas. O Exército, corporativo como convém, há-de dizer que a
culpa é dos políticos que não lhes deram câmaras de filmar, quando o seu dever
era garantir sentinelas para suprir a sua falta. E o Governo há-de afirmar que
não lhe cabe fazer ordens de serviço nem indicar o cabo A ou o sargento B para
estar de plantão.
Tal como em Pedrógão, Tancos tornar-se-á um campo de ensaios
para a eterna tendência de justificar falhas com buracos no Orçamento. Tal como
Pedrógão, Tancos é o exemplo que nos envergonha lá fora por vivermos sob a
égide de um Estado onde a complacência é norma e o desleixo tradição. Tal como
Pedrógão, Tancos é o lugar onde se percebe a distância entre o centro do poder
político, civil ou militar e as estruturas intermédias onde as funções do
Estado se diluem na inépcia, no comodismo e no concubinato político. Se
Pedrógão foi mau demais, um roubo de armas de guerra num tempo de ameaças de
ataques terroristas é politicamente insustentável. O Governo vai ter de desatar
o nó, legítimo e inexorável, que o começa a apertar.
Talvez seja tentador para António Costa esperar que o calor
estival crie amnésia e faça regressar as conquistas do défice e da economia ao
lugar onde por estes dias há mortos em incêndios e paióis assaltados. Talvez
continue a confiar na sorte. Talvez esteja à espera que o Presidente-Rei o
salve com o seu adorável ombro amigo. Mas, há manchas indeléveis que nunca se
apagam. Com o fogo e as armas a servirem de cenário, António Costa tem pela
frente uma desafio que lhe impõe uma opção: ou é um primeiro-ministro exigente
e intolerante com falhas assim tão colossais, ou arrisca-se a deixar colar à
sua pele a imagem de um líder apenas porreirinho. Bom para festejos, ideal para
angariar posições conjuntas com a esquerda, mas incapaz de um sobressalto
quando o país arde ou lhe roubam a dignidade. Tudo o que Portugal não precisa é
de um Américo Thomaz a posteriori. Às armas, doutor Costa.
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