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O horrível “aproveitamento dos
mortos”
A lista dos mortos de Pedrógão nunca foi uma questão de
números, mas de básica transparência no acesso à informação.
João Miguel Tavares
29 de Julho de 2017, 6:52
Uma das poucas boas notícias no meio deste terrível Verão
tem sido o papel que a comunicação social tem desempenhado desde a tragédia de
Pedrógão. Há vários meios que têm razões para estar orgulhosos do trabalho que
têm feito — o PÚBLICO é um deles —, e eu sinto-me tanto mais à-vontade para
dizer isto quanto sou altamente crítico da capacidade dos jornais nacionais
para desempenharem o seu papel de watchdogs e actuarem como efectivo contrapeso
num país onde o Estado detém demasiado poder e os meios de comunicação se
encontram, por razões económicas, profundamente fragilizados.
A comunicação social portuguesa tem muito pouco de que se
orgulhar na última década, e nalguns momentos foi até vergonhosamente cúmplice daquilo que aconteceu ao
país — sim, estou a falar dos anos socráticos. Felizmente, o pós-Pedrógão tem
sido outra coisa. Pela sua actuação e pela sua resiliência, os jornais têm
obrigado as instituições públicas a serem mais transparentes, e têm exposto as
fragilidades e contradições do Governo, exigindo mais competência ao poder
executivo e colocando-se do lado das vítimas e dos cidadãos que reclamam o
direito a serem informados sem subterfúgios, leis da rolha ou habilidades
burocráticas. A divulgação da lista dos mortos de Pedrógão por parte do
Ministério Público, e a mudança de atitude por parte do Governo depois do “está
tudo esclarecido” de António Costa, devem-se ao papel da comunicação social,
que não se sentiu intimidada por aqueles que a acusaram de “populismo” ou de
“aproveitamento político”. Como já referi várias vezes, este país é especialista
em invocar os grandes princípios para fugir às mais básicas responsabilidades
na prestação de contas — os anos socráticos, mais uma vez, servem como
excelente demostração desta táctica rasteira.
Agora que o número de mortos evoluiu de 64 para 64+2, há
quem nos venha dizer que o Governo e os seus apoiantes é que tinham razão, e
que assim se demonstrou que ninguém estava a mentir, nem a esconder vítimas. Eu
próprio fui acusado de ter escrito um artigo “deplorável” na terça-feira, e de
ser um dos que andam a promover a utilização “sem vergonha” dos mortos para
obter dividendos políticos. Não me lixem, senhores. Quem isto afirma comete
mais uma vez o prodígio de não perceber coisa alguma.
O importante não é sequer o facto de o número de mortos ter
efectivamente crescido, e de se ter provado o rigor da notícia do Expresso
quanto à 65.ª vítima. O importante é que isto nunca foi uma questão de números,
mas de básica transparência no acesso à informação. É obviamente inaceitável
num país civilizado considerar o nome de quem morre numa tragédia natural como
informação privilegiada ou ao abrigo do segredo de justiça. Aliás, era tão
fundamental, mas tão fundamental, que a lista se mantivesse secreta, e tão crucial,
mas tão crucial, manter todos os poderes minuciosamente separados neste tema,
que a lista dos mortos foi divulgada pela Procuradoria-Geral da República assim
que a temperatura começou a atingir níveis proibitivos ali para os lados de São
Bento.
Se alguém falhou aqui — e muito — foi a política de
comunicação do Governo e das instituições do Estado, que através da costumeira
falta de transparência alimentaram as teorias da conspiração. Os jornais — e os
partidos da oposição — fizeram o seu papel. E conseguiram, pela sua
insistência, obter com provas a verdade dos factos. Se é isto o populismo,
então eu quero continuar a ser populista.
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