Tudo correu mal, mas vamos seguir
em frente
Cameron deixou-se apanhar pela ratoeira do “concurso” que ele próprio criou
para ver quem era mais eurocéptico
Teresa de Sousa /
Sem fronteiras / 1 jun 2014 / PÚBLICO
"A Europa já viu este “filme” muitas vezes e sabe onde pode conduzi-la. O que não podem continuar a dizer, a torto e a direito, é que “a crise resolve-se com mais Europa”. Já ninguém os pode ouvir. Arriscam-se a ver à sua volta um grande espaço vazio que alguém se encarregará de preencher."
1.Um amigo meu
enviou-me a frase perfeita para iniciar este texto. É de Guy Mollet, socialista
que foi primeiro-ministro de França em finais da década de 50, citada por
Raymond Aron, e reza o seguinte: “Dizem-nos que a nossa política fracassou. É
uma boa razão para renunciar a ela?” Serve para resumir a reacção dos líderes
europeus ao desastre político das eleições europeias. Os chefes de Estado e de governo
juntaram-se num jantar informal para reflectir sobre eles. Não se conhece ainda
com todo o detalhe o teor das discussões, mas sabe-se, pelo menos, que
desperdiçaram uma ocasião fundamental para dar uma resposta política forte ao
que se passou em toda a Europa, com a ascensão dos partidos nacionalistas,
populistas e de extrema-direita praticamente em toda a parte.
Preferiram
“dispersar” as conclusões do jantar, mantendo a fórmula politicamente correcta
com que tentam sempre disfarçar as divisões, mesmo que tivessem admitido que
talvez seja preciso mudar as prioridades europeias. Falaram, naturalmente, do
crescimento e emprego — é uma frase que fica sempre bem, mas que ainda não teve
qualquer tradução prática. Incluíram dois temas recorrentes, que citam quando
não têm mais nada para dizer: é preciso olhar para a segurança energética (é
verdade, mas chegaram tarde) e para as alterações climáticas. Transmitiram a
ideia de que o avanço dos extremos era um problema localizado e no contexto
particular das eleições europeias. O nosso primeiroministro resumiu na
perfeição esta ideia quando disse, e cito de memória, que o avanço da
extrema-direita com contornos preocupantes foi apenas em dois países. Ao
ouvi-lo, pensaríamos que ia acrescentar. Malta ou Chipre (sem ofensa para
nenhum destes países). Mas não. “Apenas” queria dizer a França e o Reino Unido.
O presidente da
Comissão Europeia, que se mostrou muito consternado com os resultados, não
levou muito tempo a acrescentar que isso não nos deve impedir de “manter o
rumo”. Perdeu mais, disse ele, quem cedeu aos populismos. Qual rumo? Outros
líderes utilizaram o cenário póseleitoral para justificarem os seus objectivos
europeus. Cameron, naturalmente, voltou a insistir que a Europa precisa de
reformas profundas. Deixou-se apanhar pela ratoeira do “concurso” que ele
próprio criou para ver quem era mais eurocéptico e agora não sabe bem o que
há-de fazer. Matteo Renzi, a nova vedeta do centro-esquerda europeu, disse que
chegou a altura “de mudar as políticas europeias”. A Itália recebe em Julho a
presidência rotativa da União Europeia e ele não tenciona perder a
oportunidade. Mark Rutte, o primeiro-ministro holandês, diz que vai apresentar
uma nova agenda. Hollande insistiu em que a França não está enfraquecida. O problema
é que está. E, se a França for abaixo, a Europa vai com ela. A margem de
manobra do Presidente para levar os franceses a aceitar algumas mudanças ficou
ainda mais reduzida. A cartada Manuel Valls pode esgotar-se muito rapidamente.
A UMP do anterior Presidente está a desfazer-se graças aos escândalos de
corrupção. Se é difícil à Frente Nacional ganhar legislativas (por causa do
sistema eleitoral francês), o mesmo não acontece com as presidenciais.
Se nada acontecer
na Europa, se os partidos europeus não perceberem que a vitória de Marine e de
outros deve-se ao facto de conseguirem falar aos mais atingidos e ameaçados
pela crise, pela globalização e pela imigração, então as coisas podem mesmo
correr muito mal. Os europeus sentem-se longe das decisões da Europa, não
percebem quem as toma, não sabem como influenciá-las. Há um problema
democrático na Europa que é preciso enfrentar de vez. O risco maior está em
Berlim. É verdade que os alemães se preocupam com o declínio francês. A elite
política tem uma ideia do que seria uma Alemanha sem a França e sem a Europa. O
problema é que não consegue traduzir essa consciência numa mudança política que
não se limite a impor aos outros o seu próprio modelo. Isso nunca resultará.
Até porque é
preciso dizer também que a ascensão dos extremos é, em boa medida, o resultado
directo da forma como esta crise foi gerida politicamente. Desde 2010, quando a
Grécia estava à beira da falência, o discurso de Berlim (e dos seus parceiros
do Norte) foi petróleo atirado para a fogueira. Partiu a Europa em duas,
abrindo um fosso entre os países do Sul e da periferia, incapazes, preguiçosos,
culturalmente atrasados, e os do Norte,
2.
competentes e
probos. Nalguns casos quase que atingiu níveis de xenofobia, que não é só uma
cultura da direita mais extrema em relação aos imigrantes vindos de fora.
Impôs-lhes doses maciças de austeridade em programas mal pensados e de
resultados ambíguos. Disse-lhes que era esse o preço a pagar, e, sem discutir,
se quisessem ficar no euro. Abriram-se feridas profundas, acordaram-se velhos
fantasmas. Criou-se um clima que também ajudou a alimentar nos países credores
o sentimento de que lhes estava a ser pedido um preço demasiado elevado para
garantir a sobrevivência do euro, incluindo as economias periféricas.
As instituições,
a começar pela Comissão, faliram na sua missão de tentar preservar o interesse
comum. A eurocracia perdeu qualquer peso político e, em muitos aspectos, passou
a rodar em seco, surda e muda perante a realidade e os seus problemas. Hoje, de
Haia a Berlim, passando por Paris, há um coro de vozes a defender a redução dos
seus poderes e a devolução de algumas das competências europeias para o nível
nacional. Na Holanda, foi simbolicamente a directiva de Bruxelas para fixar o
limite da potência dos aspiradores que animou o debate. Matteo Renzi diz numa
entrevista a vários jornais europeus: “Se a Europa me explica com todo o
detalhe como é que se deve pescar um peixe-espada, mas não me diz nada sobre
como salvar um imigrante que se afoga, isto quer dizer que alguma coisa está a
correr mal.” Como é que um país como a Dinamarca, por exemplo, onde o
desemprego é baixo, o crescimento é algum e as pessoas vivem bem, consegue que
o partido populista anti-imigrantes e antieuropeu obtenha a vitória que obteve?
À frente do centro-esquerda da primeiraministra e do centro-direita?
Há 130 deputados
contra a Europa no Parlamento Europeu. Se calhar nem se conseguem organizar. O
problema é que os partidos que os elegeram vão influenciar as agendas políticas
nacionais, levando possivelmente os governos a ter ainda mais medo de tomar
decisões verdadeiramente europeias e de as explicar aos seus eleitorados com a
clareza e o rigor que são necessários para retomar a sua confiança. Já temos aí
a tentação do proteccionismo, que seria o golpe final na capacidade europeia de
ter um papel no mundo que está a emergir. Já temos as novas leis para expulsar
imigrantes sem trabalho, incluindo europeus. A Europa já viu este “filme”
muitas vezes e sabe onde pode conduzi-la. O que não podem continuar a dizer, a
torto e a direito, é que “a crise resolve-se com mais Europa”. Já ninguém os
pode ouvir. Arriscam-se a ver à sua volta um grande espaço vazio que alguém se
encarregará de preencher.
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