“Estes bloggers e cronistas são franco-atiradores. Beneficiam do
star-system, mas não têm tradução política imediata. O importante para eles é
terem conquistado o direito de existir. O direito de cidadania. Como se
soubessem que a única coisa que têm agora é o direito de estar no circo”
António
Araújo
As direitas partidárias, mas também
intelectuais, queriam escapar ao estigma do autoritarismo salazarista."
Jaime Nogueira
Pinto
“ A esquerda pensa por variáveis
económicas e sociais; a direita por variáveis culturais e institucionais. A
esquerda tem de fazer um esforço para acompanhar as coisas, de um ponto de
vista institucional. Por isso, talvez a direita seja mais competente a
aperfeiçoar as instituições."
Henrique
Raposo
“ A direita já não tem medo de ir para o
Campo Pequeno, a esquerda já não receia morrer nas fogueiras do Norte. Já nos
podíamos sentar à mesa e fazer uma Constituição nova.”
Henrique
Raposo
Os intelectuais de direita estão a sair do armário
Paulo Moura / PÚBLICO / 15-6-2014
Tudo começou com os blogues, depois uma série de cronistas
que se instalaram nos media tradicionais, publicam livros, fazem conferências,
comentam na televisão. Agora o Observador, um projecto editorial com tendência
de direita assumida.
Pub
O tema deste sábado era o Socialismo, o conferencista um
homem de direita, jovem, magro, circunspecto e formal, de fato escuro e óculos
de massa, sozinho no estrado, atrás de uma grande secretária. O auditório, no
Centro Cultural de Belém, estava repleto.
João Pereira Coutinho foi convidado para proferir esta série
de conferências sobre regimes políticos por Vasco Graça Moura, talvez o mais
eminente intelectual de direita da sua geração, desaparecido em Abril deste
ano. Mas nem o então presidente do CCB teria podido prever o êxito da
iniciativa. Ou sim. Talvez ele, a quem até os elogios fúnebres estranharam o
facto de, com a sua inteligência e cultura, não ser um homem de esquerda,
tivesse trabalhado conscientemente para deixar discípulos.
Na palestra, Pereira Coutinho descreveu o marxismo de uma
perspectiva de historiador de direita, sem deixar por isso de ser rigoroso.
Marx reivindicava a cientificidade do materialismo histórico e no entanto
falhou toda a sua antevisão do futuro, disse ele. Já na fase das perguntas, um
homem na audiência observou que Vítor Gaspar e os economistas neoliberais
também não acertaram em nenhuma previsão.
Ambas as conclusões são verdadeiras e a constatação
histórica disso mesmo não foi isenta de consequências: com a queda do Muro de
Berlim e da União Soviética, a esquerda sofreu um abalo, na Europa e no mundo,
e no entanto libertou-se, modernizando-se e adaptando o seu ideário. Da mesma
forma, a direita liberal não deixou de ser afectada na sua credibilidade pela
crise económica iniciada em 2008, com a desregulação dos mercados e
consequentes abusos. Ao mesmo tempo, a crise ofereceu-lhe uma certa liberdade
criativa.
João Pereira Coutinho acaba de editar Conservadorismo pela
Dom Quixote Paulo Pimenta
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António Araújo, historiador e autor de um ensaio sobre a
cultura de direita em Portugal, explicou-nos que a crise veio roubar ilusões de
cientificidade à Economia. É uma disciplina que “andou décadas a cultivar um
estatuto próximo do das ciências exactas, com estatísticas, modelos
matemáticos, etc.”, disse Araújo. Agora, a Economia foi obrigada a reconhecer o
carácter ideológico das suas teorias.
A direita do liberalismo económico foi penalizada pela
crise, na sua presunção de seguir modelos e práticas económicas comprovadas,
rigorosas, não ideológicas. Mas abriu-se o campo para uma direita mais
ideológica, mais intelectual e mais variada.
Novos gurus
O conservadorismo é uma das correntes ideológicas que estão
a fazer o seu caminho entre as novas gerações da direita portuguesa. Um
conservadorismo teórico, fundamentado e assumido, é isso que João Pereira
Coutinho descreve no livro intitulado Conservadorismo, que acaba de lançar,
pela editora Dom Quixote. É um ensaio sobre o filósofo irlandês Edmund Burke e
uma das obras que estão a fazer furor entre a nova intelectualidade de direita.
Além dos livros que estão a ser editados, ou reeditados, uma
série de jovens cronistas e analistas de direita está a ocupar o espaço público
na imprensa e nos canais televisivos. João Pereira Coutinho, Henrique Raposo,
Pedro Mexia, João Miguel Tavares ou Pedro Lomba são nomes que nos últimos anos
ascenderam a um estatuto de estrelato até então reservado aos intelectuais de
esquerda.
Figuras das gerações anteriores, como Rui Ramos ou até Jaime
Nogueira Pinto têm ganho mais exposição mediática, jornalistas e cronistas e
intelectuais de direita criaram blogues, alguns muito populares, e surgiu um
novo jornal, totalmente online, com tendência assumidamente de direita, o
Observador.
Algumas novas bandas de música também se posicionam à
direita. Caso de Manuel Fúria e de Tiago Cavaco. A cultura de direita está
finalmente a ocupar o seu espaço. O anátema que existiu desde o 25 de Abril de
1974 parece estar a desaparecer.
Os novos gurus expõem as suas teorias e comentam a realidade
sem pejo e com uma agressividade que só era costume brotar das penas de
esquerda. E têm muitos seguidores.
Ser de direita já não provoca confrangimento nem má
consciência. Não significa necessariamente defender os privilegiados, ser
socialmente insensível, retrógrado e reaccionário. Nem sequer o conservadorismo
dos costumes. Ser de direita já não é um sinal de inferioridade intelectual,
nem de indiferença à injustiça, ódio à mudança, ou pertença às classes altas.
Pelo menos é isto que acham os novos arautos da direita. Por ser de direita, já
não perdemos os amigos. Já não nos caem os parentes na lama.
O politólogo Jaime Nogueiro Pinto diz a brincar: "sou o
fascista de serviço" Rui Gaudêncio
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E tudo isto é novo. A esquerda tem sido hegemónica nos
media, na cultura. Para nem falar da política, onde os partidos mais à direita
se dizem centristas ou sociais-democratas. De certa forma, ser de direita é uma
vergonha, quase um crime. Para muitos, algo inconfessável. Há coisas que as
pessoas de direita dizem entre si, mas nunca em público, admitiu o politólogo
Jaime Nogueira Pinto, que esteve uma década exilado, depois do 25 de Abril, e
continua a dizer, a brincar, que é “o fascista de serviço”.
Pereira Coutinho explicou: “Ninguém quer ser conotado com o
regime autoritário salazarista. A direita tem sido identificada com esse
regime, não conseguiu emancipar-se disso.” A esquerda tem-se encarregado de
fazer esta identificação, mas a capacidade da direita para se libertar também
não tem sido brilhante. Muitas vezes, a hegemonia da esquerda e a caricatura
que esta faz da própria direita, conotando-a com o salazarismo, funciona como
uma desculpa da direita para “esconder as suas fragilidades e a incapacidade de
construir um projecto cultural alternativo, que nunca teve”, disse António
Araújo.
Nacionalistas revolucionários
O equívoco surge logo no 25 de Abril. Tal como 1989 abalou a
esquerda, que era hegemónica na Europa desde 1945 (com a derrota do nazismo e
fascismo), 1974 quase extinguiu a direita em Portugal. A ditadura era de
direita, portanto o novo regime seria de esquerda.
Jaime Nogueira Pinto, que era de direita antes do 25 de
Abril e continuou a sê-lo depois, explica como tudo aconteceu: “A direita,
melhor ou pior, governou Portugal durante 48 anos, de um modo autoritário.
Primeiro com a ditadura militar, depois com o Estado Novo, de Salazar e Caetano.
A esquerda veio a seguir e fez o que as esquerdas sempre fazem: proibiu a
direita.”
Quem tinha alguma ligação ao antigo regime foi banido.
Curiosamente, os que não tinham, ainda que, no tempo de Marcelo Caetano, se
situassem à direita dele, foram aceites. Nogueira Pinto referiu casos de
pessoas que se incompatibilizaram com o antigo regime, por o considerarem
“esquerdista”, e que foram por isso convidadas para cargos de poder, depois do
25 de Abril.
Havia uma direita nacionalista, da qual ele, Nogueira Pinto,
fazia parte, que poderia ter-se organizado e sobrevivido no regime democrático.
Tal não aconteceu porque, na tentativa de golpe direitista de 28 de Setembro de
1974, todos eles se colocaram ao lado de Spínola para tentar o reviralho e
foram presos ou obrigados a fugir.
Era o recém-criado Partido do Progresso, eram os elementos
de “uma direita intelectual e activista, de movimentos de juventude, que não se
identificavam com o salazarismo, mas mais depressa com ideias fascistas. Não se
autodesignavam como de direita, mas como nacionalistas revolucionários”.
Mas o próprio Nogueira Pinto reconhece que estas facções não
tinham relevância, e não teriam grande futuro, porque a sua grande causa era o
império. E eram fracas porque Salazar nunca as deixou desenvolver-se. Por
paradoxal que pareça, a direita foi praticamente extinta durante o salazarismo.
“O Salazar não queria essa gente. Quem fazia política era o Governo. Não havia
partido. A União Nacional era uma coisa só para as eleições, mas o Salazar nunca
lhe ligou nenhuma. Só havia o Governo, e no Governo quem definia a política era
o Salazar. Os ministros eram apenas técnicos e os que tentaram ter uma palavra
política não duraram muito. As únicas pessoas que tinham actividade política
eram as de esquerda.”
Apesar de perseguidas, conseguiram criar o seu espaço, mais
ou menos clandestino. No Partido Comunista, nas revistas, como a Seara Nova, a
Vértice, ou o Tempo e o Modo, nas editoras. “Há hoje muito mais pensamento
livre de gente de direita do que havia naquele tempo”, disse Jaime Nogueira
Pinto, cujos livros estão agora a ser reeditados pela Dom Quixote.
Um partido democrata-cristão também não se chegou a formar.
Não tinha qualquer base anterior à revolução, mais uma vez porque Salazar não
deixou. “Seria cristão, mas também democrata, e Salazar não queria ver essas
duas palavras juntas”, disse Araújo. “Além disso, Salazar, apesar da fama de
sacrista, era um homem da razão de Estado.”
Depois do 25 de Abril também não foi possível “porque Cunhal
tinha muito medo da Igreja”, explicou Araújo. E não havia nenhuma força que
tivesse ligações com a democracia cristã europeia. “O Sá Carneiro tentou entrar
na Internacional Socialista, não na democracia cristã.”
Os partidos que se formaram eram todos de esquerda. O mais à
direita do espectro era o CDS, que se proclamava do centro e tinha a construção
do socialismo como um dos pontos do programa. O outro era o PPD, que se
considerava social-democrata. Dos dois, segundo Jaime Nogueira Pinto, era o CDS
que tinha menor legitimidade, porque os seus fundadores tinham tido ligações ao
antigo regime. Os do PPD (Sá Carneiro, Pinto Balsemão) haviam lutado na ala
liberal da Assembleia Nacional marcelista. Isso habilitava-os a actores
legítimos no novo regime. Por essa razão o futuro PSD seria o partido
maioritário da direita, e não o CDS, o que teria levado ao grande paradoxo do
regime que temos hoje: os dois partidos que se alternam no poder (PS e PSD) são
iguais.
O que, segundo os actuais paladinos da nova direita, talvez
não corresponda à verdadeira polarização da sociedade portuguesa. “No PSD e
CDS, os princípios políticos estão à esquerda dos dirigentes, os dirigentes
estão à esquerda dos militantes, os militantes estão à esquerda dos eleitores”,
brinca Jaime Nogueira Pinto.
O 25 de Abril já não está em causa
A direita que agora surge no espaço público não se sente
presa a esta lógica. “Eu tanto critico o Álvaro Cunhal como o Salazar”, disse
João Pereira Coutinho. “Sou conservador, mas condeno qualquer tipo de ditadura.
Quero viver num regime livre, onde possa ter acesso aos meus livros, às minhas
revistas. Quando amigos estrangeiros me perguntam quanto tempo durou a nossa
ditadura, eu tenho vergonha de dizer.”
Pereira Coutinho considera-se um conservador, na esteira de
Burke, o irlandês que criticou a Revolução Francesa. Dá mais valor à tradição
do que à revolução. Considera que, nas sociedades, as mudanças devem ser
graduais e parciais, segundo o princípio de que o que existe é quase sempre
melhor do que as mudanças que poderíamos fazer, e as realidades mais antigas
tendem a ser as melhores, porque resistiram à prova do tempo. “Para quê mudar,
se as coisas já estão tão mal?”, cita ele. Mas até os conservadores mais
ortodoxos aceitam a necessidade de uma revolução, em certos casos difíceis. “O
25 de Abril é definitivamente um desses casos em que a revolução foi necessária
e justa.”
A direita moderna aceita o 25 de Abril sem reservas, como
momento fundador do regime que hoje vigora, diz Pereira Coutinho. Não o 25 de
Novembro de 1975, que deve ser visto apenas como um momento aperfeiçoador e
estabilizador do regime.
O 25 de Abril já não está em causa para a direita e por isso
também já não faz sentido que a esquerda o use como arma de arremesso, disse
António Araújo. Isso significa que, entre os intelectuais da nova geração,
direita e esquerda não se encaram já como inimigos mas como adversários. Não
como forças que é preciso exterminar mutuamente, mas que devem coexistir, não
apenas porque não há outro remédio, mas porque é desejável que assim seja. “Um
intelectual da esquerda como o Daniel Oliveira, por exemplo, precisa do
contraditório para se afirmar”, disse Araújo. “É um intelectual público
polémico, só existe com o contraditório. Precisa de adversários à altura.”
É claro que, a ser verdade, isto implica uma redefinição da
teoria clássica da luta de classes. A esquerda terá de admitir que ser de
direita não consiste apenas em defender os privilégios da própria classe,
contra as reivindicações justas dos explorados.
Os novos intelectuais de direita esforçam-se por desmontar
esta lógica. Antes de mais sendo muitos deles de origem humilde. É o caso de
Henrique Raposo, que não se cansa de o repetir, nas suas crónicas do Expresso.
“Afirmando as origens humildes, estes cronistas reivindicam a meritocracia e
rejeitam a origem de classe”, disse Araújo. “Podem disputar à esquerda essa
legitimidade. Henrique Raposo expõe a sua autobiografia para dizer que não é um
filho-família. Está ali por mérito próprio. A Internet e a blogosfera são muito
democratizadoras.” Para Araújo, foi a blogosfera que tornou possível aos
cronistas de direita usurparem os lugares que na imprensa tradicional eram
monopolizados pelos de esquerda. Agora não há filtros nem hierarquias, qualquer
um pode exprimir-se e conquistar audiências. E quem o está a fazer com mais
êxito são os cronistas de direita, que dos blogues saltam para os jornais
tradicionais, que procuram desesperadamente conquistar ou manter audiências.
“O Expresso contratou-me porque eu sou bom”, disse Henrique
Raposo, para quem ser de direita ou de esquerda nada tem que ver com origem
social. Para ele, o 25 de Abril e o regime que dele emanou também não estão em
causa. Já a Constituição, sim. Isso é o que pode hoje dividir direita e
esquerda, embora não devesse ser assim. “Eu, como pessoa de direita, sinto-me
inferior perante esta Constituição, que diz que quem não é socialista não pode
governar.” É o momento de alterar a lei fundamental. “A direita já não tem medo
de ir para o Campo Pequeno, a esquerda já não receia morrer nas fogueiras do
Norte. Já nos podíamos sentar à mesa e fazer uma Constituição nova.”
Uma genealogia para a actual direita
A direita é, por natureza, mais realista do que a esquerda,
que prefere as utopias. “A esquerda pensa por variáveis económicas e sociais; a
direita por variáveis culturais e institucionais. A esquerda tem de fazer um
esforço para acompanhar as coisas, de um ponto de vista institucional.” Por
isso, talvez a direita seja mais competente a aperfeiçoar as instituições, diz
Raposo. Instituições que permitam a coexistência e o combate político num
quadro estável que anteceda os partidos.
“A nossa tragédia tem sido, pelo menos desde o século XIX,
os nossos radicais terem ganho sempre aos moderados, quer à direita, quer à
esquerda. Houve guerra entre liberais e miguelistas. Nunca conseguiram
sentar-se à mesa. Depois, com os miguelistas anulados, houve as guerras entre
os liberais.” O mesmo aconteceu com a República e com o Estado Novo: os
adversários são aniquilados.
É por isso que a direita de hoje tem muito a aprender com os
moderados do período liberal, considera Raposo. Geralmente, pensa-se que os 48
anos do antigo regime criaram um hiato tão grande que não há qualquer
continuidade entre os partidos do período liberal e os actuais. Quando muito,
há uma herança da I República que foi recuperada pelo actual PS, além do
Partido Comunista, que se baseava numa ideologia externa e no exemplo
soviético. Todo o espectro político de hoje teria nascido em 1974 a partir do
nada.
Henrique Raposo trabalha para dar uma genealogia à actual
direita, que não a tem e é por isso mais frágil do que a esquerda. Acha que
houve uma improvável e oportunista aliança conspirativa entre os integralistas
no Estado Novo, encabeçados por António Sardinha, e os intelectuais de esquerda
republicana liderados por António Sérgio, para fazer esquecer o período
liberal, da monarquia constitucional. Por motivos opostos, interessou a
Sardinha e a Sérgio identificar o liberalismo com a monarquia, por oposição à
República, e esta com a esquerda, por oposição ao Estado Novo. Isto significa
que se esqueceram cem anos fundamentais da nossa História, quando o que
deveríamos hoje ignorar era o período da República e do Estado Novo como um
bloco. “A monarquia liberal foi apagada da nossa História, tanto pela esquerda
como pela direita.”
Em suma: para Raposo, os liberais moderados defensores da
carta Constitucional, os cartistas, são os legítimos antepassados da moderna
direita de hoje. “Temos 100 anos de História para aproveitar. Os cartistas,
Palmela, Rodrigo, Fontes e Franco pensaram o país dentro de uma lógica de
direita liberal. Esses 40 anos, entre 1851 e o Ultimato de 1890, foram os
únicos em que tivemos uma civilização constitucional. Esses 40 anos e estes
últimos, da III República, foram os melhores de toda a nossa História. O que
temos de aprender com os cartistas é a criação de um conjunto de regras que tem
existir antes dos partidos.”
Miguel Esteves Cardoso e Paulo Portas discutiram há três
semanas os tempos em que fundaram e dirigiram o Independente Pedro Nunes
|
A inspiração francesa
Esta será uma das facetas da nova direita. Outra é o
liberalismo da tradição anglo-saxónica. Chegou porque, explica Jaime Nogueira
Pinto, “os americanos ganharam a Guerra Fria”. O neoliberalismo começou nos
anos 1980, com Margaret Thatcher e Ronald Reagan, num impulso de desregular os
mercados, baixar os impostos e, no caso britânico, acabar com o poder dos
sindicatos. Isto acompanhado de um renascimento religioso e um fortalecimento
do Estado nas relações externas, o patriotismo e o rearmamento.
Esta visão anglo-saxónica da direita opunha-se à continental
europeia, mais marcada pelo autoritarismo. Nogueira Pinto, autor de uma
prestigiada tese de doutoramento de mais de mil páginas sobre ideologia e razão
de Estado, considera que o regime político inglês (e em consequência o
americano) não é uma verdadeira democracia. “Na Inglaterra, a grande
preocupação do sistema é preservar os direitos e liberdades individuais. Já na
tradição francesa, a preocupação é assegurar o governo da maioria.”
Segundo Rousseau e os filósofos da Revolução, a maioria
representa o povo, que é uma espécie de entidade sagrada, como dantes era o
rei. A maioria deve portanto exercer o poder. Os sistemas anglo-saxónicos estão
organizados para proteger as minorias do poder absoluto da maioria, ou seja,
são mais individualistas e estão mais bem apetrechados para proteger os
privilegiados.
A tradição da direita portuguesa sempre foi a francesa. Mas
nos anos 1980 deu-se uma inflexão, por vários motivos. “As direitas
partidárias, mas também intelectuais, queriam escapar ao estigma do
autoritarismo salazarista”, disse Nogueira Pinto. “Por isso, agarraram-se muito
à questão da liberdade política, que nunca foi um grande valor da direita
continental. A Inglaterra, por ser uma ilha, e os EUA, uma nação-continente,
nunca tiveram necessidade de ter um Estado de poder concentrado. As direitas em
França e noutras nações europeias sempre defenderam o autoritarismo. Os EUA
misturaram duas coisas que na Europa não eram misturáveis: o liberalismo
económico, a ideia do pequeno estado no sentido económico e o grande estado no
sentido militar e político. Aqui em Portugal e noutros países europeus mais
marginais o que apanhámos foi este segundo lado, da desregulação e do pequeno
estado económico, porque estávamos no período da desintervenção, que tínhamos
feito no PREC.”
Outras razões foram a crescente hegemonia cultural dos EUA e
o facto de muitos jovens portugueses terem ido para lá estudar, nos anos 1980.
O liberalismo económico de matriz anglo-saxónica é portanto
outra das facetas da nova direita. Uma característica que foi preciso conciliar
com o padrão tradicionalista nos costumes que sempre foi apanágio da direita
portuguesa. É uma das contradições clássicas da direita — o paradoxo entre o
liberalismo económico e o tradicionalismo nos costumes, tal como entre o Estado
forte para manter o poderio e soberania da nação, e o Estado fraco, que não
intervém na economia. A liberdade de iniciativa, de criar a sua própria
empresa, sem obstáculos, e a ordem nas ruas, a segurança que só um Estado forte
pode garantir. Entre o individualismo e a autoridade. Em Portugal, essas contradições
eram particularmente agudas.
Tal como no tempo do Independente, surgiu uma linguagem
agressiva e iconoclasta, muito opinativa. Segundo Araújo, é a lógica da
blogosfera e das redes sociais que permite e instiga este tipo de atitude, ao
obrigar à permanente notoriedade. “A competição é enorme, as pessoas só existem
se obedecerem à tirania da notoriedade. É preciso estar sempre a emitir
opiniões, a ser agressivo e original.”
Outra razão é a competição com os intelectuais da esquerda,
que não têm tanta necessidade de provar o seu valor. “Temos de ser melhores do
que eles, porque trabalhamos em ambiente hostil”, disse Raposo. O ambiente
hostil que ainda são os jornais e revistas, onde ainda há uma hegemonia da
esquerda, mesmo que não se dê por ela, de tão habitual. “Escrever crónicas nos
jornais, para nós, é como ser do Benfica e ir todas as semanas jogar ao estádio
do Dragão.”
Araújo notou que, por exemplo, a forma como vários cronistas
da direita se têm referido a Mário Soares denota uma agressividade e
informalidade que eram até aqui apanágios dos cronistas da esquerda. “Mesmo em
termos de vestuário, os novos cronistas são diferentes, mais informais. Olhe
para o Henrique Raposo. Não andam de fato e gravata. Perderam os complexos de
direita, não querem ser identificados com betinhos. O que provoca mais horror
aos novos intelectuais de direita é serem identificados com a direita
ultramontana, caceteira, miguelista, reaccionária, ou a direita dos fados e das
touradas. Eles renegam isso, a direita dinástica, familiar, provinciana. São
urbanos, sofisticados, cosmopolitas, universitários. Pedro Mexia não é
universitário, mas move-se nos meios literários e intelectuais sem complexos,
como qualquer indivíduo de esquerda.”
Este tipo de atitude é também a que impede estes novos
intelectuais de direita de se misturarem com os partidos da direita. Nogueira
Pinto e Raposo dizem que, ao contrário dos intelectuais de esquerda, têm outros
interesses, para além da política. A direita interessa-se pela realidade,
enquanto a esquerda se ocupa da utopia. A direita não está portanto tão
preocupada em mudar essa realidade. Gosta dela tal como é, é esse o princípio
do conservadorismo.
Raposo disse que, mesmo com as suas crónicas, não tem por
objectivo influenciar os eleitores, e muito menos os dirigentes partidários,
mas apenas comunicar com os seus leitores. Admite que está a formar neles,
principalmente nos mais jovens, uma mentalidade diferente, mas que só produzirá
resultados visíveis a nível político na próxima geração.
“Estes bloggers e cronistas são franco-atiradores”, disse
Araújo. “Beneficiam do star-system, mas não têm tradução política imediata. O
importante para eles é terem conquistado o direito de existir. O direito de
cidadania. Como se soubessem que a única coisa que têm agora é o direito de
estar no circo. E eles não querem entrar na política partidária. São
inexperientes nisso. Não fizeram o percurso da ‘carne assada’, como os líderes
políticos têm de fazer. Ou se andou em Yale ou na ‘carne assada’. Por isso os
partidos vão continuar imunes a estas pessoas. No momento em que eles quiserem
dominar, a máquina expulsa-os.”
Os representantes da nova direita intelectual têm a noção de
que o seu poder está fora dos partidos, nos media. Além disso, são demasiado
heterogéneos ideologicamente para que se pudessem organizar num projecto. Essa
é uma das suas características. Uns são liberais, outros nacionalistas, uns
conservadores, outros libertários. E em comum têm alguma coisa? O que os faz
dizer que são de direita? Poucas coisas. O tradicionalismo, o valor da nação, a
religiosidade. Mas nem isso é comum a todos. Uma coisa sim: o pessimismo.
Pessimismo antropológico, diz Nogueira Pinto. A crença de que o ser humano é
mau. “A esquerda acha que o homem, se o deixarem livre e sozinho, fará coisas
maravilhosas. A direita desconfia disso. É preciso haver autoridade ou não
permitir que ponham em prática projectos totais, utópicos.” É por isso que a
direita é necessária, segundo ela própria, para evitar a perigosa mudança. E que
precisa da esquerda, senão nada muda.
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