“O bezerro de ouro”
ANTÓNIO SÉRGIO
ROSA DE CARVALHO 22/05/2014 – PÚBLICO
Debate Cidades e
património
Todo o centro histórico está, através de uma “gentrificação” especulativa,
a ser transformado num “gueto” do turismo de massas.
Portugal submisso
acordou “limpo”. Sentido-se culpado e tímido desde a descolonização, aceitou a
condenação e a sentença impostas por outros. Sente-se agora aliviado por uma
solução também imposta por outros, e restabelecido com plenas honras no clube a
que deseja desesperadamente pertencer.
Esta saída foi
comemorada simbolicamente por duas “entradas”.
A primeira foi
ilustrada através de viagem iniciática ao Portugal renascido para a banca
internacional, num barquinho viajando através de um Portugal de cartolina,
agora já não dos “pequeninos” mas dos pequeníssimos.
A segunda, esta
de maior escala, pela visita de três paquetes históricos, mensageiros das
promessas do novo “bezerro de ouro”, o turismo de massas.
Foi com grande
regozijo esperançado que recebemos este sinal de um futuro promissor.
Enquanto a
juventude portuguesa parte, a tal que iria construir Portugal de forma
sustentada, aqueles que irão trazer dinheiro de forma instantânea chegam.
De resto, Manuel
Salgado e Costa já desenvolveram e garantiram o décor e palco para o culto deste
“bezerro de ouro”.
Assim, todo o
centro histórico está, através de uma “gentrificação” especulativa, a ser
transformado num “gueto” do turismo de massas.
O planeamento e
construção de hotéis não pára. A entrega de todo o património pombalino às
imobiliárias, exclusivamente para habitação de luxo, está já vitoriosamente,
ajudada pelos vistos gold, a aumentar os preços.
Há promessas de
que muitos reformados do Norte da Europa se instalem, usufruindo da docilidade
natural local, anestesiada pela crise e pela confirmação de dependência e
inferioridade.
O mundo das
imobiliárias e da construção espera agora desesperadamente que lhe entreguem
todo o centro histórico, em nome da famigerada “reabilitação urbana”.
As poucas
famílias locais que se instalaram nos “bairros históricos” são agora obrigadas
a transformarem as suas habitações num gigantesco negócio de estadias
temporárias, simultaneamente tentando escapar ao barulho e lixo permanentes,
garantidos pela “animação do 'Zé'”, que estão a tornar Lisboa inabitável.
Está assim
garantida a transformação de toda a Lisboa, não em cidade apropriada e vivida
pelos residentes locais com identidade própria, mas sim em produto de consumo
efémero e temporário, palco globalizado pronto a ser devorado pelo turismo de
massas.
Barcelona
produziu um documentário dirigido de forma muito crítica às consequências para
a cidade e os seus habitantes de um turismo massificado.
São conhecidas as
quatro fases progressivas das reacções locais aos efeitos do turismo de massas:
euforia, apatia, irritação e antagonismo.
Estamos
simultaneamente na fase de euforia e de apatia.
Apatia perante as
consequências da estratégia delineada por Manuel Salgado, que não só destrói
todos os interiores do património pombalino, mas leva a uma “demolição”
sociológica de ocupação, muito mais grave. Um centro histórico ocupado apenas
por ricos ou turistas, sem identidade ou famílias locais, produto temporário e
décor efémero pronto a ser devorado.
Não tardará muito
que se passe à fase da irritação. Se se passará à fase do antagonismo, duvido.
De qualquer
maneira, este é um processo irreversível e imparável.
Por detrás do
altar do “bezerro de ouro” esconde-se a plataforma de sacrifício onde milhares
de cordeiros dóceis, com a corda ao pescoço, aguardam a matança.
Historiador de Arquitectura
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