OPINIÃO
O espectro da extrema-direita
xenófoba
PAULO GRANJO
08/06/2014 - PÚBLICO
Qual a solução para evitar que a extrema-direita xenófoba se transforme de
um espectro num monstro bem real?
Anda um espectro
pela Europa. Já não o do comunismo, esperançosamente anunciado por Marx e
Engels no seu Manifesto, mas o da ascensão de uma extrema-direita chauvinista,
xenófoba e racista.
Os resultados das
recentes eleições para o Parlamento Europeu são, a esse título, assustadores.
Os partidos de extrema-direita ficaram em primeiro lugar, com mais de 25% dos
votos, na França, na Grã-Bretanha e na Dinamarca, tendo subido muito de votação
na Áustria e na Grécia. Boas notícias, só mesmo as vindas da Holanda e da
Bélgica, onde os partidos xenófobos sofreram fortes quebras, quando esperavam
vencer – isto, claro está, para além daquelas vindas dos muitos países onde
tais forças políticas continuam a ser marginais e residuais.
Os paralelos históricos
- com a crise dos anos 30 do século passado e com a ascensão do nazismo alemão
e dos vários fascismos europeus - tornam-se tentadores, mas não menos
ilusórios.
Apesar da
construção de bodes-expiatórios (de que o Holocausto antissemita e anti-cigano
foi a mais trágica, embora não única, expressão), o apelo de então à ordem e
estabilidade, sob a asa de um “estado forte” que acabaria com o desemprego
massivo e despertaria a força da “raça” nacional, só tem paralelos nos dias de
hoje naquilo que diz respeito ao nacionalismo, à xenofobia e ao
conservadorismo. Também nesses aspetos, creio, com conteúdos razoavelmente
diferentes.
O nacionalismo
destes novos extremistas é sobretudo apontado à União Europeia regulamentadora
e burocrática, explorando problemas realmente existentes e graves, com efeitos
devastadores nalguns países: a hiper-regulamentação da vida quotidiana, a
acelerada perda de soberania e capacidade de decisão nacionais, em proveito de
uma estrutura “estrangeira” e não-democrática, a incapacidade desta em
responder de forma eficaz à crise – sem questionar que os pressupostos
económicos e políticos das respostas que a EU teve, e que agravaram a crise,
são exatamente os mesmos que partilham os novos arautos do conservadorismo
xenófobo.
A xenofobia, por
seu lado, já não tem por objeto velhos inimigos históricos nem históricos
bodes-expiatórios “internos”, mas os imigrantes – de África, da Ásia ou de
países europeus mais pobres e tidos como culturalmente diferentes. Neste campo,
e face à incompetência técnica e política de governos que repetem
contraproducentes receitas neoliberais, revivificam-se velhos lugares-comuns dos
países mais ricos: a suposta responsabilidade dos marginalizados imigrantes na
situação de desemprego e diminuição de rendimentos dos “nacionais”, a que se
vêm juntar desagrados por práticas culturais e religiosas, facilmente
manipuláveis como abastardamentos da “verdadeira” e “tradicional” identidade e
forma de vida da “nação”.
Em grande medida,
o terreno fértil quer para esta responsabilização do “outro” (mesmo que filho
ou neto de nascidos em território nacional) pelos nossos infortúnios, quer para
a exigência de fronteiras blindadas e de limpezas étnicas por repatriamento,
deve tanto às dificuldades de vida exponenciadas pela crise quanto à falência
dos modelos de integração social praticados na Europa.
Conforme já
salientava há mais de uma década o antropólogo Miguel Vale de Almeida (1),
ambos os modelos – o assimilacionismo “à francesa” e o “multiculturalismo “à
holandesa” – estão baseados numa visão essencialista, imutável, internamente
homogénea e externamente exclusiva das “culturas” e provocam efeitos perversos
contraproducentes. Poderíamos explicitar que, combinados com a discriminação
maioritariamente vivida pelos imigrantes, estimulam até fenómenos de
resistência cultural essencialista, muitas vezes contrários às expectativas e
interesses dos seus atores, mas aos quais estes não podem ou não querem
eximir-se.
O
assimilacionismo constitui uma violência ao exigir, como condição para a
integração no todo nacional, o abandono em bloco de uma cultura vista como
monolítica e a adoção em bloco de uma outra, aquela que é atribuída ao país de
acolhimento. Com maior ou menor aceitação dessas regras de jogo, contudo, a
evidência quotidianamente vivida da discriminação convida, afinal, ao reforço e
exagero dos traços culturais dessa diferença negada (como afirmação identitária
e de protesto), com isso reforçando a exclusão e as desculpas para a praticar.
Por seu lado, o
multiculturalismo visto como uma coexistência compartimentada de culturas
diferentes e separadas (a suposta base de legitimação do apartheid, afinal),
embora baseado numa bem-intencionada visão do direito à diferença, incentiva a
segregação espacial e relacional em comunidades separadas. Uma segregação que
facilita as capacidades de controlo social por parte de aspirantes a líderes
comunitários e religiosos e que, associada a uma também real discriminação
quotidiana, igualmente convida a uma reprodução cultural em circuito interno,
exageradora, desadaptada do contexto mais vasto onde essas comunidades se
inserem e, também ela, conducente a uma maior segregação e discriminação.
Em ambos os
casos, então, aquilo que seria normal e desejável num contexto de contínuo
contacto intercultural (o desenvolvimento, em cada indivíduo imigrante ou
indígena, de uma constelação mutável de referências culturais que resulta, de
forma ativa e passiva, da sua interação com todos os outros – ou, como lhe
chamava Vale de Almeida, de uma “cidadania cosmopolita”) é muito dificultado,
com isso arrastando uma artificial e enquistada diferenciação, facilitadora da
criação de bodes expiatórios.
No entanto, se a
culpa da crise económica e do seu agravamento é das práticas neoliberais e das
políticas prosseguidas pelos políticos instalados, e se a culpa do ascenso da
extrema-direita xenófoba é tanto dos reais problemas das políticas comunitárias
e nacionais quanto da mais primária manipulação dos sentimentos de insegurança
e incerteza dos cidadãos precarizados e empobrecidos por essa crise, a esquerda
europeia não está isenta de responsabilidades nesse ascenso.
Não o está, antes
de mais e nos seus sectores mais centristas, pela integração que foi fazendo,
nas últimas décadas, de princípios neoliberais e de práticas governativas que
lhes correspondem. Com isso se tornou no passado imediato uma parte do
problema, criando uma cumplicidade com as mais contraproducentes e destruidoras
lógicas austeritárias de resposta à crise, limitando-se a críticas de grau
quanto aos diagnósticos e soluções, e descredibilizando-se - por esse real
vazio de diferença – enquanto alternativa efetiva.
Tão-pouco está
isenta de responsabilidades, em quase todos os países, a esquerda da esquerda.
Pela continuidade, mesmo em tempos de emergência social e política, do seu
habitual fraturamento e pela subalternização do debate e busca de plataformas
comuns à preocupação de tentar salvaguardar os interesses de implantação de
cada grupo. Também, pela desistência de procurarem forçar ao diálogo a esquerda
que está à sua direita, com isso influenciando, no mínimo, as suas posições e
produzindo uma clarificação. Não o está, ainda, pela sua predominante
incapacidade para, a partir de diagnósticos acerca da crise e das lógicas
austeritárias que acertam na mouche, transmitirem esses diagnósticos e as
alternativas que apontam de uma forma clara, compreensível e credível para
qualquer cidadão.
Neste quadro, não
será talvez razão para grande espanto que seja em zonas de predominância
histórica da esquerda que a extrema-direita xenófoba comece, com mais
frequência, o seu crescimento.
Qual a solução
para evitar que a extrema-direita xenófoba se transforme de um espectro num
monstro bem real?
Não posso dar
outra resposta que não seja “combater e reverter todos os fatores que apontei
para esse crescimento”. Talvez começando, apenas por uma questão de
exequibilidade e urgência (mas sem desvalorizar os restantes), por aqueles que
têm um carácter político e comunicacional, a nível nacional e europeu.
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