sábado, 7 de junho de 2014

O espectro da extrema-direita xenófoba


OPINIÃO
O espectro da extrema-direita xenófoba
PAULO GRANJO 08/06/2014 - PÚBLICO
Qual a solução para evitar que a extrema-direita xenófoba se transforme de um espectro num monstro bem real?

Anda um espectro pela Europa. Já não o do comunismo, esperançosamente anunciado por Marx e Engels no seu Manifesto, mas o da ascensão de uma extrema-direita chauvinista, xenófoba e racista.

Os resultados das recentes eleições para o Parlamento Europeu são, a esse título, assustadores. Os partidos de extrema-direita ficaram em primeiro lugar, com mais de 25% dos votos, na França, na Grã-Bretanha e na Dinamarca, tendo subido muito de votação na Áustria e na Grécia. Boas notícias, só mesmo as vindas da Holanda e da Bélgica, onde os partidos xenófobos sofreram fortes quebras, quando esperavam vencer – isto, claro está, para além daquelas vindas dos muitos países onde tais forças políticas continuam a ser marginais e residuais.

Os paralelos históricos - com a crise dos anos 30 do século passado e com a ascensão do nazismo alemão e dos vários fascismos europeus - tornam-se tentadores, mas não menos ilusórios.

Apesar da construção de bodes-expiatórios (de que o Holocausto antissemita e anti-cigano foi a mais trágica, embora não única, expressão), o apelo de então à ordem e estabilidade, sob a asa de um “estado forte” que acabaria com o desemprego massivo e despertaria a força da “raça” nacional, só tem paralelos nos dias de hoje naquilo que diz respeito ao nacionalismo, à xenofobia e ao conservadorismo. Também nesses aspetos, creio, com conteúdos razoavelmente diferentes.

O nacionalismo destes novos extremistas é sobretudo apontado à União Europeia regulamentadora e burocrática, explorando problemas realmente existentes e graves, com efeitos devastadores nalguns países: a hiper-regulamentação da vida quotidiana, a acelerada perda de soberania e capacidade de decisão nacionais, em proveito de uma estrutura “estrangeira” e não-democrática, a incapacidade desta em responder de forma eficaz à crise – sem questionar que os pressupostos económicos e políticos das respostas que a EU teve, e que agravaram a crise, são exatamente os mesmos que partilham os novos arautos do conservadorismo xenófobo.

A xenofobia, por seu lado, já não tem por objeto velhos inimigos históricos nem históricos bodes-expiatórios “internos”, mas os imigrantes – de África, da Ásia ou de países europeus mais pobres e tidos como culturalmente diferentes. Neste campo, e face à incompetência técnica e política de governos que repetem contraproducentes receitas neoliberais, revivificam-se velhos lugares-comuns dos países mais ricos: a suposta responsabilidade dos marginalizados imigrantes na situação de desemprego e diminuição de rendimentos dos “nacionais”, a que se vêm juntar desagrados por práticas culturais e religiosas, facilmente manipuláveis como abastardamentos da “verdadeira” e “tradicional” identidade e forma de vida da “nação”.

Em grande medida, o terreno fértil quer para esta responsabilização do “outro” (mesmo que filho ou neto de nascidos em território nacional) pelos nossos infortúnios, quer para a exigência de fronteiras blindadas e de limpezas étnicas por repatriamento, deve tanto às dificuldades de vida exponenciadas pela crise quanto à falência dos modelos de integração social praticados na Europa.

Conforme já salientava há mais de uma década o antropólogo Miguel Vale de Almeida (1), ambos os modelos – o assimilacionismo “à francesa” e o “multiculturalismo “à holandesa” – estão baseados numa visão essencialista, imutável, internamente homogénea e externamente exclusiva das “culturas” e provocam efeitos perversos contraproducentes. Poderíamos explicitar que, combinados com a discriminação maioritariamente vivida pelos imigrantes, estimulam até fenómenos de resistência cultural essencialista, muitas vezes contrários às expectativas e interesses dos seus atores, mas aos quais estes não podem ou não querem eximir-se.

O assimilacionismo constitui uma violência ao exigir, como condição para a integração no todo nacional, o abandono em bloco de uma cultura vista como monolítica e a adoção em bloco de uma outra, aquela que é atribuída ao país de acolhimento. Com maior ou menor aceitação dessas regras de jogo, contudo, a evidência quotidianamente vivida da discriminação convida, afinal, ao reforço e exagero dos traços culturais dessa diferença negada (como afirmação identitária e de protesto), com isso reforçando a exclusão e as desculpas para a praticar.

Por seu lado, o multiculturalismo visto como uma coexistência compartimentada de culturas diferentes e separadas (a suposta base de legitimação do apartheid, afinal), embora baseado numa bem-intencionada visão do direito à diferença, incentiva a segregação espacial e relacional em comunidades separadas. Uma segregação que facilita as capacidades de controlo social por parte de aspirantes a líderes comunitários e religiosos e que, associada a uma também real discriminação quotidiana, igualmente convida a uma reprodução cultural em circuito interno, exageradora, desadaptada do contexto mais vasto onde essas comunidades se inserem e, também ela, conducente a uma maior segregação e discriminação.

Em ambos os casos, então, aquilo que seria normal e desejável num contexto de contínuo contacto intercultural (o desenvolvimento, em cada indivíduo imigrante ou indígena, de uma constelação mutável de referências culturais que resulta, de forma ativa e passiva, da sua interação com todos os outros – ou, como lhe chamava Vale de Almeida, de uma “cidadania cosmopolita”) é muito dificultado, com isso arrastando uma artificial e enquistada diferenciação, facilitadora da criação de bodes expiatórios.

No entanto, se a culpa da crise económica e do seu agravamento é das práticas neoliberais e das políticas prosseguidas pelos políticos instalados, e se a culpa do ascenso da extrema-direita xenófoba é tanto dos reais problemas das políticas comunitárias e nacionais quanto da mais primária manipulação dos sentimentos de insegurança e incerteza dos cidadãos precarizados e empobrecidos por essa crise, a esquerda europeia não está isenta de responsabilidades nesse ascenso.

Não o está, antes de mais e nos seus sectores mais centristas, pela integração que foi fazendo, nas últimas décadas, de princípios neoliberais e de práticas governativas que lhes correspondem. Com isso se tornou no passado imediato uma parte do problema, criando uma cumplicidade com as mais contraproducentes e destruidoras lógicas austeritárias de resposta à crise, limitando-se a críticas de grau quanto aos diagnósticos e soluções, e descredibilizando-se - por esse real vazio de diferença – enquanto alternativa efetiva.

Tão-pouco está isenta de responsabilidades, em quase todos os países, a esquerda da esquerda. Pela continuidade, mesmo em tempos de emergência social e política, do seu habitual fraturamento e pela subalternização do debate e busca de plataformas comuns à preocupação de tentar salvaguardar os interesses de implantação de cada grupo. Também, pela desistência de procurarem forçar ao diálogo a esquerda que está à sua direita, com isso influenciando, no mínimo, as suas posições e produzindo uma clarificação. Não o está, ainda, pela sua predominante incapacidade para, a partir de diagnósticos acerca da crise e das lógicas austeritárias que acertam na mouche, transmitirem esses diagnósticos e as alternativas que apontam de uma forma clara, compreensível e credível para qualquer cidadão.

Neste quadro, não será talvez razão para grande espanto que seja em zonas de predominância histórica da esquerda que a extrema-direita xenófoba comece, com mais frequência, o seu crescimento.

Qual a solução para evitar que a extrema-direita xenófoba se transforme de um espectro num monstro bem real?

Não posso dar outra resposta que não seja “combater e reverter todos os fatores que apontei para esse crescimento”. Talvez começando, apenas por uma questão de exequibilidade e urgência (mas sem desvalorizar os restantes), por aqueles que têm um carácter político e comunicacional, a nível nacional e europeu.

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