Da “airbnbização” de Alfama
por Samuel Alemão • 19 Junho, 2014 / http://ocorvo.pt/2014/06/19/da-airbnbizacao-de-alfama/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=da-airbnbizacao-de-alfama
Texto e fotografia: Rita Dantas
Hoje, quando descia
as escadas do prédio, cruzei-me com obras em dois apartamentos. Nada de
estranho, Alfama neste momento parece-se francamente com Berlim no início dos
anos 2000, obras e andaimes por todo o lado (também temos um restinho de muro
muralha e centenas de estrangeiros diferentes todos os dias).
À partida, isto são boas notícias, havia e há muitas casas
em más condições e prédios lindíssimos a cair literalmente aos bocados. Mas
assustam-me, por um lado, os riscos sociais da gentrificação (quantos dos
actuais moradores de Alfama poderão pagar as novas rendas destas casas
restauradas, quantos dos seus filhos conseguirão ficar no bairro? Alfama sem a
população residente ainda era Alfama?) e, por outro lado, um risco ainda maior:
o da airbnbzação.
O ano passado, por curiosidade, fui ver por quanto dinheiro
estava a ser alugada à noite uma casa em Alfama com vista de Tejo no Airbnb, o
mais popular de uma série de sites que alugam apartamentos nos centros das
cidades, permitindo aos turistas ficarem em apartamentos em zonas residenciais,
poupando dinheiro e conseguindo uma experiência mais próxima vida dos “locais”
– locais esses que arrendariam as suas casas por uns dias, conseguindo assim
também algum dinheiro extra.
Na altura, fiquei espantada com a quantidade de casas que
encontrei, parecia que metade de Alfama estava disponível para short-time
rentals. Mas depois fui percebendo o que estava a acontecer: não eram locais a
alugar as suas casas ou um ou dois quartos por algumas noites. Eram investidores
a comprar casas, umas atrás das outras, para as alugar a turistas.
Para terem uma dimensão aproximada do fenómeno: o meu prédio
tem oito apartamentos. Quatro, entre os quais os dois que estavam a ser
remodelados hoje de manhã, são arrendados a turistas. Quatro de oito. Quatro,
por acaso, é também o número de folhetos de agências imobiliárias a perguntar
se queria vender a “minha” casa, que já encontrei na caixa do correio. Também
há agências que preferem deixar um molhinho nas escadas. Parece mesmo um ataque
concertado.
Ora eu até gosto de estrangeiros, por princípio gosto de
gente e de gente diferente, e até gosto de que os estrangeiros gostem de
Lisboa, embora não possa ter escapado a ninguém que more no centro histórico
que o crescimento do número de turistas em Lisboa está a acontecer de forma
algo descontrolada (a Baixa, por exemplo, qualquer dia é constituída apenas por
hotéis) e que um crescimento deste tipo não tem só consequências positivas,
como o demonstram as experiências de outras cidades.
Mas preocupo-me. Preocupo-me porque, com excepção da
Mouraria, onde o projecto de renovação se preocupa igualmente com a fixação das
populações residentes, arriscamo-nos a reservar a Lisboa Histórica aos
turistas, para seu usufruto exclusivo, como se fosse um parque temático e não
uma cidade viva. O que é mau para a cidade, porque uma cidade equilibrada não é
fragmentada, não devia ter zonas de trabalho, zonas de moradores e zonas
turísticas separadas umas das outras (*), nem é estratificada, não devia expulsar
as populações mais pobres para guetos nas periferias – duas tendências que já
eram problemáticas em Lisboa e que estão a agravar-se com este desenvolvimento.
Mas, para além disso, é mau para o turismo – cada vez mais
os turistas se interessam pela vida local, pelos bairros, restaurantes e cafés.
Ainda existe o turismo “maratona de monumentos”, e ainda tem expressão em
Lisboa mais que não seja pela quantidade de navios de cruzeiro que chegam
regularmente, mas estas pessoas que procuram apartamentos locais claramente vêm
à procura de uma experiência diferente.
E essa experiência está ameaçada, pelo menos em Alfama:
metade das lojas, restaurantes e cafés foram pensadas exclusivamente para
turistas, bifinhos aux champignons (nas mais diversas grafias) por meia fortuna
acompanhados de um fado manhoso, recuerdos, tapas e petiscos gourmet,
recuerdos, galões pelo quádruplo do preço normal, recuerdos, sardinhas de Janeiro,
recuerdos, recuerdos, recuerdos. As velhinhas, cansadas de ver passar
excursões, estão a ficar com menos vontade de aparecer nos feeds de Instagram
dos outros. Metade do meu prédio já é habitado, de forma irregular, por
turistas, muitos outros estarão em situação semelhante.
E os senhorios, ou me engano muito, ou não vão sequer usar a
lei das rendas para trocar a população de Alfama por uma outra economicamente
mais capaz: porque é que alguém há-de alugar uma casa por quatrocentos,
quinhentos ou seiscentos euros por mês, com obrigatoriedade de passar recibos,
quando pode alugar a mesma casa por 100€ por noite, fugindo aos impostos, e até
pode subcontratar a coisa a uma agência que tem o trabalho todo por ele?
Resultado: um dia destes, os turistas chegam a Alfama, ou à
Baixa de Lisboa, e percebem que estão ali a olhar uns para os outros. E, às
tantas, depois, vão-se embora.
E com isto volto à comparação com Berlim, uma cidade com um
mercado de arrendamento vital que o viu repentinamente muito reduzido e significativamente
encarecido. O que fizeram? Regularam fortemente o Airbnb e amigos. Como aliás
também Paris e Nova Iorque. E nós? Nós também ainda vamos a tempo, se formos
rápidos.
(texto publicado originalmente no blog
http://infernocheio.blogspot.pt)
(*aliás, devia
estudar-se, já e antes que seja tarde de mais, os efeitos da retirada dos
ministérios do Terreiro do Paço. Claro que fez sentido abrir esplanadas no
andar de baixo, mas dizer que ter pessoas a trabalhar naqueles edifícios é “um
desperdício” é para mim muito típico de uma lógica muito pobrezinha, muito
saloia, muito “roupa de domingo”, em que o melhor da cidade tem de ser para os
outros, e para aqueles de entre os outros que os possam pagar. O comércio da
Baixa, a vida da Baixa, a restauração da Baixa, depende da existência de
pessoas que lá vivam e lá trabalham – e a esse respeito, pelo menos, a Baixa
está claramente moribunda. E a mim parece-me que a lei das rendas não explica
tudo)
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