segunda-feira, 9 de junho de 2014

“O Bloco tem de ser mais humilde"

Ana Drago reconhece que o Bloco de Esquerda "sobreavaliou a raiva social" contra a austeridade

ENTREVISTA
“O Bloco tem de ser mais humilde"
PAULO PENA 08/06/2014 - 08:15
Ana Drago, socióloga, 38 anos, dirigente e ex-deputada do Bloco de Esquerda, pede urgência, e diálogo, à esquerda. “Temos uma responsabilidade histórica de dar resposta aos problemas com que o país vive”. E isso passa por uma convergência, com outros partidos de esquerda, em torno de um programa “mínimo”.

Há uma semana, apresentou uma proposta de diálogo com outros partidos e sectores de esquerda, “nomeadamente o Livre e o 3D”, que foi chumbada por 10 votos, no órgão máximo do partido. Lamenta a “auto-suficiência” que faz com que o Bloco recuse “sentar-se à mesa” com quem está disponível para “assumir compromissos” e debater um programa, para governar.

Se o partido não mudar de estratégia, Ana Drago teme “que as pessoas deixarão de ver utilidade política no Bloco”. E ela própria? “Hoje milito no Bloco. Mas isto é um dia de cada vez…”

O que é que aconteceu à esquerda, em Portugal, nestas eleições?
Creio que acabou por se confirmar aquilo que já se percebia antes das eleições: o PS, mesmo num cenário de grande agressividade por parte da direita, não tem uma direcção disposta a fazer uma luta política e social suficientemente forte. Há demasiados compromissos que unem esta direcção do PS à linha europeia que está a ser seguida. Isso resultou naquilo a que Mário Soares chamou “uma vitória de Pirro”. O PCP acaba por capitalizar uma certa sensação de segurança, e também um voto de resistência. Alguém me dizia, com uma certa ironia, que o PCP funciona como um cofre. Vota-se, e o partido guarda o voto, faz uma defesa do Estado Social, da democracia. Mas não se espera uma alteração… Quem deixou de votar no Bloco e votou PCP fê-lo por estar zangado com o Bloco mas sem grandes expectativas em relação ao PCP. O Bloco viu agravar-se a dificuldade que sente desde 2011, que se prende também com expectativas, com o projecto político que apresentou.

Que expectativas é que o Bloco frustrou?
O Bloco sempre se apresentou – e foi assim que o escrevemos na altura – como uma tentativa de lutar contra duas desistências: a desistência do PCP de transformar a política, por viver no seu espaço de identidade e de resistência; e a do PS, que vive naquele seu social-liberalismo, abandonando parte da sua identidade de partido social-democrata tradicional. O Bloco pretendia desafiar essas duas desistências, fazendo propostas que permitissem criar maiorias sociais e que, de alguma forma, desbloqueassem a esquerda. A direcção do Bloco tem manifestado uma enorme dificuldade em fazer isso.

O que se passou para que isso seja assim?
Em 2011 creio que as pessoas não conseguiram compreender como é que nós, depois de termos tentado um envolvimento com sectores críticos do PS, corporizado na candidatura de Manuel Alegre, no momento seguinte sentimos necessidade de fazer um corte com o PS, apresentando uma moção de censura e não permitindo qualquer possibilidade de gerir o agravamento dos juros da dívida pública. Creio que seria muito difícil, porque naquela altura, Sócrates inicia a austeridade – em doses moderadas – que a Europa agora adoptou de forma violenta.

A crise apanhou todos de surpresa?
O tempo que estamos a viver é uma alteração de paradigma político. Alguma coisa se passou. Nós tivemos uma experiência de 20 anos na Europa, de modernização do país, alguns avanços em direitos sociais, mas também uma liberalização dos mercados, retirada do Estado, desregulação. Em todo o caso, foi um tempo de modernização, em Portugal. Aquilo que estamos a viver é diferente: é um processo de empobrecimento, de “desmodernização”.

O Bloco estava à espera de uma revolta social?
Sim, creio que sobrevalorizámos a raiva social. Foi isso que nos conduziu a não estarmos presentes na negociação com a troika. Não que eu acredite que teria sido possível convencer a troika da bondade de uma política de qualificação, ou de combate ao desemprego. Mas as pessoas sentiram que o Bloco tinha desistido de as representar.

Entretanto já houve uma auto-crítica sobre isso…
Sim, isso depois foi percebido.

E houve uma nova liderança: saiu Francisco Louçã e entraram Catarina Martins e João Semedo.
O problema do Bloco não é um problema de liderança, ou de comunicação. É um problema de estratégia. Há uma espécie de auto-suficiência. Temos o nosso espaço de representação e isso chega. Para o desafio político com que o Bloco nasceu, todos compreenderão que isso é insuficiente.

E foi por isso que sugeriu, há uma semana, na reunião da Mesa Nacional, que o Bloco devia repensar a sua política de alianças?
Recentemente, antes da campanha da europeias, surgiu a proposta de se criar uma plataforma que pudesse resultar numa candidatura ao Parlamento Europeu. É uma proposta que nos é trazida pelos protagonistas do manifesto 3D, dizendo que existe um programa, que resulta do Congresso Democrático das Alternativas (CDA), onde várias correntes de esquerda participaram, e é uma boa base de trabalho.

Isso não avançou porque o Bloco considerou que a proposta que lhe foi feita o menosprezava e o colocava em pé de igualdade com o 3D, que não era um partido.
Compreendo que havia dificuldades processuais. Penso que nessa matéria a direcção do Bloco tem razão. Mas era possível fazer uma coligação, e isso também foi discutido nas reuniões. Era possível que o manifesto 3D se constituísse como associação política, o Livre estava a legalizar-se como partido… Havia possibilidade para, pelo menos, as pessoas se sentarem à mesa e começarem por discutir o programa. Mas a direcção do Bloco considerou que o percurso de Rui Tavares impossibilitava um diálogo político. E eu creio que isso mina o diálogo e é pouco fiel à identidade do Bloco. Não acho que seja saudável acumular ressentimentos quando o país exige à esquerda que ultrapasse as suas limitações, e até a sua própria história, para estar disponível para dar uma resposta.

Esta pergunta é mais para a socióloga do que para a dirigente política. Isso é também uma clivagem geracional? A Ana, Rui Tavares, Daniel Oliveira, estão mais disponíveis para isso por não terem vivido as clivagens do PREC, que ainda têm memórias dolorosas entre vários dirigentes dos partidos de esquerda?
Talvez… A minha primeira experiência política é o Bloco. Eu entro no Bloco precisamente para isso, quando o Bloco era uma experiência de convergência de 3 correntes, com conflitos no passado, mas que agregou identidades em torno de um programa. Hoje, esse desafio é ainda mais urgente. É a nossa responsabilidade. Não quero dar demasiado peso às palavras, mas temos uma responsabilidade histórica de dar resposta aos problemas com que o país vive e de estarmos à altura do nosso percurso. Sente-se, se calhar, essa questão geracional. Mas o fundamental é perceber qual é o papel político do Bloco na sociedade portuguesa.

O Bloco perdeu dois deputados. A análise do partido sobre os resultados foi demasiado indulgente?
É uma análise, quanto a mim, demasiado superficial. Dizer que surgiram outras forças, que os jovens emigraram, tudo isso é verdade. Mas então por que razão não foi o Bloco capaz de captar o voto e a confiança dos portugueses, num momento destes?

Tem resposta para essa pergunta?
A resposta é a falta de credibilidade do projecto político. Isso não tem a ver, apenas, com a qualidade das propostas, mas com a capacidade de captar força social, de fazer alianças. Não basta ter propostas sólidas, é preciso capacidade de as realizar. O Bloco também tem fraquejado noutra área: tem de ter uma relação mais humilde com a sociedade e com os movimentos sociais. Nós tivemos um desempenho parlamentar elogiado, mas que talvez tenha secado o partido. Precisamos de voltar ao projecto de refundação da esquerda, lançando desafios às outras forças e dialogando com os movimentos sociais.

Na Mesa Nacional propôs um debate com outras forças à esquerda. Perdeu numa votação renhida, não foi?
Sim, foi uma votação interessante. O Bloco sempre teve, pelo menos até 2011, uma vontade de encontrar interlocutores. Sempre achámos que o discurso “dê mais força ao Bloco” seria insuficiente do ponto de vista político. É o discurso: “Se nos der mais força, as nossas propostas valem mais, mas não passam à mesma”. Quando o manifesto 3D nos fez aquele desafio, creio que isso seria retomar o projecto político do Bloco. O diálogo à esquerda deve ser o mais alargado possível. Mas desde já existem interlocutores disponíveis. Perguntam-me se essa é a solução para os problemas. Não, não é. Mas é um início. E foi por isso que fiz a proposta.

João Semedo considerou, numa entrevista à Antena 1, que a sua proposta era a de um entendimento com uma parte reduzida da esquerda. Ouviu essa crítica?
Ouvi, com alguma dificuldade. Porque na verdade não houve nenhuma contraproposta. E não foi essa a crítica que me fizeram na Mesa Nacional. O que a proposta dizia, textualmente, é que é necessário que o Bloco inicie um processo de diálogo com outras forças de esquerda (pausa)… Nomeadamente, o manifesto 3D e o partido Livre que teve um resultado significativo nestas europeias. Porque estes estão disponíveis. Se outros estiverem, não vejo qualquer problema.

Aparentemente, o Bloco parece agora preferir um diálogo com o PCP. Faz sentido?
Não pode haver exclusões. O que foi complicado, e muitíssimo problemático, no diálogo anterior às europeias, foi haver uma exclusão determinada do Livre. Não é assim que se fazem processos de convergência e de alargamento da esquerda. Em relação ao PCP vejo essa proposta com muita simpatia. Mas devo dizer que já tenho 15 anos de Bloco de Esquerda, e sempre houve uma grande dificuldade. Estive em várias reuniões entre as direcções do Bloco e do PCP. Conheço esse debate e são consultas formais, sem desenvolvimentos… Ter um diálogo com o PCP não impossibilita termos um diálogo com outros partidos disponíveis.

O Bloco parece não considerar o PS como parte da esquerda. Qual é a sua opinião?
Tenho alguma dificuldade em perceber o que  vai ser o PS no futuro. Há várias sensibilidades. Mesmo sobre o euro e as instituições europeias há nuances. António José Seguro foi dos primeiros a apoiar o Tratado Orçamental, que é uma declaração de morte ao Estado Social. O que acho que cabe à esquerda não é desistir do PS, entregá-lo à direita. É, pelo contrário, disputar as áreas de esquerda do PS para apresentar uma alternativa. Nestes três anos, o comportamento do PS foi titubeante e fraco. Não se mobilizou nas ruas, nem nos sindicatos.

Considera, como Semedo, que não há diferenças significativas entre Costa e Seguro?
Neste momento, ter declarações muito taxativas não é prudente. António Costa fez algumas críticas ao Tratado Orçamental. Isso é um bom sinal. Também já o ouvi tomar posições com as quais discordo. E lança-se numa disputa pela liderança sem tornar claro qual é o seu programa. O problema de desempenho do PS é, antes de tudo, programático. Esta ideia de que pode haver uma “austeridade inteligente”, lançada por António José Seguro deixa as pessoas sem alternativa.

Está à espera da Convenção Nacional de Novembro?
O debate tem de se ir fazendo. Não creio que se deva usar o tempo até à convenção para arranjar mais justificações do género das que foram usadas para explicar a derrota nas europeias. Retira-nos credibilidade. O eleitorado do Bloco é exigente. Seis meses é muito tempo… Por isso propus a antecipação da Convenção.

E se nada acontecer? Que utilidade terá o Bloco?
Se não há uma reconfiguração da estratégia, se ela não é possível, tenho a sensação que as pessoas deixarão de ver utilidade política no Bloco… Isto não é um sítio para estarmos e dizermos que temos razão. E ficarmos contentes por termos o nosso partido e mostrarmos que temos razão. O partido surge de uma vontade de transformar a vida das pessoas. Transformar agora! Não é pensar que há ciclos históricos longos. É agora, numa situação de particular urgência, que é preciso estruturar uma resposta política, em torno de mínimos que permitam salvar o país.

Transformar a vida das pessoas passa por governar?
Penso que sim. Não se trata de discutir ministros, secretários de Estado ou chefes de gabinete. Trata-se de assumir compromissos necessários para mudar as condições de vida. Se a estratégia é uma estratégia de confrontação com o FMI, a Comissão Europeia, é preciso ideias claras e força política.

Continua a valer a pena, para si, militar no Bloco? Deu algum ultimato ao partido para essa mudança?
Não quero ser muito tremendista. Hoje milito no Bloco. Mas isto é um dia de cada vez… Nós estamos onde julgamos que a nossa cidadania é útil. Existe um programa escrito, onde o Bloco se revê, e para o qual temos interlocutores. Agora. Não é daqui por cinco anos…

O programa que refere, do CDA, é muito crítico em relação à permanência de Portugal no euro…

O euro é das questões mais complexas de discutir. Compreendo todos os argumentos pela saída do euro mas tenho dificuldade em vê-la como uma proposta de estratégia para o país. O processo de globalização cria dificuldades de ter uma estratégia de desenvolvimento desenquadrada do quadro europeu. É preciso reestruturar a dívida e confrontar as instituições europeias nesse processo. Sair do euro não é uma estratégia, pode é ser uma decisão que se tenha de tomar. Enfrentar a política de Merkel e reestruturar a dívida é que têm uma aceitação ampla na sociedade portuguesa, à esquerda.

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