ANA HENRIQUES ,
MARIA LOPES e JOSÉ AUGUSTO MOREIRA
Marinho e Pinto, presença assídua
em programas de televisão, capitalizou votos nas regiões onde estão as maiores
audiências. O homem que causou a maior surpresa das últimas eleições desanca
nos políticos e agora é político, diz ser de esquerda mas condena a co-adopção,
foi advogado e jornalista ao mesmo tempo vários anos, defende o nacionalista
Mário Machado e o ex-autarca Isaltino Morais e considera as leis contra a
violência doméstica impregnadas de um “feminismo impertinente”
Como é que uma voz tão
crítica dos políticos resolve ir parar à política? Talvez porque o palco
privilegiado que tinha no mundo da Justiça já foi desmontado. Ou porque gosta
de passar a ideia de que pode fazer diferente e integrar o pequeno grupo dos
políticos que eram uma excepção à regra que apregoava sobre “ladrões” — e
continua a apregoar — nos programas da manhã televisiva.
A eleição como
eurodeputado do advogado e ex-jornalista António Marinho e Pinto — e, por
arrastamento, do número dois da lista do MPT — Movimento Partido da Terra, José
Inácio Faria — prova que uma televisão líder de audiências consegue vender
presidentes com a mesma facilidade com que vende sabonetes, como dizia há uns
15 anos o então director da SIC, Emídio Rangel. A mensagem não importa, o que
conta é que ela passa efectivamente para os espectadores. E Marinho e Pinto
passou.
Rangel não elegeu
um presidente, mas já os apresentadores da TVI Cristina Ferreira e Manuel Luís
Goucha têm boa quota de responsabilidade pela ida do ex-bastonário para
Bruxelas e Estrasburgo — as cidades belga e francesa entre as quais se divide o
Parlamento Europeu — e por este ter arrastado consigo o desconhecido José
Inácio Faria.
Cruzando as
audiências regionais do programa da manhã Você na TV! com os resultados do MPT,
nota-se a influência do factor TV. A norte, onde a dupla Goucha-Ferreira tem o
dobro da audiência em relação à região Centro ou Lisboa, foi onde Marinho
conseguiu, em média, os melhores resultados, ficando em terceiro lugar no top
dos partidos mais votados na maioria dos distritos — no total nacional, ficou
em quarto lugar. Na freguesia de Vila Chã do Marão, em Amarante, no distrito do
Porto, onde Marinho nasceu, o MPT não recebeu em 2009 um único voto; a 25 de
Maio, teve 98, só ultrapassado pelos 122 do PS.
Nos últimos anos,
quando ainda era bastonário e já depois de deixar o cargo e até em período de
campanha eleitoral, Marinho Pinto sentou-se quase semanalmente nas cadeiras do
Você na TV! (é também comentador residente do programa Justiça Cega, na RTP
Informação), num cenário enquadrado por reformadas e donas de casa que somam à
pensão mensal as senhas de presença nos plateaux televisivos. Que o aplaudiam e
meneavam a cabeça em sinal de acordo quando o advogado levantava a voz contra
políticos ladrões, os ladrões ladrões, e os restantes ladrões mascarados da
sociedade portuguesa. E há muitos por aí, na voz de Marinho e Pinto.
Frontal e sem
medo de levantar o dedo nas discussões, é-lhe conhecida também alguma vaidade,
que lhe serve de combustível e o motiva a distribuir duras e desassombradas
críticas. Fê-lo nos discursos oficiais de bastonário (que mandou compilar na
revista da Ordem para colocar à venda e fez questão de publicitar no programa
da TVI), nas intervenções em conferências, nos programas de televisão ou quando
havia um microfone de rádio ou TV ligado por perto. A actual ministra da
Justiça, Paula Teixeira da Cruz, é um dos seus alvos preferidos.
Aprumou o
discurso — populista, dirão alguns — ao tipo de audiência que tem na TVI mas
que multiplica em diversas intervenções. Destila veneno contra governantes e
deputados, juízes, jornalistas, polícias: “Este fenómeno da corrupção não é
desligado da sociedade portuguesa. Temos os políticos que temos, os magistrados
que temos, os jornalistas que temos, os advogados que temos porque somos o povo
que somos”, disse à SIC em 2009. Fala contra a corrupção que assola o Estado e
a morosidade da Justiça parecendo esquecer que os advogados apresentam os mais
diversos expedientes para complicar administrativamente muitos processos. Critica
os deputados à Assembleia da República que exercem em simultâneo a advocacia em
escritórios que trabalham com sectores sobre os quais depois legislam — os
“bufarinheiros”. Numa entrevista recente ao Jornal de Notícias, afirmou: “Nos
últimos 40 anos, temos visto todo o tipo de negociata na política: pessoas que
entram como bancários e saem como banqueiros, entram como operários e saem como
empresários, entram com uma mão à frente e outra atrás e saem com fortunas
fabulosas.”
O discurso
truculento granjeia-lhe rangeres de dentes mais discretos ou mais directos. A
quem já o apelidou de palhaço responde: “Nunca me considerei palhaço;
intervenho na vida pública com seriedade e sacrifício pessoal.” Foi esse
sacrifício, justificou, que o fez exigir um salário de bastonário equivalente
ao do procurador-geral da República.
MPT, Marinho e
PinTo
Na curta carreira
político-partidária activa (o mandato de bastonário foi um tempo de política
sem partido), orgulha-se de ter sido ele a escolher o partido e não o
contrário. E faz disso ponto de honra, vincando num auto-elogio ser o “único
candidato” a quem isso aconteceu. As consequências para o partido, se um dia
Marinho entender “divorciar-se” e escolher novo amor, só mais tarde se
conseguirão aferir. O advogado diz que foi pelo programa do MPT, que defende
valores humanitários e ambientalistas. Na campanha eleitoral, a sigla do
partido foi-lhe bem útil: ora apelava ao voto no partido do trevo de quatro
folhas, ora explicava, em tom pedagógico, que a cruzinha era na linha que dizia
MPT, as iniciais do seu nome, Marinho e PinTo, ou Marinho e Pinto Terra.
Simples coincidência ou talvez um fato escolhido à medida.
Contou que foi
repetidamente convidado a candidatar-se às autárquicas, quer pelo partido rosa
quer por outras esquerdas. E que recusou sempre. Se foram os lugares que não
lhe enchiam as medidas ou se foi ele quem se insinuou, ignora-se. Certo é que
nenhuma força política lhe pegou na palavra quando se mostrou disponível para
ocupar o lugar de provedor de Justiça.
Agora que as
portas da política se escancaram de par em par, Marinho e Pinto teve a prova de
quanto vale e é possível que já olhe para si como uma marca. Falta fazer a conta:
os 234.602 votos arrecadados pelo MPT nestas eleições permitem ao partido
encaixar mais de 675 mil euros, a que se somarão as subvenções directas do
Parlamento Europeu. O advogado usou várias vezes a TVI para barafustar não
contra o financiamento dos partidos mas contra o facto de o esconderem, ao
mesmo tempo que ia desfiando, frente às câmaras, números em milhões que vão do
bolso dos portugueses para os cofres partidários.
Antes de vestir o
fato de candidato, apelou, em várias ocasiões, à abstenção. Em Junho de 2011,
antes das legislativas que elegeram o actual Governo, defendeu num noticiário
da SIC que fazer “greve à democracia por um dia” seria um “solavanco
democrático” das instituições políticas e uma “punição democrática para a
mediocridade, para o oportunismo e para a incompetência dos políticos
portugueses. De todos”.
O seu percurso
político fez-se na esquerda. Foi membro do Movimento Democrático Estudantil,
foi detido pela PIDE, militou na Juventude Comunista, isto entre os tempos das
lutas académicas e da euforia da revolução de Abril de 1974. Hoje, estará mais
no centro-esquerda, tendo em conta, por exemplo, as suas posições sobre a
co-adopção por casais homossexuais — o que torna irónico o facto de a entrada
de leão de Marinho na política se ter dado à conta do sacrifício de algum
eleitorado socialista, partido a quem roubou também o nono deputado. Assumiu
que nunca votara no MPT, mas já votou PS, PCP na maioria das vezes, Bloco e PSD
em algumas autárquicas — varia consoante acha que é mais “útil” à esquerda.
Tem uma ideia de
Europa solidária, baseada nos cidadãos, na liberdade e na paz. Quer
instituições europeias mais políticas e menos burocráticas, e políticas que
fortaleçam o euro e reforcem a estrutura bancária. O Tratado Orçamental deveria
ter sido referendado, mas não vale a pena chorar sobre leite derramado, agora o
que há a fazer é cumpri-lo e tentar melhorá-lo. Prometeu que vai lutar por
medidas de combate ao dumping social e fiscal para impedir que empresas que
operam num país vão pagar impostos a outro com taxação mais favorável. Ao
contrário do que defendeu o antigo primeiro-ministro socialista José Sócrates —
que admira —, Marinho e Pinto considera que a dívida é para pagar até ao fim
sem perdões —, não pagar é para os indigentes.
O novo político
que acusa os políticos profissionais de gostarem de jogar em vários tabuleiros
em simultâneo, e de se esforçarem por deixar várias portas entreabertas, já
aprendeu que ganha trunfos deixando indefinições no ar. Quando o questionaram
sobre o que fará com o capital eleitoral que conseguiu, os cenários de
legislativas em 2015 e presidenciais em 2016 fizeram-lhe brilhar os olhos e
dizer logo que conseguia cumprir em Belém melhor que o actual inquilino.
Ainda há um ano e
meio, quando o telefone do líder do Movimento Partido da Terra tocou e do outro
lado estava uma secretária da Ordem dos Advogados a convidá-lo para um almoço
de trabalho com o bastonário, John Baker não sabia ao que ia. Marinho e Pinto
tinha escolhido um dos seus restaurantes de eleição — seus e de meia classe
política portuguesa — para se lhe oferecer como cabeça de lista para as
europeias. John Baker conta como ficou surpreendido com a inesperada oferta.
Afinal, nunca nas suas inúmeras diatribes contra os poderes instituídos Marinho
e Pinto tinha revelado a sua alma ecologista. Ou sequer monárquica, outra das
tendências que acolhe o MPT no seu seio.
“Vinham lá as
autárquicas, nós ainda nem estávamos a pensar nas europeias”, recorda o
dirigente partidário. “Disse que tinha estudado o nosso programa e que tinha
grande admiração por Ribeiro Telles”, fundador do MPT. A “união de facto”, como
lhe chama o ex-bastonário, revelou-se profícua para ambas as partes. É verdade
que Marinho e Pinto sempre se assumiu como um homem de esquerda, mas por ironia
a única vez que o MPT entrou no Parlamento foi pela mão do PSD, com deputados
independentes eleitos pelas listas laranja.
Entorses
ideológicas à parte, John Baker prefere recorrer ao jargão empresarial para
descrever aquilo que alguns já designam por “barriga de aluguer”: “É uma
parceria que nos está a beneficiar mutuamente. Ele aumentou a visibilidade do
MPT, é indiscutível: passámos à primeira divisão dos partidos portugueses.”
Os ecologistas
pretendem que a parceria seja duradoura, ao mesmo tempo que tentam refrear
ambições a mais altos voos. “Dentro do partido, ainda não houve qualquer
discussão sobre as próximas legislativas ou presidenciais”, vai avisando Baker,
depois de o advogado ter admitido a possibilidade de entrar nas disputas
nacionais de 2015 e 2016, renunciando assim a Bruxelas.
O furacão Marinho
arrastou consigo o desconhecido José Inácio Faria, militante do MPT que, como
jurista na Câmara de Lisboa, já trabalhou com dirigentes de vários partidos, de
Santana Lopes a João Soares, passando pelo comunista Rui Godinho. Tornou-se o
segundo deputado europeu do Partido da Terra, que ficou na singular posição de
não ter um único representante no Palácio de São Bento.
A chegada ao
Parlamento Europeu, há quatro dias, trouxe, para já, o primeiro banho de
realidade. Marinho Pinto queria integrar o MPT no grupo dos Verdes, mas estes
negaram-lhe a casa por se opor à co-adopção. E os novos eurodeputados tiveram
de se desdobrar em contactos com outros grupos parlamentares.
Longe da “aristocracia lisboeta”
Casado pela
segunda vez com uma professora de Filosofia, dedicou a sua vitória nas
europeias às filhas, uma das quais emigrou para Macau, repetindo assim a
história de vida dos seus avós.
Marinho tem seis
meses de vida na aldeia que o viu nascer, Vila Chã do Marão, no concelho de
Amarante, quando a mãe, uma mulher habituada a trabalhar no campo, ruma a
Niterói, no Brasil, com o marido, alfaiate. O clima tropical fez medrar a conta
bancária do pai de Marinho, mas não poupou a saúde à mãe, conta uma prima do
advogado, Júlia Marinho Pinto, que se recorda de os ver regressar a Vila Chã,
ainda não tinha começado a despontar a barba ao rapaz. Ganhara uma irmã por
terras de Vera Cruz, mas perdera um pai — que preferiu nunca voltar, obrigando
a camponesa a criar sozinha os dois filhos. Com a ajuda de familiares, a mãe
instala-se em Vila Real quando chega a altura de irem para o liceu, e
matricula-os no Colégio de S. Gonçalo. Foi nessa altura que começou a
acamaradar com estudantes de esquerda, costuma contar o advogado, que em jovem
era um apaixonado pela astronomia com o sonho de ser piloto aviador.
Os amigos que
ficaram dos tempos de estudante de Coimbra acreditam que não foi só a rudeza da
aldeia dos contrafortes do Marão que lhe talhou o estilo de resistência ao
“politicamente correcto”, mas também o tempo das lutas académicas, da euforia
do 25 de Abril e da convivência com a intelectualidade coimbrã. Construiu desde
então um afrontamento dirigido a “uma certa aristocracia lisboeta”, como, com
indisfarçável gozo, gosta de se referir àqueles que elege como alvo.
Foi a dita
“aristocracia lisboeta” que o derrotou na primeira tentativa de chegar à
liderança da Ordem, em 2004, mas já não nos dois escrutínios seguintes — a
vitória seria total em 2007 e, depois, com números ainda maiores e inéditos, em
2010.
Coimbra é mais do
que a cidade onde estudou, é onde teceu referências e foi ele próprio uma
figura da boémia estudantil, recordava há uns anos o Diário de Notícias.
Coimbra é a base à qual regressa quando sai da Madeira, de novo quando acaba o
breve período em Macau, onde em 1987 foi assessor do Governo, e onde, já
adulto, retoma os estudos e reencontra académicos, advogados, gente da cultura,
mas também companheiros das lutas estudantis entretanto convertidos em figuras
da política e do poder.
Ficou conhecida a
tertúlia regular que mantinha nas noites do café Trianon com personalidades da
academia e de todos os quadrantes políticos. Gente de esquerda como Orlando
Carvalho ou Vital Moreira, Rodrigo Santiago, o socialista Fausto Correia ou o
centrista Manuel Queiró, entre outros.
Marinho e Pinto
dividiu a sua vida profissional em mais frentes além da advocacia. Começou por
ser jornalista, tendo sido delegado da agência ANOP na Madeira (1978-80). Pouco
tempo depois, acusou Alberto João Jardim de se portar como “feitor de
quintaleco e capataz de fabriqueta”. Houve pressões do Governo Regional para
ser substituído, mas há pouco tempo, num programa que dividiu com Jardim, disse
ter sido muito bem tratado na ilha. Depois da breve passagem por Macau, foi
correspondente do Expresso em Coimbra — mas fazia questão de ir à redacção do
jornal em Lisboa para participar nos plenários, como o da tradicional eleição
da figura do ano, onde dava asas aos seus dotes de orador e de tribuna.
Acumulava a escrita de notícias com a redacção de processos — apesar de ser
crítico da acumulação de profissões —, mas garante que cumpria a deontologia
das duas actividades.
É o jornal onde
denuncia o perdão fiscal à Cerâmica Campos assinado por Oliveira Costa, então
secretário de Estado dos Assuntos Fiscais no Governo de Cavaco Silva: o caso
chega a inquérito parlamentar. É também dessa altura o processo judicial que
moveu e ganhou a Oliveira Costa, que dissera numa entrevista à Antena 1 que
António Marinho (o seu nome profissional) tinha “pena fácil e muito pouco
honesta”, que fora “corrido de Macau” e “não honrava a profissão”. Terá sido a
primeira vez que um membro do Governo foi condenado por difamação.
Marinho e Pinto
foi vários anos em simultâneo professor do ensino secundário e depois do ensino
superior. Apesar de ter entregue a carteira profissional, diz sentir-se ainda
jornalista — “quem foi nunca deixa de o ser”, afirmou há dois anos.
A vitória do
"candidato dos descamisados"
O Marinho e Pinto
de hoje já é, no discurso e na imagem, mais polido do que aquele que aparecia
há uns anos na televisão em mangas de camisa, suspensórios a segurar as calças
e brilhantina no cabelo, faz notar um amigo seu: “Nessa altura, parecia um
merceeiro e usava uma linguagem excessivamente informal para um advogado. Era
considerado um palhaço.”
Só que no final
de 2007 é ele que os seus pares escolhem para ficar à frente da Ordem. Encabeça
uma lista de desconhecidos, sem os nomes sonantes das grandes sociedades de
advogados, e chega a fazer campanha sozinho à porta de tribunais. Lança um
retrato da justiça portuguesa, intitulado Dura Lex, cuja apresentação fica a
cargo do fiscalista Saldanha Sanches, que lhe gaba a coragem por denunciar o
mau funcionamento das instituições.
Um dos seus
rivais na corrida para a Ordem chama-lhe o “candidato dos descamisados”: é essa
classe cada vez maior de advogados pobres dependentes das defesas oficiosas que
lhe dá, em grande parte, a vitória e que há-de mantê-lo como bastonário durante
seis anos.
O discurso
antipoderosos e anticorrupção granjeou-lhe muitos ódios e ainda mais simpatias.
Os juízes tornam-se um dos seus principais alvos. Quando o presidente do
Supremo Tribunal de Justiça cessa funções, presenteia-o com um comentário
demolidor: “Noronha Nascimento é daquelas pessoas que não olham a meios para
atingir os fins. Ideologicamente, é um estalinista puro, ou seja, é capaz de
fazer alianças com o próprio diabo. Enquanto todos os outros tribunais
mostravam aquilo que se procura no site de um tribunal, o do Supremo exibia a
figura mefistofélica do seu presidente. O seu filho conseguiu arranjar um
emprego num organismo do Estado que dependia directamente de José Sócrates.”
As polémicas
seguem-se a um ritmo quase tão intenso como o dos processos disciplinares que
lhe vão sendo levantados pela própria Ordem, onde exige, antes de ser eleito,
que o bastonário tenha pela primeira vez direito a salário — e equiparado ao de
procurador-geral da República. É a democratização plena do acesso ao cargo, até
ali só ao alcance de quem pudesse prescindir de salário durante os três anos de
mandato ou de quem conseguisse continuar a atender clientes nos intervalos das
suas funções. Expatriado em Lisboa, Marinho passa a morar num hotel também pago
pelos advogados, mas há velhos hábitos de que não abre mão, como o pão com
azeite e alho ao pequeno-almoço a fazer as vezes da manteiga. O cabrito assado
no forno do Solar dos Presuntos traz-lhe memórias das terras do interior do
país, contra cujo abandono tanto batalha.
As redes sociais
explodiram de gozo e incredulidade pela forma como, no Verão passado, condenou
a co-adopção. Na sua coluna de opinião do Jornal de Notícias, dizia que o
momento mais belo da vida do ser humano se dá quando “é retirado da vagina
ensanguentada” da sua mãe, “ainda todo sujo, roxo e disforme”.
“Nunca esquecerei
o momento em que nasci e o primeiro beijo que a minha mãe me deu — quase
moribunda por me ter parido”, acrescentava, perante a incredulidade dos
leitores. Na rubrica televisiva Justiça Cega, chegou a declarar que “uma das
coisas que o Brasil mais tem exportado para Portugal são prostitutas”, e ainda
em Março não hesitou em afirmar que o processo de Isaltino Morais não foi
isento, considerando chocante que lhe tenha sido recusada a liberdade
condicional. As leis da violência doméstica, considera-as impregnadas de um
certo “feminismo impertinente”.
Seis meses depois
de se tornar bastonário, visita na cadeia Mário Machado, criticando o facto de
o líder nacionalista estar preso preventivamente, na sua opinião, devido à sua
ideologia. Mário Machado estava então a cumprir dez anos de cadeia por crimes
de discriminação racial, posse de arma ilegal e agressões, entre outros crimes;
e antes já tinha ficado provado em tribunal o seu envolvimento no homicídio de
Alcino Monteiro, um cidadão de origem cabo-verdiana espancado até à morte no
Bairro Alto.
Ainda antes,
Marinho e Pinto declara que o processo Casa Pia “visou decapitar e
esfrangalhar” a direcção do Partido Socialista. Não há-de ser a última vez que
toma as dores do PS: em 2009, diz que o processo Freeport não é mais do que
“uma conspiração cozinhada numas reuniões entre políticos, jornalistas e
inspectores da Judiciária”.
Vê ser-lhe
instaurado pela Ordem o décimo processo disciplinar por acusar a ministra da
Justiça de se portar “como uma peixeira”. O que não o impede de, menos de um
ano depois, apelidar a governante de “barata tonta”, vingativa e traiçoeira.
“Toda a gente sabe em Lisboa que subiu muito profissionalmente quando o marido
[Paulo Teixeira Pinto, de quem já se divorciou] estava à frente do Banco
Comercial Português”, atira.
Na Ordem, os seus
opositores chumbam-lhe as contas várias vezes e pedem a sua cabeça. “Terão de
me aguentar”, riposta Marinho e Pinto, que só abandona o cargo de bastonário no
fim do segundo e último mandato possível, antes do Natal passado, e que lhe
tira parte do palco mediático de que tinha desfrutado até então. Deixa uma
última prova de poder, fazendo eleger a sucessora que ele próprio designou,
Elina Fraga.
A sua truculência
“é um estilo cultivado de que tirou partido”, observa o mesmo amigo, que
compara a empatia que o antigo bastonário suscita em muita gente com a de Mário
Soares, “mas em pior”. E que não tem dúvidas de que o advogado, que considera
um grande comunicador, usou a Ordem “como púlpito para ganhar visibilidade e
prestígio”. “Com o seu discurso, ganhou grande apoio da burguesia suburbana”,
prossegue, acrescentando que o advogado age por instinto, tal como o antigo
Presidente da República. Gosta, como ele, de dormir e de comer — “vorazmente” —
e é também sensível aos encantos femininos.
As inúmeras
discordâncias públicas que manteve com Marinho e Pinto não toldam o
discernimento ao seu antecessor na Ordem. “Foi o único vencedor das eleições
europeias em Portugal”, observa Rogério Alves, para quem o resultado eleitoral
que obteve o coloca “numa posição privilegiada para ser disputado por partidos
maiores” e para entrar na vida política nacional. “É alguém profundamente
talhado para o sucesso político, mestre em dizer aquilo que as pessoas gostam
de ouvir.” E quando envereda pelo exagero ou pelo politicamente incorrecto,
consegue capitalizar a desvantagem a seu favor: “Acentua a sua faceta de pessoa
frontal, destemida.”
O advogado
Rodrigo Santiago, que conhece Marinho e Pinto desde os tempos de estudante de
Direito, tem uma explicação para uma carreira política que “não se previa”:
“Como já lá tinha o vírus e a energia, a evolução acabou por ser natural.”
Aos olhos de um
dos amigos de Coimbra (velho militante no CDS-PP que pede o anonimato), Marinho
e Pinto é simples de descrever: “Um combatente que não vira a cara à luta,
custe o que custar, homem convicto, de repentes e sem medo, e que acabou sem
querer por se transformar numa figura nacional.” Sem querer, querendo.
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