OPINIÃO
Learning from Barcelona
RICARDO CARVALHO
27/06/2014 - PÚBLICO
Entre resiliência e colonização (Lisboa esteve no lado da resiliência,
Barcelona está colonizada) deverá existir um estado intermédio para a cidade
europeia
"Os turistas que visitam os
centros das velhas cidades europeias não os encontram na sua vitalidade
funcional, mas como redutos museológicos. O centro da cidade torna-se um
objecto de nostalgia." – Daniel Innerarity
Circulou
recentemente pela redes sociais um documentário chamado Bye Bye Barcelona (Eduardo
Chibás, 2013), onde se demonstrava os resultados de mais de vinte anos de
políticas de valorização urbana que, paradoxalmente, acabaram por transformar a
cidade catalã num dos destinos mais desejados e vulneráveis do turismo
massificado. A transformação há muito que se sentia para além do fluxo
permanente na Rambla. Desde as janelas com cartazes a dizer “I Hate Barcelona”
até à contribuição de arquitectos, sociólogos, geógrafos, procurando
alternativas a esta artificialização da vida quotidiana e ao abandono dos
lugares. A comparação com Lisboa emergiu de imediato. Mas as diferenças ainda
estão para além dos números e 2014 é um ano charneira. Um ano para pensar e
aprender com Barcelona.
Ao contrário de
Lisboa, em Barcelona o centro da cidade nunca deixou de estar habitado. A
cidade histórica sempre incluiu um considerável espectro social de habitantes,
apesar dos sucessivos processos de gentrificação. A vida de rua, de bairro, os
mercados, o pequeno comércio e o arrendamento a uma população mais jovem
conviveu com grandes obras de valorização do espaço público e de equipamentos
culturais como o museu MCABA e o Centro de Cultura Contemporânea CCCB. Um dos
hospitais principais da cidade está precisamente junto à linha de costa que
gerou as novas praias. Foi aliás dessa complexidade entre princípio de
realidade, afirmação da obra pública e desejo de posicionamento internacional
que a cidade se alimentou e reinventou durante as últimas décadas.
O sucesso dos
projectos e dos números produziu agora em Barcelona uma evidência, uma
consciência, do perigo de destruição da vida real. Os preços dispararam, os
moradores afastam-se, os comerciantes procuram todos o mesmo filão de negócio,
o turismo mais exigente recua – fica apenas a homogeneização da massificação. A
experiência do outro eclipsa-se. Hoje existem associações de moradores e grupos
organizados que contribuem para pensar e contrariar o problema.
Os números
relativos ao turismo em Lisboa no primeiro semestre de 2014 ainda não são
conhecidos. Em 2013 foram cerca de 10 milhões de dormidas segundo o dados do
INE. Isto significa várias vezes a sua população residente. Mas é evidente que
em 2014 este valores vão atingir o pico positivo. Entre navios de cruzeiro,
rotas low-cost, arrendamento de apartamentos, hosteis, hotéis, a cidade
encheu-se de pessoas como talvez nunca tenha acontecido antes. E tudo isto
acontece porque Lisboa é uma cidade singular pela sua densidade dos tempos
históricos e arquitectura, pelo perfil afável dos seus habitantes, pelo seu
clima, e, não menos importante, porque existiu um esforço político municipal
nos últimos anos para a valorizar no seu domínio público evidenciando aquilo
que a cidade tem de melhor permitindo uma economia emergente neste campo
específico. Onde está então a vulnerabilidade de Lisboa face ao turismo
massificado?
A sua
vulnerabilidade está no facto deste processo encontrar um centro histórico em
espera (de dimensão considerável e grande heterogonieidade patrimonial mantido
pela inflexibilidade dos regulamentos que entretanto se flexibilizaram),
perfeito para uma mono-tematização da sua estrutura urbana. É claro que este
processo tem décadas e nunca foi possível reinventar o centro da cidade sem ser
pela vertigem de uma ocupação única com retorno financeiro quase imediato. Onde
antes existia pouca heterogeneidade é fácil fixar a absoluta homogeneidade.
Outro ponto de
vulnerabilidade é também o facto de Portugal estar numa situação de profunda
crise social e económica onde o valor do trabalho foi desvalorizado, onde a
opinião pública não se faz ouvir e coincide com o abandono dos deveres da
cidadania. Onde qualquer forma de negócio, ou oportunidade de trabalho,
justifica os fins sem qualquer reflexão acerca dos meios. Muitos que criticam a
massificação arrendaram as suas casas no centro, em versão short-rental, e
mudaram de bairro. Mas isso também acontece porque para muitos é a forma de
sobrevivência directa ou indirecta.
Agostinho da
Silva defendeu que “A liberdade política é perfeitamente ilusória enquanto não
se tem liberdade económica, pela coacção exercida por quem dispõe dos meios de
produção, de transporte e de crédito”. Nesse sentido a crise pode conduzir a
política a uma mera técnica de gestão de forças de mercado abandonando a sua
capacidade de lançar reptos com a devida contribuição das várias áreas de quem
pensa a cidade. Muitos pensarão que é ingénuo questionar a única actividade que
demonstra vitalidade numa economia sem capacidade para gerar riqueza. Mas este
é o momento de o fazer precisamente porque existe uma vitalidade conferida
pelos números – e é inevitável que o turismo seja uma das formas de criação de
riqueza em Portugal. Das palavras ocas que ressoam nos discursos institucionais
podemos dizer que aasim fica um tipo de empreendorismo estereotipado e cai a
inovação.
Ao contrário da
afirmação corrente sobre a criatividade passível de emergir da escassez, neste
caso podemos afirmar que a reflexão e a contribuição conceptual para um
problema da vida urbana pode partir da abundância. O desafio passa pela
contribuição dos arquitectos numa forma de pensar os espaços do turismo. Passa
pela política capaz de fazer política afirmando, ou continuando a afirmar, em
simultâneo o domínio do publico – escolas, centros de dia, lojas do cidadão,
residências de estudantes, e, com alguma coragem, a habitação de interesse
social. E também propiciando formas de conceber os hotéis e a sua relação com
cidade. Ou apostando na criação de programas híbridos como hotéis-escola ou
pólos das universidades mais prestigiadas (nacionais e internacionais) em
lugares estratégicos onde possam gerar significado. Do vasto património
municipal poderão emergir experiências que outras cidades ainda não tentaram.
A vulnerabilidade
maior em Lisboa é que este processo de construção de uma indústria do turismo
se realiza sem qualquer contribuição erudita e estratégica do ponto de vista
programático de modo a tornar a cidade um destino capaz de sobreviver ao
processo de consumo e extinção. O que ficará no dia seguinte?
Depois de décadas
de turismo massificado no mundo ocidental sabemos que esta indústria destrói
não poucas vezes a razão existencial do seu primeiro assentamento. Com os
sistemas naturais de linhas de costa este processo de consumo e extinção é
conhecido de todos – hoje o trabalho é reinventar essas cidades de praia. Mas
quantas cidades europeias estão também no processo de se tornarem
potencialmente cidades souvenir? Todos conseguimos apontar mais do que
gostaríamos.
A nostalgia, como
afirmou o filósofo Daniel Innerarity, é o mote do turismo de massas. O seu
paradoxo reside no facto de o turista procurar partilhar a experiência de uma
realidade que contribui para extinguir. Se por um lado permite uma economia
ágil por outro actua como uma espécie infestante. Entre resiliência e
colonização (Lisboa esteve no lado da resiliência, Barcelona está colonizada)
deverá existir um estado intermédio para a cidade europeia.
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