Bicefalia na liderança implica cumplicidade
Num auditório que lhe é mais favorável, Seguro jogou um trunfo que veio
baralhar o jogo
1 jun 2014 / Público
A semana política
no Largo do Rato foi evoluindo num crescendo que, já se sabia, teria o seu
ponto alto no 4.º piso do Hotel Golf Mar, no Vimeiro, onde os socialistas se
reuniram em comissão nacional. A agenda seria analisar os resultados das
eleições europeias e, como tal, a proposta de António Costa para discutir a
convocação de um congresso e de eleições directas foi chumbada. A partir daqui
os socialistas enredaram-se num emaranhado burocrático de regulamentos, de
questões processuais e estatutárias. António Costa viu-se obrigado a ter de
reunir as assinaturas necessárias para forçar a convocação de uma nova reunião
da comissão nacional dentro de duas semanas para discutir a marcação de um
congresso extraordinário.
Eis que
entretanto António José Seguro surpreende tudo e todos, num movimento que
alguns apelidaram de fuga para a frente. O secretário-geral do partido propôs
não eleições directas para escolher o líder do PS, mas sim eleições primárias
para escolher o candidato do PS a primeiro-ministro. Seguro reúne a comissão
política na próxima semana para debater o assunto e o mais provável é que daqui
a 15 dias haja uma reunião da comissão nacional em que vá a votos uma proposta
para directas e outra para primárias. Os próximos dias serão, já se percebeu,
de arregimentar as tropas e contar espingardas.
A proposta de
Seguro abre um cenário inédito no PS que poderá culminar num partido cujo líder
não é o candidato a primeiro-ministro. Daqui não vem mal ao mundo, muito pelo
contrário. As primárias são um sistema que vigora, por exemplo, nos Estados
Unidos ou no PS francês e que é interpretado por muitos como um sinal de
abertura dos partidos à sociedade, já que, além dos militantes, os
simpatizantes também são chamados a votar.
O problema é que
para este sistema funcionar tem de haver uma sintonia e cumplicidade total
entre o líder do partido e o candidato às legislativas, caso não seja a mesma
pessoa a acumular os dois cargos. Se, por exemplo, António Costa ganhar as
primárias e António José Seguro as directas, ou vice-versa, o PS pode cair numa
situação de constante guerrilha interna, dada a radicalização de posições entre
ambos. No Vimeiro António Costa acusou Seguro de se esconder atrás dos
estatutos e Seguro retorquiu: “Isto é uma irresponsabilidade causada por ti.”
A ruptura entre
Costa e Seguro já não vem de hoje. Vem desde os tempos da JS, como conta a
edição deste domingo da revista 2. E se a proposta de Seguro vingar, e se estes
dois dirigentes dividirem entre si as cadeiras do Largo do Rato e de São Bento,
o PS poderá cair numa situação semelhante à do PSOE de Espanha em 1998 quando,
no seguimento de umas primárias, o catalão Josep Borrell se candidatava à
presidência do governo e o basco Joaquin Almunia era secretário-geral dos
socialistas. A experiência durou pouco e acabou mal. Um queixava-se do pouco
empenhamento do partido, enquanto o outro esperava por uma escorregadela do primeiro.
E escorregou. A bicefalia só funciona se houver
cumplicidade.
PERGUNTAS E RESPOSTAS SOBRE OS
CENÁRIOS SAÍDOS DO VIMEIRO
PÚBLICO
Pelo pouco que
foi explicado sobre o assunto percebe-se que serão eleições abertas aos
militantes e simpatizantes do partido — já previstos nos estatutos do PS e com
um número ontem não revelado de inscritos —, que irão escolher, entre os
candidatos que se apresentarem, aquele que estará em melhores condições para se
propor como primeiro-ministro. As primárias estão previstas nos estatutos e
regulamentos do PS? Não, há uma total ausência de referências ao assunto e, por
isso, o líder já anunciou para a semana uma comissão política para estabelecer
o regulamento das primárias. Seguro pediu à presidente do partido uma leitura
comparada com as experiências francesa, italiana e espanhola.
Isso não obriga à
alteração dos estatutos do PS?
Seguro diz que
não, mas há outras opiniões. O líder afirma que não é necessário mudar os
estatutos, porque o candidato a primeiro-ministro não é um cargo estatutário. Mas
a tradição no PS sempre foi a de que o secretário-geral é o candidato natural à
chefia do governo. Tal como o número um de uma lista às eleições legislativas é
naturalmente o candidato a primeiro-ministro. Por isso Pedro Delgado Alves
contestou a opinião da direcção, afirmando que seria necessário que os
estatutos — a constituição de um partido — previssem as primárias, até porque
estas já tinham sido rejeitadas em congresso (embora para o cargo de
secretáriogeral). A alteração de estatutos tem de ser feita em congresso.
O que se segue
agora?
Prosseguem dois
processos em paralelo. Por um lado, a comissão política reúne-se na próxima
semana para definir o modelo das primárias. Por outro, vai haver outra comissão
nacional do PS, dentro de duas semanas, convocada pelos apoiantes de António
Costa, para discutir a realização de um congresso extraordinário. Nessa altura,
as duas soluções (primárias e congresso) vão confrontar-se, mas só a última
deverá ir a votos. E a comissão nacional continua a ser maioritariamente
apoiante de Seguro. Quanto tempo se pode arrastar a crise de liderança no PS? É
difícil prever. No caso das primárias, Seguro revelou não ter pressa: “Se
puderem ser em Novembro, não serão em Dezembro, se puderem ser em Setembro, não
serão em Outubro.” Caso o congresso pedido por Costa seja aprovado, não sendo
electivo, apenas pode decidir a realização de directas. E qualquer acto
eleitoral interno demora, no mínimo, dois meses desde a sua marcação, para
cumprir os prazos regulamentares. Caso não consiga realizar o congresso, Costa
perde todas as hipóteses de disputar a liderança a Seguro? Não. Mesmo que não
vingue a solução por via do congresso, os adversários podem tentar vencer a
maioria das federações (distritais) que irão a votos no final do Verão. Ou,
caso Costa venha a vencer as primárias anunciadas por Seguro, a
incompatibilidade entre ambos pode levar Seguro a demitir-se. Ou não.
Leonete Botelho
Sem comentários:
Enviar um comentário