quarta-feira, 5 de março de 2014

Constitucional rejeita recurso e obriga câmara a dar documentos ao PÚBLICO


Constitucional rejeita recurso e obriga câmara a dar documentos ao PÚBLICO
Ao fim de quatro acções perdidas em tribunal e de dois anos e meio de recusas, Câmara de Lisboa vai ter de cumprir a lei e entregar documentos onde se avaliava as práticas seguidas nas adjudicações de obras
José António Cerejo / 6 mar 2014 / PÚBLICO

A conferência de juízes da 3.ª Secção do Tribunal Constitucional (TC) rejeitou por unanimidade um recurso apresentado em Setembro pelo município de Lisboa contra uma decisão anterior do TC. Este acórdão, datado de 26 de Fevereiro, é irrecorrível e tem como consequência a obrigação de a autarquia entregar ao PÚBLICO um relatório subscrito há cerca de três anos por um dos seus vereadores, bem como outros documentos com ele relacionados.
O recurso agora inviabilizado visava a anulação de uma decisão sumária do TC que, em Julho do ano passado, recusara o pedido da câmara liderada pelo socialista António Costa para que fosse declarada a inconstitucionalidade de um anterior acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul (TCAS) sobre o mesmo assunto.
Nesse acórdão, os desembargadores haviam rechaçado um conjunto de argumentos do município que, a serem aceites, representariam um rude golpe para aquilo que é a jurisprudência dos tribunais e da Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) em relação aos direitos de os cidadãos acederem a este género de documentos. Em última análise, poderia estar em causa muito do que é o consenso social e político sobre a necessidade de assegurar a transparência da administração pública.
O recurso camarário ao qual o TCAS negou provimento em Janeiro de 2013 prendia-se com uma sentença do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa num processo intentado pelo PÚBLICO contra o município, no ano anterior, por causa de este se recusar a entregar-lhe os documentos em causa. Na sentença proferida em Agosto de 2012, o juiz havia dado razão ao PÚBLICO, intimando o município a entregar-lhe no prazo de dez dias os materiais solicitados, sob pena de incorrer no crime de desobediência e de o seu presidente ser obrigado a pagar uma multa diária até ao cumprimento da sentença.
O acórdão agora subscrito pelo vice-presidente do TC e por dois juízes da terceira secção não é susceptível de recurso e vem obrigar António Costa a cumprir a sentença da primeira instância, de Agosto de 2012.
Três meses antes de o caso ter sido levado a tribunal pelo PÚBLICO, já a CADA, um órgão independente que funciona no âmbito da Assembleia da República, tinha despachado favoravelmente uma queixa do jornal, emitindo um parecer, não-vinculativo, onde se concluía que, nos termos da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos (LADA), o município devia facultar todos os documentos requeridos.
Foi a recusa do presidente da câmara em acatar este parecer e em responder aos requerimentos do jornal que deu origem à queixa judicial apresentada.
Na origem do caso encontra-se um relatório elaborado no início de 2011 pelo então vereador Fernando Nunes da Silva acerca das práticas camarárias referentes à adjudicação e execução das obras municipais. Por aquilo que se soube através de uma curta recomendação elaborada pela Comissão para a Promoção das Boas Práticas do município, com base naquele relatório, e depois divulgada no site da câmara, a contratação das obras enfermava de graves problemas. Entre eles avultava o excessivo recurso à figura dos ajustes directos, em detrimento dos concursos públicos, e a sua concentração num reduzido número de empresas — bem como os elevados gastos em “trabalhos a mais” e o pagamento de vultuosos juros de mora aos empreiteiros.
Requerido a António Costa em Outubro de 2011, ao abrigo da LADA, esse relatório e outros documentos com ele relacionados nunca foram entregues ao jornal, não tendo os sucessivos requerimentos sobre o assunto alguma vez tido resposta.
Os receios da câmara
Nos três recursos que dirigiu ao TCAS e ao TC, o município deixou porém bem claro o entendimento que subjaz à sua reiterada recusa de divulgar aqueles documentos.
A obrigatoriedade de abrir os seus arquivos, nos termos que a CADA e os tribunais vêm sufragando, sustentou a autarquia num desses recursos, “abre caminho a que todas as decisões políticas e documentos que as corporizam fiquem sujeitas ao escrutínio público e, eventualmente, judicial, o que irá conduzir, inevitavelmente, à diminuição/perda da autonomia que deve caracterizar o exercício do poder político”.
Para o município liderado por António Costa, a “dificuldade em traçar com clareza a fronteira entre a função política e a função administrativa” tem “potenciado a perigosa e nefasta tendência, hoje infelizmente cada vez mais comum, de, na tentativa de se obterem ganhos imediatos, se procurar judicializar a função política e legislativa”.
Para a Câmara de Lisboa, “não se trata” de “esconder o que quer que seja do domínio público, trata-se é de proteger a reserva das discussões e documentos de cariz político que outra utilidade não têm do que ajudar na tomada de decisões e opções, essas sim públicas”.
No caso do relatório sobre as obras municipais, o município tem sustentado nos tribunais que se trata de um documento preparatório de decisões políticas relacionadas com a reestruturação dos serviços camarários, que estava discussão em 2011. A génese e o conteúdo conhecido do documento evidenciam, contudo, que não existe qualquer relação entre uma coisa e a outra.
Os tribunais, aliás, não tiveram em conta esse argumento, considerando mesmo, em termos jurídico-constitucionais, que “os documentos que [os municípios] emanam no exercício das suas legais atribuições e das competências dos seus órgãos são documentos administrativos e não documentos de natureza política”.
Foi a alegada inconstitucionalidade deste entendimento do TCAS que levou Costa a recorrer para o TC. Sucede que a primeira decisão dos juízes do Palácio Ratton e o acórdão emitido na semana passada nem sequer avaliaram essa matéria, limitando-se a declarar, fundamentando, que os recursos do município não preenchem os requisitos que a lei estipula para que o TC os possa apreciar.

O acórdão obriga o município a pagar uma taxa de justiça que foi fixada em cerca de dois mil euros.

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