Constitucional rejeita recurso e obriga câmara a dar
documentos ao PÚBLICO
Ao fim de quatro acções perdidas em tribunal e de dois anos
e meio de recusas, Câmara de Lisboa vai ter de cumprir a lei e entregar
documentos onde se avaliava as práticas seguidas nas adjudicações de obras
José António Cerejo / 6 mar 2014 / PÚBLICO
A conferência de juízes da 3.ª Secção do Tribunal
Constitucional (TC) rejeitou por unanimidade um recurso apresentado em Setembro
pelo município de Lisboa contra uma decisão anterior do TC. Este acórdão,
datado de 26 de Fevereiro, é irrecorrível e tem como consequência a obrigação
de a autarquia entregar ao PÚBLICO um relatório subscrito há cerca de três anos
por um dos seus vereadores, bem como outros documentos com ele relacionados.
O recurso agora inviabilizado visava a anulação de uma
decisão sumária do TC que, em Julho do ano passado, recusara o pedido da câmara
liderada pelo socialista António Costa para que fosse declarada a
inconstitucionalidade de um anterior acórdão do Tribunal Central Administrativo
Sul (TCAS) sobre o mesmo assunto.
Nesse acórdão, os desembargadores haviam rechaçado um
conjunto de argumentos do município que, a serem aceites, representariam um
rude golpe para aquilo que é a jurisprudência dos tribunais e da Comissão de
Acesso aos Documentos Administrativos (CADA) em relação aos direitos de os
cidadãos acederem a este género de documentos. Em última análise, poderia estar
em causa muito do que é o consenso social e político sobre a necessidade de
assegurar a transparência da administração pública.
O recurso camarário ao qual o TCAS negou provimento em
Janeiro de 2013 prendia-se com uma sentença do Tribunal Administrativo do
Círculo de Lisboa num processo intentado pelo PÚBLICO contra o município, no
ano anterior, por causa de este se recusar a entregar-lhe os documentos em
causa. Na sentença proferida em Agosto de 2012, o juiz havia dado razão ao
PÚBLICO, intimando o município a entregar-lhe no prazo de dez dias os materiais
solicitados, sob pena de incorrer no crime de desobediência e de o seu
presidente ser obrigado a pagar uma multa diária até ao cumprimento da
sentença.
O acórdão agora subscrito pelo vice-presidente do TC e por
dois juízes da terceira secção não é susceptível de recurso e vem obrigar
António Costa a cumprir a sentença da primeira instância, de Agosto de 2012.
Três meses antes de o caso ter sido levado a tribunal pelo
PÚBLICO, já a CADA, um órgão independente que funciona no âmbito da Assembleia
da República, tinha despachado favoravelmente uma queixa do jornal, emitindo um
parecer, não-vinculativo, onde se concluía que, nos termos da Lei de Acesso aos
Documentos Administrativos (LADA), o município devia facultar todos os
documentos requeridos.
Foi a recusa do presidente da câmara em acatar este parecer
e em responder aos requerimentos do jornal que deu origem à queixa judicial
apresentada.
Na origem do caso encontra-se um relatório elaborado no
início de 2011 pelo então vereador Fernando Nunes da Silva acerca das práticas
camarárias referentes à adjudicação e execução das obras municipais. Por aquilo
que se soube através de uma curta recomendação elaborada pela Comissão para a
Promoção das Boas Práticas do município, com base naquele relatório, e depois
divulgada no site da câmara, a contratação das obras enfermava de graves
problemas. Entre eles avultava o excessivo recurso à figura dos ajustes
directos, em detrimento dos concursos públicos, e a sua concentração num
reduzido número de empresas — bem como os elevados gastos em “trabalhos a mais”
e o pagamento de vultuosos juros de mora aos empreiteiros.
Requerido a António Costa em Outubro de 2011, ao abrigo da
LADA, esse relatório e outros documentos com ele relacionados nunca foram
entregues ao jornal, não tendo os sucessivos requerimentos sobre o assunto
alguma vez tido resposta.
Os receios da câmara
Nos três recursos que dirigiu ao TCAS e ao TC, o município
deixou porém bem claro o entendimento que subjaz à sua reiterada recusa de
divulgar aqueles documentos.
A obrigatoriedade de abrir os seus arquivos, nos termos que
a CADA e os tribunais vêm sufragando, sustentou a autarquia num desses
recursos, “abre caminho a que todas as decisões políticas e documentos que as
corporizam fiquem sujeitas ao escrutínio público e, eventualmente, judicial, o
que irá conduzir, inevitavelmente, à diminuição/perda da autonomia que deve
caracterizar o exercício do poder político”.
Para o município liderado por António Costa, a “dificuldade
em traçar com clareza a fronteira entre a função política e a função
administrativa” tem “potenciado a perigosa e nefasta tendência, hoje
infelizmente cada vez mais comum, de, na tentativa de se obterem ganhos
imediatos, se procurar judicializar a função política e legislativa”.
Para a Câmara de Lisboa, “não se trata” de “esconder o que
quer que seja do domínio público, trata-se é de proteger a reserva das discussões
e documentos de cariz político que outra utilidade não têm do que ajudar na
tomada de decisões e opções, essas sim públicas”.
No caso do relatório sobre as obras municipais, o município
tem sustentado nos tribunais que se trata de um documento preparatório de
decisões políticas relacionadas com a reestruturação dos serviços camarários,
que estava discussão em 2011. A génese e o conteúdo conhecido do documento
evidenciam, contudo, que não existe qualquer relação entre uma coisa e a outra.
Os tribunais, aliás, não tiveram em conta esse argumento,
considerando mesmo, em termos jurídico-constitucionais, que “os documentos que
[os municípios] emanam no exercício das suas legais atribuições e das
competências dos seus órgãos são documentos administrativos e não documentos de
natureza política”.
Foi a alegada inconstitucionalidade deste entendimento do
TCAS que levou Costa a recorrer para o TC. Sucede que a primeira decisão dos
juízes do Palácio Ratton e o acórdão emitido na semana passada nem sequer
avaliaram essa matéria, limitando-se a declarar, fundamentando, que os recursos
do município não preenchem os requisitos que a lei estipula para que o TC os
possa apreciar.
O acórdão obriga o município a pagar uma taxa de justiça que
foi fixada em cerca de dois mil euros.
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