A catástrofe ou a mudança?
O relatório do IPCC mostra que o tempo das ambiguidades quanto às
alterações climáticas acabou
Odebate sobre as
alterações climáticas tem conhecido várias mutações ao longo dos tempos. A
estupefacção que gerou inicialmente traduziu-se ao mesmo tempo em declarações
de intenções e no estabelecimento de metas que nunca foram cumpridas e na
persistência de um ruído de fundo contestando os avisos dos cientistas e a
necessidade de mudança que estava implícita nesses avisos. Num mundo dominado
por uma crise global mais premente, a crise económica e financeira, a questão
das alterações climáticas foi progressivamente saindo do topo da agenda. A
dificuldade em alcançar consensos políticos à escala mundial acentuou essa
tendência para desvalorizar uma realidade que nos está a bater à porta. O
documento do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC)
deixa alertas muito sérios aos decisores políticos. E não deixa dúvidas quanto
aos riscos para Portugal e para a Europa. Num certo sentido, com este relatório
parece ter-se virado uma página. Fala-se pouco de reduções de emissões de gazes
com efeito de estufa, por exemplo, e muito de ameaças concretas nos planos da
segurança alimentar e das cheias nas zonas do litoral. O impacto nos preços dos
cereais da onda de calor que varreu a Rússia em 2009/2010 é um exemplo de como,
numa economia interligada, os chamados “eventos extremos” podem ter implicações
à escala planetária. No caso de Portugal, e da Europa, o aquecimento global
obrigaria a respostas comuns à escala comunitária para enfrentar um novo mapa
climático que se desenha. Mais do que uma ameaça projectada no futuro, as
alterações climáticas estão a exprimir-se através de cheias ou ondas de calor
catastróficas, com custos humanos e económicos incalculáveis. Mas será isso suficiente para a humanidade mudar?
‘Não há maneira de fazer parar a
subida do nível do mar’
O físico Filipe
Duarte Santos, da Universidade de Lisboa, foi um dos revisores do relatório do
IPCC. Coordenador dos primeiros estudos multidisciplinares sobre o impacto das
alterações climáticas em Portugal, foi agora escolhido pelo Governo para rever
a estratégia de gestão das zonas costeiras.
Entrevista
Ricardo Garcia / 31-3-2014 / PÚBLICO
Qual é a principal nova mensagem
deste relatório?
O mais importante
são as implicações sobre a segurança alimentar a nível global. No quarto
relatório [de 2007] não estava dito com tanta clareza. Este quinto relatório
evidencia uma preocupação muito grande nessa área a médio e longo prazo.
Quais são os sinais de alarme?
São sobretudo os
fenómenos meteorológicos extremos. Por exemplo, uma seca grave numa região que
desempenha um papel importante no abastecimento de cereais. Um caso concreto
foi a grande seca e onda de calor na Rússia em 2009/2010. A Rússia deixou de
exportar e isso teve repercussões mundiais, os preços aumentaram. Como tudo
indica que no futuro teremos fenómenos extremos mais frequentes, o impacto na
produção agrícola será significativo. As ondas de calor serão um dos principais
impactos no Sul da Europa. Está a ser feito o suficiente em termos de adaptação
em Portugal? Tem sido feito um trabalho bastante bom pela Direcção-Geral de
Saúde e pelo Instituto Ricardo Jorge. Existe um sistema de alerta, o Ícaro, que
é bastante bom. Mas temos falhas que resultam também da situação de crise
permanente. Sabendo que o mar vai avançar em Portugal, devemos proteger ou
demolir as construções em zonas de risco? Há três tipos de resposta. Uma é a
protecção. É o que se faz na Holanda: eles têm uma linha, que é a da costa em
1990, que consideram como “fronteira da guerra”. Vão defendê-la. Não é uma
estratégia que se possa adoptar para toda a costa portuguesa. Outra opção é
acomodar, ou seja, uma protecção mais flexível com a ajuda da natureza, iniciativas
de defesa sem obras de engenharia pesadas. E finalmente há outra estratégia que
é a retirada. Mas tem de ser muito bem pensada, com a participação das
populações. E a informação é essencial. Sem que as pessoas tenham um
conhecimento do que se está a passar e do que se irá passar com a subida do
nível do mar, o diálogo é extremamente difícil. O IPCC diz que com um grau a
mais na temperatura global haverá impactos importantes. Isto significa que o
limite de dois graus adoptado internacionalmente já não é seguro? Há um artigo
recente que calcula qual é a subida do nível médio do mar que está comprometida
com um aumento de um grau na temperatura global. É de 2,3 metros, ao longo de
muitos séculos. Não temos maneira de fazer parar isso. Na Costa da Caparica, há
126 mil anos, quando a temperatura global era dois graus mais elevada do que
agora, o nível médio do mar era cerca de quatro metros mais alto. É muito
arriscado dizer que está tudo bem até dois graus. Os relatórios do IPCC põem um
ponto final nas vozes cépticas quanto ao aquecimento global? Creio que não. Há
pessoas que defendem que não há alterações climáticas ou de que há imensas
dúvidas, sem grande fundamento científico. E isto é alimentado por pessoas que
fazem disso uma forma de visibilidade. Portanto, não vai calar os cépticos. É
um fenómeno que nos vai acompanhar nos próximos 100, 200 anos. Mesmo quando o
nível médio do mar tiver subido um metro, continuará a haver cépticos.
Algumas conclusões globais do
relatório
A Terra já está a
enfrentar impactos “abrangentes e consequentes” das alterações climáticas. Por
exemplo, mudanças no padrão de chuvas e o derretimento da neve e do gelo estão
já a alterar o regime hidrológico. Na biodiversidade, também já se nota alteração
na distribuição de algumas espécies.
Alimentação
É um dos grande
alertas: a produtividade agrícola, a nível mundial, pode cair até 2% por década
ao longo do século. Mas o consumo de alimentos poderá subir 14% por década, até
2050. Com apenas um grau Celsius a mais do que os níveis pré-industriais,
haverá perdas nas culturas de trigo, arroz e milho nas regiões tropicais e
temperadas. Noutras zonas do globo, pode haver ganhos.
Água
Haverá menos água
disponível nas regiões secas subtropicais, mas mais nas altas latitudes. Num
cenário com uma população mundial 7% maior do que a de hoje, por cada grau a
mais no termómetro global, haverá menos 20% de disponibilidade de água.
Cheias
Até 2100,
centenas de milhões de pessoas estarão em risco de ser afectadas por cheias no
litoral, a maior parte na Ásia. Nos próximos cem anos, o número de pessoas
expostas a uma cheia numa bacia hidrográfica será três vezes maior no pior
cenário (até 4,8 graus de aumento da temperatura), em comparação com o menos
grave (até 1,7 graus).
Conhecimento
A literatura
científica sobre os impactos e a adaptação às alterações climáticos mais do que
duplicou entre 2005-10, mas há menos estudos nos países em desenvolvimento.
Sem comentários:
Enviar um comentário