EDITORIAL
Pobreza, a outra
face da austeridade
DIRECÇÃO
EDITORIAL 24/03/2014 / PÚBLICO
Maior risco de pobreza, uma classe média remediada e diferença entre ricos
e pobres a aumentar
É o resultado de
uma economia que vem de mais de uma década de recessão ou de crescimento
anémico, que continua a divergir dos padrões de vida dos nossos parceiros
europeus e que nos últimos três anos foi submetida a uma dose inédita de
austeridade. Se, por um lado, a austeridade permite equilibrar as contas
públicas, os números publicados ontem pelo INE mostram a outra realidade, para
além das folhas da contabilidade e do Excel. Os números mostram que a taxa de
risco de pobreza em Portugal aumentou para 18,7% em 2012, o valor mais alto
desde 2005. São quase dois milhões a viver com 400 ou menos euros por mês. E um
inquérito paralelo do INE mostra ainda que no ano passado 25,5% dos residentes
viviam em privação material, ou seja, não tinham rendimentos para satisfazer
algumas necessidades como, por exemplo, comprar roupa nova.
Esta realidade de
rendimentos cada vez mais baixos cruza-se com uma outra, a da forma como esses
rendimentos são distribuídos. E a conclusão dos números não é animadora. Por um
lado mostram um maior fosso entre ricos e pobres, ou seja, as duas classes de
rendimento menos dependentes de salários e pensões. E este diferencial aumentou
muito à custa dos que ficaram desempregados e dos cortes registados em
prestações como o RSI ou o Complemento de Solidariedade para Idosos. A segunda
conclusão é que a classe média, que em termos absolutos pagou grande parte da
austeridade, apresenta rendimentos mais uniformes, mas o alisamento dos
salários foi feito por baixo.
Tal como se fala
em desemprego estrutural, a grande incógnita, depois de anos de austeridade, é
saber qual é o nosso nível de pobreza estrutural, ou seja, aquela que não vai
desaparecer mesmo quando a economia der sinais de viragem.
Um quarto dos
residentes em Portugal vive em privação material e 10,9% em privação material
severa
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Diferença entre muito ricos e
muito pobres continua a subir em Portugal
Índice de Gini baixou em 2012, mas diferencial de rendimentos entre os 10%
mais ricos e os 10% mais pobres aumentou. Indicador de risco de pobreza subiu
para o valor mais alto desde 2005
Sérgio Aníbal e
Cláudia Bancaleiro / 25 mar 2014 / PÚBLICO
Os dados são “a
fotografia mais completa e consistente do impacto da austeridade na pobreza e
na desigualdade” e os números “são extremamente preocupantes”, diz o economista
Carlos Farinha Rodrigues
Um estudo
publicado este mês pelo FMI, que defendia que Portugal tinha sido um dos países
em que a austeridade mais tinha poupado os cidadãos de menores rendimentos,
relançou o debate: estaria a desigualdade de rendimento em Portugal a aumentar
ou a diminuir desde a chegada da troika ao país?
Os números
oficiais do Instituto Nacional de Estatística (INE) para 2012 publicados ontem
não dão apenas uma resposta a esta questão. Se, por um lado, o índice de Gini —
o indicador mais usado para medir a desigualdade dos rendimentos — diminui em
2012 face a 2011, outros indicadores, como a diferença de rendimentos entre os
10% mais ricos e os 10% mais pobres, voltam a alargar-se.
Estes dados, à
primeira vista contraditórios, o que mostram é que, no Portugal atingido pelas
medidas de austeridade, os rendimentos tornaram-se cada vez mais iguais nos
escalões intermédios, mas ficaram mais distantes uns dos outros nas
extremidades, ou seja, entre os muito ricos e os muito pobres. Este cenário é
ainda reforçado pelo aumento do número de pessoas em risco de pobreza em 2012 e
pelo acréscimo do indicador de privação material em 2013, dados também
revelados agora pelo INE.
Carlos Farinha
Rodrigues, economista que se tem dedicado às questões da pobreza e
desigualdade, dá uma explicação para a diferença na evolução entre o índice de
Gini e os outros indicadores de desigualdade. “Observou-se em 2012 uma
igualização dos rendimentos na parte central da distribuição. Mas nas classes
de rendimento menos dependentes dos salários e das pensões — os mais ricos e os
mais pobres — as disparidades aumentaram”, afirma.
O índice de Gini,
que leva em consideração todos os escalões de rendimento, tinha subido de 34,2%
para 34,5% em 2011, mas regressou em 2012, ano de aplicação de fortes medidas
de austeridade, para 34,2% (uma diminuição representa uma redução da
desigualdade). No entanto, os 10% mais ricos ganham agora mais 10,7 vezes que
os 10% mais pobres, quando esse diferencial era, em 2011, de dez vezes.
Segundo este
especialista, este alargamento do fosso entre os mais ricos e os mais pobres
“deve-se às reduções registadas em prestações como o Rendimento Social de
Inserção (RSI) ou o Complemento de Solidariedade para Idosos”, a par da subida
do desemprego provocada pela recessão económica.
O facto de, entre
os escalões intermédios de rendimento, se ter registado um recuo da
desigualdade encontra explicação naquilo que foi dito pelo FMI no seu recente
relatório sobre este tema. As medidas de austeridade aplicadas em Portugal —
nomeadamente nos salários da função pública e nas pensões — tiveram uma
característica de progressividade. Isto é, a percentagem de corte aplicada foi
mais alta quanto maior era o rendimento sobre o qual incidia. Foi assim que se
operou uma igualização dos rendimentos na classe média. O FMI também assinalava
no seu relatório que os cortes nas prestações sociais não tiveram a mesma
característica de progressividade, afectando particularmente os mais pobres.
Agravamento da
pobreza
Onde parece não
haver duas leituras possíveis é na evolução da pobreza. A taxa de risco de
pobreza em Portugal — que mede o número de pessoas que vivem com menos de 60%
do rendimento mediano em Portugal — aumentou em 2012 para 18,7%, ou seja,
afectava quase dois milhões de portugueses, segundo os dados recolhidos pelo
INE. Esta é a taxa mais elevada desde 2005 e representa uma subida face aos
17,9% de 2011.
Esta evolução é
ainda mais preocupante se se levar em conta que o limiar do risco de pobreza
agora considerado se tornou ainda menos exigente do que em 2011, uma vez que se
registou, em termos globais, uma redução dos rendimentos em
Portugal. Para
entrar nesta contabilidade, uma pessoa tinha de receber menos de 4904 euros
anuais, ou seja, pouco mais de 400 euros por mês. Estes valores representam uma
quebra relativamente aos valores de 2011: 4994 e 416, respectivamente.
No relatório do
INE, calcula- se quanto é que seria a taxa de risco de pobreza, caso se
considerassem os rendimentos medianos de 2009 (apenas actualizados com a
inflação). Nesse caso, o indicador teria subido de 20,1% em 2011 para 22,4% em
2012.
A taxa de risco
de pobreza para as famílias com crianças dependentes subiu para 22,2%, contra
os 20,5% de 2011. A
maior incidência revelou-se nas famílias monoparentais com um filho a cargo
(33,6%) e nas famílias constituídas por dois adultos e três ou mais crianças
(40,4%) e por três ou mais adultos com menores (23,7%).
Depois dos
menores e das famílias com filhos, os desempregados estão entre os que mais
arriscavam em 2012 uma situação de pobreza, como uma taxa de 40,2%, que compara
com os 38,3% do ano anterior.
Outro indicador
de pobreza (que tem a vantagem de não depender do rendimento médio da
população) é o que mede a privação material das pessoas. O INE faz um inquérito
em que avalia de que modo é que as pessoas conseguem satisfazer necessidades
que vão da compra de roupa nova até às condições da habitação, passando pela
possibilidade de ter momentos de lazer. Neste caso, já há dados para 2013.
No ano passado,
25,5% dos residentes em Portugal viviam em privação material, mais 3,7 pontos
percentuais do que em 2012 (21,8%), enquanto 10,9% da população estavam em
privação material severa, ou seja, existiam famílias sem acesso a pelo menos
quatro dos itens considerados pelo INE.
Para Carlos
Farinha Rodrigues, os dados agora publicados são “a fotografia mais completa e
consistente do impacto da austeridade na pobreza e na desigualdade” e os
números registados “são extremamente preocupantes”, nomeadamente no que diz
respeito ao aumento da pobreza entre as crianças e os jovens. Para este
economista, ao que se está a assistir é a “uma completa inversão do ciclo de redução
da pobreza que se tinha verificado até 2009” .
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