EDITORIAL
A Crimeia, o referendo e o dia seguinte
DIRECÇÃO EDITORIAL 16/03/2014 - PÚBLICO
Na Crimeia joga-se o futuro
da mirífica união euro-asiática, mas também se pode jogar o seu fim.
No referendo deste domingo na Crimeia não é preciso
sondagens (aliás, negadas ou falseadas) nem elaboradas análises para concluir
que o resultado será maioritariamente pró-russo. Uma revisão rápida dos
acontecimentos na Ucrânia após a queda de Ianukovich e a instalação de um novo
e instável poder em Kiev permite perceber que, desde essa data, a Rússia tudo
fez para que a Crimeia se encaminhasse para essa solução.
Mesmo que não usasse os seus exércitos, e usou-os; mesmo que
não calasse as vozes adversárias, e calou-as, nomeadamente nos meios de
comunicação social; mesmo que não ajudasse a espalhar o medo dos “nazis de
Kiev”, e ajudou; a Rússia teria todas as condições para ganhar maioritariamente
o referendo, pois ali dominou durante décadas. Do domínio tártaro, a Crimeia
passou em 1783 para o Império Russo de Catarina a Grande, ao qual foi anexada
como parte da província da Táurida; e no rescaldo da Revolução comunista de
Outubro de 1917 foi integrada na União Soviética. O tempo em que esteve sob
jugo nazi (agora usado como fantasma contra o actual poder de Kiev), de 1941 a 1945, antecedeu a sua
entrega, em 1954, à República Socialista Soviética da Ucrânia, que era, à data,
parte integrante da URSS, onde dominava a Rússia. Há uma razão, entre outras,
para tal entrega: Krutschov, líder soviético à data, tinha nascido na Ucrânia.
Neste rol de anos, os tempos de autonomia da Crimeia são demasiado breves para
pesarem tanto quanto o domínio e a identificação russa: chegou a proclamar a
independência já depois do colapso do comunismo, em 1992, mas não tardou a
voltar a ser parte da Ucrânia, agora com estatuto de república autónoma. A
frota russa do mar Negro continuou lá, em Sebastopol, durante todo este tempo.
Mais precisamente desde a anexação de 1783.
A interrogação de hoje não é, pois, sobre os votos, mas
sobre o que fazer com eles. Se, após a declaração de independência já votada
(embora não aceite internacionalmente) pelo parlamento da Crimeia o referendo
der o “sim” maioritariamente à integração na Federação Russa, o passo seguinte
é que é determinante: a aceitação oficial, ou não, pela Rússia, de tal pedido.
Vladimir Putin pode jogar com tal pedido e adiar a sua aceitação, para negociar
o que lhe aprouver com outras nações a partir dos resultados; ou pode pôr em
marcha o processo efectivo de secessão, desencadeando um verdadeiro sismo na
ordem geopolítica mundial. Uma e outra opção têm custos e não há muito tempo
para gerir soluções mais calculistas. Na Crimeia, incentivadas pelo poder
russo, há já vozes que falam numa espécie de “cruzada” para “libertar” regiões
da Ucrânia e isso, sim, poderá conduzir a conflitos armados pontuais ou a uma
guerra em maior escala. A Rússia, que detém por enquanto as rédeas de tal
encarniçamento, poderá travá-lo ou ampliá-lo à medida dos seus interesses, mas
vai ter de tomar uma decisão rápida quanto às suas ambições. Na Crimeia joga-se
o futuro da mirífica União Euro-asiática, mas também se pode jogar o seu fim.
Começa hoje, para todos, o dia seguinte.
As opções de Moscovo na Crimeia
JORGE ALMEIDA FERNANDES 16/03/2014 – PÚBLICO
O referendo na Crimeia pode levar a duas saídas. A primeira,
a anexação do território pela Rússia, parecerá evidente na continuidade das
últimas iniciativas de Vladimir Putin. No entanto, uma segunda opção não deve
ser afastada: Moscovo poderá protelar e acabar por recusar a anexação, não só
pelos elevados custos económicos e políticos, mas como plataforma para
recuperar a influência na Ucrânia. É "o grande jogo" que se trava na
fronteira entre a Rússia e a NATO.
"Ganhar a Crimeia e perder a Ucrânia" seria uma
vitória de Pirro, a maior punição para a Rússia e para os seus desígnios
estratégicos. Ao contrário, recuperar a influência em Kiev — e o Kremlin tem
trunfos a jogar — garante-lhe o controlo estratégico da Crimeia.
Putin cometeu graves erros de cálculo em Kiev que lhe
valeram uma humilhação. Mas a sua capacidade de manobra não deve ser
subestimada.
Sem Ucrânia não existe a União Euro-asiática que ele tem em
mira para elevar a potência da Rússia. A aventura na Crimeia não apenas uniu os
ucranianos contra Moscovo como assustou o Cazaquistão, o outro país
indispensável para a União. O Presidente Nursultan Nazarbaiev defendeu a
integridade territorial da Ucrânia e repudiou os argumentos de Putin: o
Cazaquistão tem 17 milhões de "russos étnicos" e não aceitará
interferências em seu nome. Putin suscitou também uma enérgica reacção dos
vizinhos europeus, da Polónia aos bálticos, o que significa potenciar a acção
da NATO no Leste europeu.
A invasão da Crimeia — alertou a analista russa Lilia
Chevtsova — põe em causa "a ordem mundial pós-Guerra Fria; é "um
precedente que autoriza o Kremlin a uma intervenção directa nos assuntos de um
Estado soberano"; implica uma "doutrina que ameaça a estabilidade de
todo o espaço pós-soviético"; abriria caminho a uma tentativa de controlo
sobre o Sul e o Leste da Ucrânia; o alvo seguinte poderia ser a Moldávia.
Tal como não se deve dar como adquirida a anexação da
Crimeia, é prudente não excluir a hipótese, mesmo improvável, de Moscovo
desestabilizar a Ucrânia Oriental para criar um pretexto de intervenção com
consequências catastróficas.
Há um factor imponderável: Putin poderá ter ficado refém de
si mesmo. A operação na Crimeia desencadeou uma vaga de "fervor
imperial" na Rússia, reforçando a "paranóia do cerco", reportava
ontem o Financial Times.
"Os homens fazem a história, mas não sabem a história
que fazem."
O peso da geografia
Ignora-se o que vai na cabeça de Vladimir Putin. Angela
Merkel disse que ele parece "descolado da realidade" e "vive
noutro mundo".
Esse "outro mundo" é o da velha geopolítica, o da
luta pelo espaço e pelo poder. Para o Kremlin, este não é um conflito sobre legalidade
internacional. "O comportamento de Putin é motivado pelas mesmas
considerações geopolíticas que infuenciam todas as grandes potências, incluindo
os Estados Unidos", escreve o analista americano John Mearsheimer.
O jornalista e investigador americano Robert Kaplan publicou
em 2012 um livro útil: The Revenge of Geography (A vingança da geografia). É um
ensaio sobre geopolítica. Publicou agora um artigo sobre a Crimeia.
Escreve: "Putin está de momento numa posição forte na
Ucrânia simplesmente porque a Ucrânia é mais importante para ele do que para os
Estados Unidos e até para a Europa. Importa-lhe muito mais por causa da
geografia. A Ucrânia, por todas as razões conhecidas, é central para o destino
da Rússia europeia, para a história e identidade da Rússia e, particularmente,
para o acesso da Rússia ao Mediterrâneo, via mar Negro."
"Também por causa da geografia, os Estados bálticos, a
Polónia e a Moldávia se sentem ameaçados." São contíguos à Rússia e à
Ucrânia, sem barreiras naturais para os proteger. Do mesmo modo, "as
agressões de Putin decorrem da insegurança geográfica" russa. "Um
governante visionário diria que só uma sociedade civil pode, em última análise,
salvar a Rússia. Mas o quadro geográfico russo é o contexto que torna
compreensível Putin." Acontece é que, tendo pouca cenoura, Putin usa um
grande pau.
Merkel pode considerar que os quadros mentais de Putin
pertencem aos séculos XIX ou XX e que a agressão na Crimeia apenas apressa o
declínio da Rússia. Isso não resolve a "paranóia do cerco".
A "finlandização"
É significativo que veteranos da geopolítica, como Zbigniew
Brzezinski ou Henry Kissinger, tenham mudado de opinião na questão ucraniana.
Brzezinski teorizou, em 1998 (The Grand Chessboard), a necessidade de afastar a
Ucrânia da Rússia e de a integrar na órbita euro-atlântica: "Sem Ucrânia,
a Rússia deixa de ser um império na Eurásia." Enquanto império será
agressivo e não se democratizará. Na altura, Kissinger pensava sensivelmente o
mesmo.
Em Fevereiro, Brzezinski propôs a "finlandização"
da Ucrânia — o estatuto de rigorosa neutralidade da Finlândia durante a Guerra
Fria. Há dias, Kissinger defendeu o direito da Ucrânia a escolher as suas
"associações económicas e políticas", mas jamais integrada na NATO.
Os EUA devem dar garantias de segurança a Moscovo. Ele já defendera esta
posição há anos, quando a Administração Bush e parte da Europa tentaram alargar
a NATO à Ucrânia e à Geórgia — um erro fatal.
Há uma grande discussão entre "estrategos"
americanos. E também na Europa. Washington não deveria ter-se entusiasmado com
o derrube de Ianukovich, deveria ter pressionado o respeito do acordo de 21 de
Fevereiro, dando garantias à Rússia, escreve o analista Ian Bremmer.
"Washington tem um profundo interesse em resolver o conflito mantendo a
Ucrânia como um Estado-tampão democrático entre a Rússia e a NATO"
(Mearsheimer).
Um analista alemão, Jan Techau, faz a autocrítica europeia.
A UE não percebeu que estava no meio de um jogo geopolítico. Tomou as palavras
de Putin como propaganda barata. "Mas, para o Presidente russo, a luta na
Ucrânia não é uma aventura imperialista, mas uma luta pela sobrevivência contra
o mortal inimigo ocidental." Ou oito ou oitenta.
E agora?
Está em curso uma escalada em que todos se arriscam a perder
— russos, europeus, americanos e, sobretudo, os ucranianos.
Putin quer mais do que a neutralidade da Ucrânia. Quer que
ela continue a ser um Estado fraco e caótico que possa manipular. Estão a Europa
e os EUA dispostos a pagar a salvação de uma economia em queda livre?
A ocupação da Crimeia reforçou o apelo ucraniano ao Ocidente
e Moscovo arrisca-se a ver um governo anti-russo em Kiev. É o que pode
"forçar a mão" a Putin.
E, muito pior do que as sanções, a sua táctica agressiva
pode trazer-lhe outro efeito perverso a médio prazo: forçar a Europa a mudar a
sua política energética, o que deixaria a Rússia "a pão e água".
OPINIÃO
A dívida, a Crimeia e as
certezas absolutas de Passos
TERESA DE SOUSA 16/03/2014 - PÚBLICO
É a própria Europa que, para
subsistir, tem de transformar-se a ela própria numa entidade política muito
diferente.
1. Passos Coelho está a começar a colher os ventos que
semeou. A sua política tinha duas ideias fundamentais. A primeira, que foram as
gerações políticas anteriores (e não apenas as socialistas) que deram cabo do
país. A segunda, que só havia um caminho para resolver esta crise: o que foi
definido pela troika, segundo uma receita com a qual se identificava
totalmente.
Tinha a oportunidade de aplicar ao país um programa que, em
grande medida, correspondia ao seu, sem assumir a paternidade. Acreditou que,
para enfrentar esta crise, era preciso coragem e determinação (coisas que tem
em abundância) para seguir um rumo negociável com quem quer que fosse. Paulo
Portas ainda o tentou, mas perdeu a batalha e, agora, terá de ser bem
comportado até ao fim. O PS foi tratado como o “bombo da festa” (é verdade que
se pôs a jeito), absolutamente dispensável para a aplicação do programa da
troika. Os últimos meses deram-lhe algumas recompensas. A economia deixou de
contrair, ao contrário de muitas previsões. O desemprego (o maior custo social
desta crise) deu sinais de regredir. A balança com o exterior passou a ser
positiva. A Europa, especialmente Berlim, querem pôr a crise para traz das
costas, agora que os mercados começam a integrar a ideia de que o euro continuará
no Norte como no Sul. Ignorou em absoluto qualquer diálogo social ou político,
preferindo colocar os pobres contra os ricos (ou seja, aqueles que têm um
rendimento superior a mil euros). Inventou a ideia de que quem discordasse ou
estava a trair a Pátria ou fazia parte “dessa gente” que resolveu fazer um
manifesto sobre a dívida, como se esse direito já não lhe fosse concedido.
Aproveitou a fraqueza do PS para, pura e simplesmente, ignorá-lo.
A questão que se põe agora é o que vem a seguir. Ninguém
consegue acreditar (incluindo ele próprio) nos seus apelos ao consenso, depois
de ter optado por ignorar qualquer negociação séria com o PS ou com os
parceiros sociais. Uma das coisas que o secretário de Estado das Finanças
irlandês veio dizer na conferência sobre o pós-troika da iniciativa do Negócios
e da Renascença, foi o tempo e a paciência que o seu Governo dedicou à
negociação com os parceiros sociais e políticos, mantendo-os dentro do barco. A
única coisa que sabe dizer sobre o futuro é que a austeridade vai continuar por
muitos e bons anos (que o Presidente quantificou no seu prefácio: até 2035).
Há só um pequeno problema. Nenhuma sociedade democrática
consegue aguentar uma ausência de expectativa tão dilatada no tempo. Nenhuma
sociedade democrática consegue sobreviver aceitando que não há alternativas.
Nenhuma sociedade democrática aceita eternamente um estatuto de menoridade no
quadro europeu. Só há um caminho para impedir esta tristeza: o crescimento da
economia. Não o crescimento que agora serve a Passos para justificar o
bem-fundado da sua “austeridade expansionista”, mas um crescimento que consiga
tirar partido daquilo que de bom o país acumulou nas últimas décadas – da
ciência ao Serviço Nacional de Saúde – para encontrar um modelo económico mais
competitivo e mais dinâmico, assente na competência e não apenas em salários
baixos. O problema é que esse crescimento será muito difícil com o país a
suportar uma dívida que nos custa qualquer coisa como 7 mil milhões ao ano.
2. É aqui que entra o Manifesto dos 74, tão desprezado pelo
primeiro-ministro, tão criticado por muita gente que se habituou a olhar
sobretudo para a economia, sem fazer muitas contas sobre a política. Os
“espertos” do costume (“essa gente” mais velha também é livre de pensar que os
jovens que enxameiam os gabinetes governamentais, cuja arrogância consegue
superar a do próprio Passos, não sabem o que dizem) dispararam a matar,
provando qual é o significado do consenso que o Governo passou a defender com a
mais angelical das boas vontades. Outros, mais condescendentes, criticaram a
questão do timing. Outros ainda disseram tudo o que lá é dito já está a ser
considerado em Bruxelas. Finalmente, que as assinaturas eram uma grande
misturada política.
São tudo considerações plausíveis (menos o “essa gente” do chefe do Governo), desde que fossem
feitas para alimentar um debate que se torna hoje fundamental, quando o
pós-troika vai ser ditado pela nossa capacidade de crescimento. O problema é
que um país em que o debate democrático se tornou quase impossível, é um país
vulnerável que está a arruinar o seu futuro.
3. Atravessamos um momento em que é cada vez mais difícil
(pelo menos para mim) perceber o que está bem e o que está mal. Ninguém
consegue ter certezas absolutas sobre nada. E não é só cá. Quem, há 15 dias,
imaginava que a Europa estivesse hoje a enfrentar a sua mais grave crise de
segurança desde o fim da Guerra Fria, que pode obrigá-la a tomar decisões ainda
ontem impensáveis? Mas alguma coisa vai ter de ser feita a nível europeu para
aliviar o peso da dívida que nos sufoca. Falar disso alto e bom som não é
pecado. Debatê-lo também não. O timing até pode ser discutível mas nunca
haveria um timing perfeito. A variedade política dos subscritores (a mim
impressiona-me mais a assinatura de Louçã num documento muito mais de acordo
com o que Ferreira Leite ou Bagão Félix dizem) também não me parece um grande
problema, na medida em que é puramente circunstancial. A guerra semântica
provocada pela utilização de expressões que podem ter interpretações diferentes
(reestruturação, renegociação, reescalonamento) também não me parece uma
novidade para os mercados em nome dos quais o Governo quer que fiquemos todos
calados. O destino da nossa dívida depende das decisões que forem tomadas na
Europa nos próximos tempos. É melhor termos um discurso que está mais próximo
da realidade do que tentarmos manter uma ficção que nos torna mais fracos nessa
negociação.
Mas o Manifesto teve também uma lição puramente nacional:
deixou claro o que, para Passos Coelho, significa consenso. É simples: desde
que estejam de acordo comigo.
Falta ainda dizer que outros dois actores principais se
saíram bastante mal. O Presidente, que escreveu um prefácio ao seu último livro
de Roteiros apenas para tentar fixar o seu papel de analista nesta crise, tem
uma falta de coragem que nunca deixa de nos surpreender. Perdeu qualquer
influência na forma como vamos sair disto tudo, a não ser despedir conselheiros
incómodos. O PS, que está habituado a reagir de forma dispersa e inconsistente
às decisões do Governo, não tinha obviamente uma resposta quando a acção veio
de outro lado. Não precisava de apoiar o Manifesto. Mas precisava de ter um
discurso claro e completo sobre a questão da dívida.
4. Finalmente, o nosso futuro em 2035, ninguém o pode
prever. Acreditámos estar a salvo de muita coisa, nesta Europa pacífica e
próspera a que aderimos. Hoje, sabemos que não estamos a salvo de nada, porque
é a própria Europa que, para subsistir num mundo que mudou radicalmente sob o
ponto de vista económico e político, tem de transformar-se a ela própria numa
entidade política muito diferente. Para reconquistar a competitividade perdida,
para garantir um lugar de actor influente no mundo da globalização, para
garantir a sua segurança. E nem tudo são más notícias.
Começamos a ter a prova de que afinal a morte económica do
Ocidente, decretada em muitas capitais emergentes, era uma notícia
manifestamente exagerada. Basta a FED sinalizar uma futura subida dos juros
para o capital que rumou para os países emergentes comece a regressar à base.
Em Brasília ou em Ancara, descobre-se que ainda há imensos problemas económicos
por resolver. A China tenta evitar uma aterragem difícil da sua economia,
alimentada pelo boom imobiliário e o crédito fácil (aonde já ouvimos isto?). A
solidez da economia americana volta ao de cima. Também neste capítulo a Europa
precisa de rever algumas das suas teorias.
Sem comentários:
Enviar um comentário