Desta vez é diferente
Putin falhou na avaliação que fez da resposta europeia, contando com as
suas eternas divisões
Teresa de Sousa /
Sem Fronteiras / 23-3-2014 / PÚBLICO
1.Estamos tão
habituados a criticar a eterna indecisão da União Europeia quando se trata de
questões de segurança internacional que, por vezes, não conseguimos detectar a
mudança. Podemos talvez agradecer a Vladimir Putin o facto de, desta vez, as
coisas não serem assim. Podemos dizer que a União Europeia não prestou a devida
atenção à sua estratégia brutal para regressar ao estatuto de grande potência a
quem os EUA têm de fazer a devida vénia. É verdade. Imagina-se facilmente que,
durante as negociações do Acordo de Associação com a Ucrânia, a eurocracia não
deve ter prestado a mínima atenção à realidade política envolvente. Os líderes
europeus andam há tanto tempo mergulhados na crise do euro, que pouca atenção
devem ter prestado à “parceria oriental”, uma daquelas coisas que a Europa faz
quase automaticamente e que já pouco tem a ver com a realidade europeia. Em
Dezembro, Putin forçou o “seu” Presidente ucraniano a não assinar o acordo. No
dia seguinte, foi o que se viu em Kiev. A velocidade dos acontecimentos deve
ter surpreendido tanto a Europa como o próprio Presidente russo. A surpresa não
o impediu de reagir aos acontecimentos de forma a ocupar a Crimeia e a
demonstrar aos países europeus que fazem fronteira com a Rússia que mais vale
portarem-se bem.
Putin calculou
mal alguns aspectos da sua estratégia. Ocupou a Crimeia e integrou-a na Rússia
em menos de oito dias, com um referendo que foi uma farsa e que, até agora,
ninguém reconheceu como legítimo. Continua a ameaçar o território oriental da
Ucrânia, alegando a protecção da minoria russa. Como escrevia Jim Hoagland,
colunista do The Washington Post, cometeu o erro de proclamar a sua nova
doutrina: “Moscovo intervirá para proteger os russos étnicos noutros países
contra perigos imaginários”. Esta doutrina não é apenas um desafio à União
Europeia e à NATO, é também a mensagem errada para obrigar as antigas
repúblicas soviéticas a integrarse na sua União Euro-asiática. Tudo isto já é
conhecido. Mas Putin falhou na avaliação que fez da resposta europeia, cuja
fraqueza olha com um enorme desprezo, contando com a suas eternas divisões,
muitas delas ditadas pelos negócios, incluindo a energia.
Para que a sua
avaliação tivesse sido correcta, era preciso que a Europa não tivesse percebido
o óbvio: que a ocupação da Ucrânia e a ameaça a outros países foi aquilo a que,
em língua inglesa, se chama game changer. Por mais distraída que viva em
relação ao mundo que a cerca, há coisas que não pode ignorar. Foi o que
aconteceu. “A conduta da Rússia é interpretada erradamente como o início de
nova guerra fria com a América”, escreve a Economist. “Coloca uma ameaça mais
ampla porque Putin conduziu um carro de combate contra a ordem existente”. Para
Obama, é um momento fundamental: “Tem de liderar, não apenas cooperar”. Para a
Europa, o reforço da NATO e o fim da dependência energética passam a ser
cruciais.
A Europa será
diferente quando esta crise acabar. Por agora, tem de prestar atenção aos seus
membros que estão na fronteira com a Rússia e onde vivem amplas minorias russas
(como é o caso dos Bálticos) e, mais do que tudo, tem de investir a fundo,
política e economicamente, no fortalecimento do Governo transitório de Kiev
que, sem a Crimeia e com as provocações russas, se vê agora mais livre para
receber a ajuda ocidental. Muita coisa vai passar por aí. A assinatura da parte
política do Acordo de Associação durante o Conselho Europeu é a prova mais
evidente de que a música que a Europa está a aprender a tocar é outra. Mesmo
que seja preciso não fechar todas as portas para uma solução diplomática que
estabilize o novo statu quo europeu.
O próprio Obama
não descura este aspecto. Chegará a Haia na segunda-feira para presidir à
cimeira sobre a segurança nuclear que ele próprio convocou e que é um dos
dossiers mais importantes da sua política externa. A Rússia mandará uma
delegação chefiada pelo chefe da diplomacia, Serguei Lavrov. O Presidente
chinês, Xi Jiping, estará lá, na sua primeira visita à Europa, incluindo às sedes
das instituições europeias. Absteve-se no Conselho de Segurança e mantém uma
neutralidade mais ou menos distante. À margem da cimeira, os países do G-7 (o
G-8 acabou) vão debater a estratégia face a Putin e à Ucrânia. Por enquanto, a
Rússia está isolada na sua aventura bélica. O Ocidente não pode baixar a
guarda. Mesmo que conte com a “racionalidade” de Putin (algo duvidosa), o
Presidente russo matou qualquer possibilidade de um regresso ao passado,
afirmando-se abertamente como uma potência antiocidental e agressiva.
3. Com tudo isto
a acontecer, muito do que se tem dito em Portugal sobre esta crise é um pouco
preocupante. Entre diplomatas, militares, analistas e comentadores parece
prevalecer a ideia de que, vendo bens as coisas, Putin até tem alguma razão. Os
paralelismos históricos surgem em catadupa, encontrando nos Pedros e nas
Catarinas a justificação de Putin, percebendo a “humilhação” da Rússia pelo
Ocidente, que teve a peregrina ideia de vencer a guerra fria. Ouve-se e não se
acredita. A História é muito importante, mas o mundo de hoje é muito diferente,
graças às democracias que venceram o fascismo e o comunismo e que estabeleceram
uma ordem assente na regra, e à globalização, que ligou a economia e as pessoas
de uma forma nunca antes experimentada. Ainda não estamos de regresso ao século
XIX, com a sua balança de poder. E, como escreveu Tocqueville, as democracias,
apesar de parecerem fracas e viverem numa aparente confusão, são
extraordinariamente resistentes.
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