domingo, 23 de março de 2014

Reabilitação e tradição na Baixa de Lisboa


OPINIÃO
Reabilitação e tradição na Baixa de Lisboa
GUILHERME PEREIRA 24/03/2014 - PÚBLICO
Apagam o que nos prende à nossa Baixa, à nossa Lisboa!

A renovação em curso na Baixa é necessária e oportuna. Contudo, conjugada com a nova Lei do Arrendamento, está a levar ao despejo e encerramento de muitos comércios que caracterizam esta zona histórica. Ontem a Correaria Vitorino de Sousa, a Adega dos Lombinhos, o Capelo Gravador; hoje a Ginjinha Eduardino: amanhã quem mais?

Muito do carácter da Baixa é-lhe conferido quer pela multitude de pequenos negócios, quer pela sua variedade, quer pela sua antiguidade, quer pela sua actividade hoje rara ou em extinção. Para manter este ambiente único, é de toda a importância preservá-los, renová-los q.b. e valorizá-los.

A classificação de imóveis de interesse municipal, actualizada no último PDM, útil e pertinente, para a qual o autor destas linhas contribuiu, vê-se agora insuficiente para uma eficaz protecção. Essa valorização pode fazer-se, entre outras formas, pela classificação de “Lojas de Tradição”, como a realizada nos anos 1990-1994, mas a que não foi dada continuidade. Seria desde já de toda o mérito proceder-se a uma nova classificação de “Lojas de Tradição” com efeitos de preservação e reconhecimento do seu Património Cultural Material e Imaterial.

Se tomarmos a Rua Augusta como exemplo, a mais visitada, é-o não só por ser pedonal e central, mas é também apreciada pela sua variedade de estabelecimentos, variados nas especialidades, na decoração, nas marcas e nas épocas da sua fundação ou de decoração. De ambos os lados da rua, temos um “fio de pérolas” que vale pela sua mistura de estilos, pontuado por jóias, mais antigas ou mais raras, que agradam pelo brilho e contraste que proporcionam entre si.

Com a renovação agora em curso, arrisca-se uma uniformidade de padrões de decoração e design: moderno, minimalista, estandardizado – monomarcas, mais ou menos conhecidas. Assim, a Baixa ficará mais um centro de compras nos percursos mundiais, mas perderá a sua alma e identidade. É, pois, mais avisado manter esses pequenos comércios tradicionais, restaurando-os, realçando a sua especificidade profissional, o seu mobiliário, a sua decoração e fachadas.

Estes pequenos estabelecimentos, bem restaurados, serão as pedras preciosas que darão a raridade e a distinção ao moderno “colar de pérolas”, estas novas mas brancas, uniformes e iguais a tantas outras!

Como limitar esta renovação sem alma nem cariz? Ao abrigo do licenciamento para reabilitação e obras, deve a câmara impor a manutenção desses espaços, para os que queiram continuar.

Para os estabelecimentos que de todo em todo for incontornável o despejo, deveria a CML promover a sua relocalização em ruas ou quarteirões disponiveis, transpondo o seu mobiliário, decoração e actividade, conferindo animação e atracção nessas outras ruas, convenientemente escolhidas e reabilitadas, p.ex. Ruas dos Fanqueiros ou da Prata. Decerto que a CML, dentro dos seus poderes de licenciamento e negociação com os promotores, terá capacidade para realizar muitas destas mudanças.

Com mais este objectivo, a Baixa não perderá as suas lojas características e, à semelhança do Chiado, poderá fazer-se uma renovação equilibrada, com novos estabelecimentos e com restauros de qualidade nos mais antigos, como a Ourivesaria Aliança é o bom exemplo.

Esta Lei do Arrendamento e o que ela está a operar são bem exemplo da “crise” que vivemos: um processo de concentração capitalista em curso, programado para eliminar os mais fracos ou mais pequenos, para dar margem de negócio – neste caso, “espaço de instalação” – para maiores ou novas forças económicas. Estes pequenos estabelecimentos não fecham por falta de procura ou por falência! Fecham por uma lei que não só ignora os seus direitos por antiguidade de arrendamento, como prepotentemente permite ao senhorio nem sequer propor ou negociar uma nova renda, um novo contrato: despeja e já está!  À luz do direito comercial, ignora a igualdade das partes. Esta politica liberal, mais uma vez, como na não-defesa dos reformados ou dos empregados, deixa os mais fracos indefesos e sujeitos ao arbítrio do mais forte: ao renovar todo o edifício, o proprietário pode ou não despejar os seus inquilinos!

Tambem nós, como cidadãos e consumidores, sofremos: perdemos os nossos comércios que sempre nos serviram bem e a contento. Perdemos a “memória colectiva”, os ícones duma cidade, o que nos dá encanto, gosto e beleza ao passarmos por lá. Apagam o que nos prende à nossa Baixa, à nossa Lisboa!

Estamos, pois, a assistir a uma perda de Património Material – fachadas, mobiliários, decoração, etc. – e de Património Vivo e Imaterial: saberes-fazer, conhecimentos e experiência de profissionais, artigos e objectos que têm valor e utilidade.

E, turisticamente, culturalmente, é a perda duma identidade, própria de Lisboa que a diferencia de qualquer outra cidade. É o que, por exemplo, os centros históricos de Barcelona, Turim, Praga ou Edimburgo sabem preservar.


Sociólogo e amante de Lisboa

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