OPINIÃO
Reabilitação e tradição na Baixa
de Lisboa
GUILHERME PEREIRA
24/03/2014 - PÚBLICO
Apagam o que nos prende à nossa Baixa, à nossa Lisboa!
A renovação em curso
na Baixa é necessária e oportuna. Contudo, conjugada com a nova Lei do
Arrendamento, está a levar ao despejo e encerramento de muitos comércios que
caracterizam esta zona histórica. Ontem a Correaria Vitorino de Sousa, a Adega
dos Lombinhos, o Capelo Gravador; hoje a Ginjinha Eduardino: amanhã quem mais?
Muito do carácter
da Baixa é-lhe conferido quer pela multitude de pequenos negócios, quer pela
sua variedade, quer pela sua antiguidade, quer pela sua actividade hoje rara ou
em extinção. Para manter este ambiente único, é de toda a importância
preservá-los, renová-los q.b. e valorizá-los.
A classificação
de imóveis de interesse municipal, actualizada no último PDM, útil e
pertinente, para a qual o autor destas linhas contribuiu, vê-se agora insuficiente
para uma eficaz protecção. Essa valorização pode fazer-se, entre outras formas,
pela classificação de “Lojas de Tradição”, como a realizada nos anos 1990-1994,
mas a que não foi dada continuidade. Seria desde já de toda o mérito
proceder-se a uma nova classificação de “Lojas de Tradição” com efeitos de
preservação e reconhecimento do seu Património Cultural Material e Imaterial.
Se tomarmos a Rua
Augusta como exemplo, a mais visitada, é-o não só por ser pedonal e central,
mas é também apreciada pela sua variedade de estabelecimentos, variados nas especialidades,
na decoração, nas marcas e nas épocas da sua fundação ou de decoração. De ambos
os lados da rua, temos um “fio de pérolas” que vale pela sua mistura de
estilos, pontuado por jóias, mais antigas ou mais raras, que agradam pelo
brilho e contraste que proporcionam entre si.
Com a renovação
agora em curso, arrisca-se uma uniformidade de padrões de decoração e design:
moderno, minimalista, estandardizado – monomarcas, mais ou menos conhecidas. Assim,
a Baixa ficará mais um centro de compras nos percursos mundiais, mas perderá a
sua alma e identidade. É, pois, mais avisado manter esses pequenos comércios
tradicionais, restaurando-os, realçando a sua especificidade profissional, o
seu mobiliário, a sua decoração e fachadas.
Estes pequenos
estabelecimentos, bem restaurados, serão as pedras preciosas que darão a
raridade e a distinção ao moderno “colar de pérolas”, estas novas mas brancas,
uniformes e iguais a tantas outras!
Como limitar esta
renovação sem alma nem cariz? Ao abrigo do licenciamento para reabilitação e
obras, deve a câmara impor a manutenção desses espaços, para os que queiram
continuar.
Para os
estabelecimentos que de todo em todo for incontornável o despejo, deveria a CML
promover a sua relocalização em ruas ou quarteirões disponiveis, transpondo o
seu mobiliário, decoração e actividade, conferindo animação e atracção nessas
outras ruas, convenientemente escolhidas e reabilitadas, p.ex. Ruas dos
Fanqueiros ou da Prata. Decerto que a CML, dentro dos seus poderes de
licenciamento e negociação com os promotores, terá capacidade para realizar
muitas destas mudanças.
Com mais este
objectivo, a Baixa não perderá as suas lojas características e, à semelhança do
Chiado, poderá fazer-se uma renovação equilibrada, com novos estabelecimentos e
com restauros de qualidade nos mais antigos, como a Ourivesaria Aliança é o bom
exemplo.
Esta Lei do
Arrendamento e o que ela está a operar são bem exemplo da “crise” que vivemos:
um processo de concentração capitalista em curso, programado para eliminar os
mais fracos ou mais pequenos, para dar margem de negócio – neste caso, “espaço de
instalação” – para maiores ou novas forças económicas. Estes pequenos
estabelecimentos não fecham por falta de procura ou por falência! Fecham por
uma lei que não só ignora os seus direitos por antiguidade de arrendamento,
como prepotentemente permite ao senhorio nem sequer propor ou negociar uma nova
renda, um novo contrato: despeja e já está!
À luz do direito comercial, ignora a igualdade das partes. Esta politica
liberal, mais uma vez, como na não-defesa dos reformados ou dos empregados,
deixa os mais fracos indefesos e sujeitos ao arbítrio do mais forte: ao renovar
todo o edifício, o proprietário pode ou não despejar os seus inquilinos!
Tambem nós, como
cidadãos e consumidores, sofremos: perdemos os nossos comércios que sempre nos
serviram bem e a contento. Perdemos a “memória colectiva”, os ícones duma
cidade, o que nos dá encanto, gosto e beleza ao passarmos por lá. Apagam o que
nos prende à nossa Baixa, à nossa Lisboa!
Estamos, pois, a
assistir a uma perda de Património Material – fachadas, mobiliários, decoração,
etc. – e de Património Vivo e Imaterial: saberes-fazer, conhecimentos e
experiência de profissionais, artigos e objectos que têm valor e utilidade.
E,
turisticamente, culturalmente, é a perda duma identidade, própria de Lisboa que
a diferencia de qualquer outra cidade. É o que, por exemplo, os centros
históricos de Barcelona, Turim, Praga ou Edimburgo sabem preservar.
Sociólogo e amante de Lisboa
Sem comentários:
Enviar um comentário