Como despertará a Turquia amanhã?
Análise Jorge
Almeida Fernandes / 30 mar 2014 / PÚBLICO
Deveriam ser
meras eleições locais. Mas não são. “Porque estes não são tempos normais. Vamos
despertar na segundafeira com uma nova Turquia”, escreve o colunista Semih Idiz
no diário Hürriyet. Que Turquia? Não sabemos. Tayyip Erdogan transformou estas
eleições numa questão de “vida ou morte” e na luta contra uma “aliança do mal”
que o quereria destruir. Pede que o eleitorado lave o seu nome das acusações de
corrupção. “Mas a luta real, sejam quais forem os resultados de domingo, serão
as eleições presidenciais deste ano e as legislativas previstas para o próximo
ano”, conclui Idiz. A oposição aceitou a batalha de “nacionalizar” as eleições
locais. Está em jogo, dizem os seus dirigentes, a escolha entre democracia e um
regime autoritário.
O rastilho do
confronto remonta a 17 de Dezembro, com a eclosão daquilo a que se chamou uma
“guerra civil islâmica”, entre Erdogan e a comunidade religiosa e educativa
Hizmet (Serviço), de Fethullah Gülen, um pensador sufi que reside nos Estados
Unidos desde 1998 e acusa o regime de ser “crescentemente autocrático” (ver
PÚBLICO de 12 e 19 de Janeiro).
Um procurador de
Istambul — suspeito de estar ligado a Gülen — ordenou dezenas de detenções por
corrupção, atingindo personalidades próximas do Partido da Justiça e do
Desenvolvimento (AKP, no Governo), provocando a demissão de três ministros. A
seguir, foi a vez de Erdogan e os filhos serem postos em causa. O
primeiro-ministro acusa Gülen de liderar um “golpe de estado” e de controlar um
“estado paralelo”, na magistratura e na polícia.
A Justiça foi
colocada sob tutela governamental. Foi cerceada a liberdade de informação. Foram
“saneados” milhares de polícias e magistrados. Está em curso “uma caça às
bruxas”, escreve o analista liberal Mustafa Akyol.
Erdogan tem uma
concepção “maioritária” da democracia: quem vence as eleições não deve ser
limitado nem pelos direitos da minoria nem pela liberdade de imprensa, nem
sequer pela separação dos poderes. Desvaloriza a legitimidade da Justiça face
ao veredicto eleitoral: “Na Turquia é o povo quem decide.” Figuras do AKP, como
o Presidente Abdullah Gül ou os vice-primeiros-ministros, Bülent Arinç e Ali
Babacan, afirmam que a democracia é algo mais do que eleições. Divergem de
Erdogan mas temem dividir o partido. Erdogan está em declínio, ferido na sua
legitimidade, mas é quem está no comando. E é esse comando que se joga nas
eleições de hoje.
Cenários
As sondagens
realizadas a partir de Dezembro são confusas: o AKP obteria entre 38 e 50% dos
votos. Huseyin Celik, vice-presidente do AKP, colocou a fasquia da vitória nos
38,8% dos votos obtidos nas eleições locais de 2009. Os analistas da oposição
consideram que o AKP sofrerá uma derrota se ficar abaixo dos 47% obtidos nas
legislativas de 2007, para não falar nos quase 50% de 2011. As duas grandes
batalhas travam-se em Ancara e, sobretudo, em Istambul.
A perda de
Istambul — que é improvável — significaria o fim de Erdogan, porque é “o seu
berço e o seu trono”. Também uma votação abaixo dos 40% seria “o princípio do
fim do AKP”, escreve Semih Idiz. Os dirigentes do AKP seriam forçados a pensar
na mudança de líder para evitar um desastre nas legislativas.
Um estudo da
Brookings Institution, realizado pelo politólogo Ali Çarkoglu ( Turkey goes to
the Ballot Box), constata que o apoio ao AKP desceu oito pontos nas intenções
de voto desde o princípio de Dezembro: passou de cerca de 50% para 42. Um
resultado de 42% permitiria a Erdogan proclamar vitória. Esta percepção seria
reforçada pela larga vantagem do AKP em relação aos partidos da oposição, estagnados
e sem iniciativa. Mas não seria a vitória esmagadora que ele quer e os
“gulenistas” temem.
O Hizmet de
Gülen, que ousou afrontar Erdogan e promete continuar a batalha, não é nem quer
ser um partido político. Uma sondagem indica que 70% dos turcos crêem na
corrupção do Governo mas não abandonam o AKP por não encontrarem alternativa
credível e temerem os efeitos económicos da sua queda.
Há outro factor
que cria imprevisibilidade. Os “gulenistas” apelam ao “voto útil” nos
candidatos mais bem colocados para derrotar o AKP. Como reagirão os eleitores
ao voto em inimigos históricos como os kemalistas do Partido Republicano do
Povo? Por sua vez, em “guerra contra Gülen”, Erdogan procurou o apoio dos
militares — de má memória para as suas bases.
O líder do AKP
fez a campanha mais mobilizadora e também paranóica. Descreve a Turquia como um
país cercado. A “aliança do mal” vai de Gülen aos EUA, passando por Israel,
pela CNN e pela banca internacional.
“A estratégia de
Erdogan quando está em conflito é torná-lo maior e alargá-lo até ao combate
total”, diz ao Financial Times Ibrahim Uslu, seu conselheiro eleitoral. “Se a
oposição se queixa da corrupção, Como garantir o poder? Salvo desastre em
Istambul, Erdogan tem duas opções para durar. Alimenta a ambição de se tornar
Presidente até 2022, ano do centenário da República — ser “o segundo fundador”
a par de Ataturk. Mas não conseguiu ainda a revisão constitucional que criaria
um regime presidencialista “à francesa”, porque quer ter nas mãos as alavancas reais
do poder.
Por outro lado,
uma vitória “mediana” nas eleições locais pode pôr em causa este cenário. A sua
estratégia para as presidenciais de Agosto consistia em obter os 50,01% votos
na primeira volta. Um voto na casa dos 40% seria a indicação de que os partidos
da oposição poderiam escolher um candidato credível capaz de o derrotar na
segunda volta, dizem analistas turcos. Huseyin Celik explica: “Temos duas
opções: ou Erdogan concorre à presidência ou nós obrigamo-lo a concorrer a um
quarto mandato [no governo].”
Os estatutos do
AKP proíbem um militante de exercer um mandato mais de três vezes. É uma
proibição estatutária, não constitucional. Logo, passível de revisão. Neste caso, Gül permaneceria na chefia do Estado.
Os europeus têm
os olhos postos na Ucrânia. Mas, na outra margem do Mar Negro, abre-se mais uma
ameaça nas suas fronteiras. A Turquia tem a experiência de longos períodos de
turbulência. Parece estar no horizonte mais um. O conflito Erdogan-Gülen está
para durar. Anota Ali Çarkoglu no seu estudo: “Um regime repressivo na Turquia
mantê-laia inexoravelmente distante da UE e enfraqueceria o poder de dissuasão
da NATO.”
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