Calçada em Lisboa e no Rio: mais o que as une do que
aquilo que as separa
Na cidade carioca, muitos
vêem a “pedra portuguesa” como “a vilã”, mas há quem insista no seu valor
histórico. A diferença é que no Rio são os moradores e comerciantes que têm de
a conservar
Inês Boaventura e Abel Coentrão / 5 mar 2014 / PÚBLICO
Em Lisboa, a hipótese recentemente ressurgida de se
substituir a calçada portuguesa por outros pavimentos nalguns locais da cidade
deu origem a dezenas de notícias, a abaixo-assinados e a uma discussão intensa
entre defensores e opositores da medida. Mas não é só em Portugal que o tema
desperta paixões: no Rio de Janeiro, sempre que se fala em limitar a “pedra
portuguesa”, a polémica estala.
Isso mesmo aconteceu em 2007, quando a Prefeitura do Rio
aprovou uma lei segundo a qual “as calçadas e passeios públicos” deveriam ser
“de piso antiderrapante e contínuo, com rampa de acesso para cadeira de rodas”.
Para que fosse realidade, previase a substituição generalizada dos pisos “com
pedra do tipo portuguesa”, excepto na orla marítima. O que tem vindo a
acontecer a pouco e pouco, aproveitando obras de requalificação em vários
locais da cidade.
“Volta e meia, as nossas calçadas de pedras portuguesas
ficam sob fogo cruzado. O argumento é sempre o mesmo: o perigo que a falta de
manutenção representa para os transeuntes”, escrevia em 2009 Cora Rónai. E a
jornalista d’O Globo perguntava: “O que leva alguém a supor que uma cidade
incapaz de manter um calçamento de pedras portuguesas será capaz de manter um
calçamento de qualquer outra coisa?”
Semelhante é o raciocínio de Horácio Magalhães, que defende
ao PÚBLICO que o problema está na “falta de conservação” e não no tipo de
pavimento. “Não importa se é calçada ou concreto. Se só muda o material, o
problema persiste. É como tirar o sofá da sala para evitar que o casal namore”,
diz o presidente da Sociedade de Amigos de Copacabana. Além disso, diz
Magalhães, “as pedras portuguesas são características de Copacabana, fazem
parte da sua história”. Tirá-las seria “um prejuízo”.
O “calçadão”, uma das mais conhecidas imagens do Rio, foi
construído em 1906, com mão-de-obra e pedras de Portugal e com um desenho
inspirado no “Grande Mar” do Rossio. Na década de 70 do século passado, o
artista plástico e arquitecto paisagista brasileiro Roberto Burle Marx, que
nalgumas obras juntou basalto vermelho às tradicionais pedras brancas e pretas,
deu-lhe um novo desenho.
Também Andréa Redondo é, como confessa no blogue Urbe
CaRioca, uma “apaixonada” pela calçada portuguesa, “herança da terrinha, de lá
onde estão as nossas raízes lusitanas”. “É a nossa memória, a nossa cultura, que
deve ser preservada. Quando visitei Lisboa foi uma emoção indescritível ver ao
vivo como somos portugueses”, conta a arquitecta ao PÚBLICO. “As calçadas são
muito mal conservadas, infelizmente. Ficam com buracos, com desnivelamentos e
as pessoas caem, se machucam”, acrescenta. “Há um consenso geral de que a pedra
portuguesa é a vilã”, resume a ex-presidente do Conselho Municipal de Protecção
do Património Cultural do Rio de Janeiro, lamentando que assim seja.
Olhando para as cartas dos leitores e os muitos artigos
publicados n’O Globo, é também essa a imagem que passa. “Olhe bem por onde
todos pisam”, “Armadilhas para os pedestres”, “Pedras portuguesas, um perigo
constante” e “Um tropeço, com certeza” são os títulos de algumas notícias,
várias delas acompanhadas por fotografias de pessoas com ferimentos causados
por quedas.
Em Lisboa, onde existem apenas 20 calceteiros ao serviço da
autarquia, a falta de manutenção e de qualidade da calçada e os problemas de
acessibilidade e segurança que coloca são também temas de discussão. Uma
realidade que parece não ter eco no Rio, a julgar pelo que se lê em blogues e
artigos de opinião. É o caso de Cora Rónai, que faz a apologia da pedra
portuguesa a partir do exemplo das “ruas lindas e impecáveis de Lisboa, onde é quase
impossível, se não impossível de todo, ver pedra fora do lugar”.
Entre a capital portuguesa, que segundo o município tem
“largos milhares de metros quadrados” com calçada, e o Rio há no entanto uma
diferença significativa: deste lado do Atlântico é à câmara que compete a
manutenção das pedras, mas em terras brasileiras são os proprietários das
habitações e lojas quem têm o ónus de zelar pelos pavimentos à sua frente.
Isso mesmo está estipulado num Decreto do Prefeito do Rio de
Janeiro, de 2008, que prevê a aplicação de multas aos faltosos. Andréa Redondo
explica que “não existe acompanhamento das obras, nem fiscalização, nem
divulgação de como fazer”. O resultado, explica, é que os trabalhos na calçada
são mal feitos, havendo vários moradores e comerciantes que acabam por a
substituir por concreto ou granito. “É uma coisa muito ruim porque há uma
quebra de unidade.”
O debate sobre o futuro da calçada não é exclusivo de
Lisboa. No Porto, o actual vereador do Urbanismo, Manuel Correia Fernandes, não
defende uma utilização extensiva deste pavimento nos passeios. O arquitecto considera
que o calcário polido se torna escorregadio em determinadas condições de
humidade, o que coloca problemas de mobilidade. Por isso, defende um
compromisso entre a estética e a funcionalidade, sendo que, neste caso, a
funcionalidade tem muito que ver com a mobilidade de peões. E basta andar na
calçada no largo da igreja da Trindade, atrás dos Paços do Concelho, ou chegar
com pressa, num dia de chuva, à estação de metro com o mesmo nome, onde foi
usado granito polido, para se perceber como os materiais de revestimento podem
ser um empecilho.
No Porto, nas últimas intervenções no espaço público da
Baixa tem sido usado o granito, seja na versão paralelepípedos, na faixa de
rodagem, ou em lajes de grandes dimensões, como na Rua das Flores. Noutras,
como na Rua Ricardo Jorge ou na Rua das Oliveiras, os novos passeios são em
cimento. Nestes últimos casos, o preço foi o que pesou, mas a opção, que vem do
executivo de Rui Rio, tem sido criticada e está a ser avaliada pela actual
equipa do Urbanismo pois coloca outros problemas, de manutenção e do aspecto
visual, por exemplo.
Na cidade, todos se recordam da polémica intervenção de
Eduardo Souto Moura/Siza Vieira na Avenida dos Aliados, aquando das obras de
construção da estação de metro, em meados da década passada. Entre várias
críticas, algumas vozes levantaram-se contra a substituição da calçada dos
passeios e de parte da placa central por cubos de granito que conferiram ao
espaço uma homogeneidade que o falecido escritor Manuel António Pina chegou a
definir como “sizentismo”. Na altura, o trabalho da calçada dos passeios, com
motivos alusivos ao ciclo do vinho do Porto, foi transferido para uma
perpendicular aos Aliados, a Sampaio Bruno.
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