sábado, 17 de janeiro de 2015

O estranho caso do ministro Pires de Lima, por Manuel Carvalho.


O estranho caso do ministro Pires de Lima
Manuel Carvalho / 18-1-2015 / PÚBLICO

1 — António Pires de Lima, na TVI, quinta-feira à noite, falando sobre o caderno de encargos da privatização da TAP: “Não podemos estender esse acordo [protecção dos trabalhadores face a eventuais despedimentos] a sindicatos que não se quiseram sentar connosco à mesa e que não assinaram o acordo de paz social relativo a esta privatização.”
António Pires de Lima, sextafeira à tarde, em conferência de imprensa: todos os trabalhadores da TAP estão protegidos do despedimento colectivo durante 30 meses, porque, para lá do acordo com os sindicatos, “prevalece a norma geral do direito”. O que fica em causa neste aparatoso recuo de um ministro tido por sensato e competente não é apenas um confrangedor erro de análise jurídica de uma intenção de alta sensibilidade; o que perturba neste episódio é a constatação de que o Governo que se investiu da nobre missão de nos libertar da tutela do Estado caia assim, tão facilmente, na tentação de manipular o livre arbítrio de trabalhadores e sindicatos que não lhe obedecem.
Depois de tudo o que se passou, Pires de Lima e o seu frenético secretário de Estado dos Transportes recuaram, porque lhes era impossível ir em frente. Logo pela manhã o primeiro-ministro foi preparando o caminho da inflexão. Perante uma oposição apalermada e incapaz de ir para lá do disco riscado da “austeridade” e afins, Passos Coelho tratou de dizer que Pires de Lima fora mal interpretado, que “os acordos de empresa terão de ser respeitados pelos futuros compradores”. Por essa altura já sindicalistas tinham falado da “infantilidade” do ministro, já comentadores haviam alertado para o erro político primário, já personalidades insuspeitas de estar contra o Governo e o CDS, como António Lobo Xavier, tinham manifestado a sua perplexidade perante o que se anunciara.
Pires de Lima recuaria invocando a lei que na noite anterior Sérgio Monteiro garantira não se aplicar ao acordo que protegia os sindicalizados “bons” e deixava os sindicalizados “maus” ao sabor dos humores da conjuntura ou dos planos do próximo accionista maioritário da TAP. Querendo perpetuar o seu poder para lá da privatização, o Governo dispunha-se a fazê-lo sob os ditames de um paternalismo bafiento que confere ao Estado o direito de puxar as orelhinhas aos que ousam pagar quotas a sindicatos politicamente incorrectos. Como outrora com os priores da paróquia, indulgências só seriam concedidas à parte do rebanho que se portasse bem. Os discursos em prol da “libertação” da sociedade que o primeiro-ministro tanto gosta de propalar foram por algumas horas suspensos, em favor de uma atitude de comando e controlo digna de um Estado colectivista.
Se por acaso o castigo aos trabalhadores filiados nos sindicatos incómodos fosse levado a cabo, ter-se-ia oficializado uma nova forma de coacção social. Que a pressão e o privilégio são há muito armas de arremesso político para proteger clientelas e penalizar dissidentes já se sabia. O que agora haveria de diferente é que o seu uso passaria a ser feito de forma escancarada. No futuro próximo, um qualquer secretário de Estado dificilmente não cederia à tentação de usar a mesma discriminação e chantagem para impor um acordo. Se a outra parte não a assinasse, ou, pior ainda, se se insurgisse contra a proposta, tornar-se-ia alvo da vingança do Governo. Como o braço do Governo é longo e poderoso, esse tipo de chantagem poderia acabar na exigência de favores políticos e eleitorais. O que o ministro da Economia fez em relação à TAP foi levar à prática a promessa feita um dia por Jorge Coelho, que numa declaração infeliz avisou: “Quem se meter com o PS leva.”
Foi, de resto, assim que pensaram algumas centenas de trabalhadores da TAP que, como noticiava o PÚBLICO na sexta-feira, se preocuparam em alinhar-se com os sindicatos seduzidos pelo Governo. A pressão estava dar resultados. Os maus da greve estavam a ser castigados e os bons protegidos. O direito de cada um a escolher a representação laboral de acordo com os seus valores ficara irremediavelmente comprometido. Ser ou não ser competente, diligente e produtivo pouco importava nesta fórmula de gestão; mais importante que o interesse da empresa e dos seus accionistas era o ajuste de contas com os “culpados”, remetidos para o outro lado da barricada do Governo. O Governo campeão do liberalismo estava a promover um breve episódio de engenharia social e política.
O que todo este folhetim comprova é a emergência de uma ala do Governo que se julga tão sustentada pela conjuntura que ou se dá ao luxo de testar os limites da prepotência, ou não revela saber e sensibilidade suficientes para perceber que num Estado de direito há limites para a punição dos desafectos. Comprova também o torpor de uma equipa gasta por três anos de governação difícil. Que um ministro sensato, experiente e competente como Pires de Lima tenha caído neste erro é apenas a prova de que os conselhos de ministros se tornaram uma algazarra sem rumo nem tino. Mais do que um défice pessoal, o diznão-diz de Pires de Lima mostra o labirinto subterrâneo que um governo cansado e dividido em blocos escavou e onde faz questão de se ir perdendo.
2 — Uma excelente notícia para todos os que não aceitam ver o Estado vestir a pele do xerife de Nottingham: um tribunal de Braga transformou-se em Robin dos Bosques e anulou uma série de multas relacionadas com o não pagamento de portagens. Não porque em causa estivessem erros substanciais ou violações de preceitos constitucionais. Incapaz de combater o monstro que transforma portagens de cêntimos em multas de muitas centenas de euros, o tribunal usou as armas que pôde para defender os cidadãos.
O Estado pode e deve penalizar quem não cumpre os seus deveres sempre que passa numa portagem. Não estão por isso em causa nem as multas, nem os custos administrativos dos processos de contra-ordenação. O que está em causa é a arrogância com que o Estado equilibra o “crime” e o “castigo”, é a desproporcionalidade entre a falha e a sua compensação. É uma questão de Justiça o vínculo que há séculos cimenta a legitimidade dos “príncipes” e o seu reconhecimento pelos cidadãos. Quando o Estado nos trata como o xerife de Nottingham, o primeiro instinto que nos resta é inventar um Robin dos Bosques.
O caso das portagens mostra que o Estado quebrou esse vínculo. Deixou de ser “justo” e passou a agir contra nós em sua ilegítima defesa. Aflito por recursos financeiros, fez do fisco o vilão que anda à cata do pobre cidadão que ora não pagou deliberadamente, ora se esqueceu de pagar a portagem para lhe extorquir quantias demenciais. Nós precisamos do Estado para termos uma sociedade e um conjunto de serviços públicos decentes, mas para que essa necessidade seja sentida o Estado tem de deixar de nos encarar como meros mealheiros onde se pode tirar sempre mais um vintém.


P.S. — Por motivo de férias, a Memória Futura estará de volta no dia 15 de Fevereiro

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