Festa? Falemos antes dos dias
difíceis do Syriza
José Manuel
Fernandes / 26-1-2015 / OBSERVADOR
É possível acabar com a austeridade? Sim, se alguém pagar as contas. Quando
esse alguém são outros povos europeus, temos de perguntar-lhes. Em nome da
mesma democracia que os gregos tanto invocam.
Vou começar por
um lugar comum: agora é que começam as dificuldades para o Syriza e para Alexis
Tsipras. Parece óbvio, mas não é. Ou pelo menos não é para muitos dos que se
têm ouvido no espaço público.
O seu ponto é
fácil, e muito tentador: o povo votou, a austeridade acabou. É isso a
democracia, não é?
Na verdade, não
é. A vontade, mesmo uma vontade maioritária, não se torna em realidade apenas
porque existe e se manifesta. Eu não voo só porque tenho a firme vontade de
voar. No caso da Grécia, como veremos, não basta a vontade do eleitorado – é
preciso também dinheiro, muito dinheiro, e a questão estará em saber onde ir
buscá-lo.
Comecemos pelo
princípio: a Grécia não é um país soberano, como em tempos foi. Perdeu parte da
sua soberania quando aderiu à União Europeia; perdeu depois muito mais
soberania quando adoptou o euro. A Grécia não pode fazer aquilo que outros
países podem quando enfrentam crises. Não pode fechar as fronteiras aos
produtos importados. Ou desvalorizar a moeda. Ou controlar os fluxos de
capital. A vontade soberana da Grécia depende de regras e depende de boas
vontades – desde há quatro anos, a boa vontade dos seus parceiros europeus.
Mas a Grécia
também não é soberana por uma outra razão: está demasiado endividada –
insuportavelmente endividada – e não tem forma de se financiar sem ajuda
externa. A Grécia colocou-se nas mãos dos credores – credores que, para além do
mais, são relutantes. Por eles, de livre vontade, não emprestariam mais
dinheiro à Grécia.
Nada do que até
aqui escrevi é fruto da maldade de qualquer agente externo, mas uma
consequência de opções políticas tomadas livremente pelos gregos ao longo das
últimas décadas. Em nome da prosperidade que associaram à União Europeia e à
moeda única, os gregos abdicaram de grande parte da sua soberania. Nós, em
Portugal, fizemos o mesmo. Só não nos endividámos tanto, mas também íamos a bom
ritmo…
Ninguém ignora os
imensos sacrifícios já suportados pelo povo grego, ninguém esquece que a sua
economia perdeu um quarto da sua riqueza, tal como ninguém ignora a revolta do
eleitorado grego. Mas nada disso faz desaparecer a realidade: os gregos não têm
na sua mão o seu destino, dependem de outros.
Na sequência do
resultado eleitoral, o Financial Times interrogava-se sobre se Tsipras se vai
revelar um demagogo, estilo Hugo Chavez, ou um realista, na linha de um Lula da
Silva. Na verdade Tsipras não tem a margem de manobra de nenhum desses líderes
– não tem petróleo, não tem moeda e não vai dirigir um país com tantos pobres e
iletrados como a Venezuela ou o Brasil. As escolhas de Tsipras não só são mais
estreitas como terão de ser imediatas. E são escolhas que têm a ver com
dinheiro, muito dinheiro: o que já falta à Grécia para cumprir as obrigações de
2015 e o que o Syriza precisaria para por em prática as suas promessas
eleitorais.
O primeiro
problema do novo governo grego será a necessidade de honrar os próximos
pagamentos de dívida. De acordo com as estimativas do jornal grego
Ekathimerini, há já pagamentos agendados para Fevereiro e Março que ascendem a
um pouco mais de quatro mil milhões de euros. Em Julho e Agosto vencem mais 6,6
mil milhões em dívidas ao eurosistema. No total, em 2015, as necessidades de
financiamento da Grécia serão no mínimo de seis mil milhões, no máximo de 15
mil milhões. Se a Grécia falhar qualquer um desses pagamentos sem que antes
exista qualquer acordo, isso significará a bancarrota. E para evitar falhar o
país continua a depender da troika, já que os juros da sua dívida no mercado
ainda estão muito elevados e o caminho alternativo – obrigar os bancos gregos a
financiarem a dívida pública – pode chocar com as regras do Banco Central
Europeu.
Como se estas
necessidades não existissem, é necessário acrescentar-lhes os encargos
decorrentes das promessas feitas pelo Syriza. Isto é, mais 12 mil milhões de
euros, contas do próprio partido.
É este o ponto de
partida. O poço é fundo e a Grécia, mesmo tendo recomeçado a crescer, está lá
muito em baixo, ainda muito longe da superfície. Esta realidade não mudou no
domingo com a vitória do Syriza. Que pretende então este fazer?
O seu programa é,
de certa forma simples. Primeiro, que volte a ocorrer um perdão de dívida. Depois,
que aqueles que perderam o dinheiro que emprestaram continuem a emprestar mais
dinheiro. Por fim, que os gregos possam fazer exactamente o contrário do que
pretendem aqueles que lhes permitem continuarem a pagar as suas contas. Não é
pedir pouco.
Para não
complicar muito, olhemos para este programa com olhos portugueses. Comecemos
por notar que o perdão de dívida que os gregos já tiveram foi na casa dos 100
mil milhões de euros, um montante que, se pudéssemos beneficiar de algo
semelhante, nos resolveria quase todos os problemas. Notemos também que esse
perdão foi suportado pelo sector privado, levou Chipre ao tapete e também nos
afectou a nós, pois pesou, e muito, nas contas de alguns bancos portugueses,
afectando a sua capacidade de financiarem a economia. Um segundo perdão a
Atenas será sempre uma injustiça quando visto pela perspectiva de Lisboa.
Mais: desta vez
qualquer perdão à Grécia teria de ver as suas perdas suportadas pelos países do
eurogrupo, incluindo Portugal, incluindo países com um nível de vida mais baixo
do que o da Grécia, mesmo da Grécia pós-crise. Isso colocará sempre novos
problemas de justiça relativa e, claro, colocará grandes, enormes, problemas
políticos.
E aqui chegamos a
um ponto nevrálgico: é bom não esquecer que a democracia grega não é a única
democracia europeia. Nos outros países os eleitorados também fazem escolhas e
não parece que estejam dispostos a aceitar aquilo que, no fundo, é pedido pelo
Syriza, como é pedido por muitos partidos de esquerda do sul da Europa (não do
norte da Europa), assim como por alguns grupos de extrema-direita: que passe a
haver transferência de recursos, numa escala hoje impensável, entre países da
União Europeia. Sempre que falamos de perdão de dívida, de mutualização de
dívida, de eurobonds e de outros mecanismos semelhantes, do que estamos a falar
é de obrigar países como a Alemanha, a Holanda ou a Finlândia a pagarem uma
parte das nossas contas, das contas gregas, porventura das italianas. Tudo o
resto são eufemismos.
Se houvesse um
pouco mais de honestidade intelectual no debate público não seria problemático
aceitar esta evidência. Mais: os que o fazem não têm problemas em defender, com
franqueza e frontalidade, que a construção do euro terá sempre de passar por
mecanismos federais, um federalismo não apenas de coordenação de políticas, mas
também de transferência de recursos entre países e regiões da Europa. O grande
problema é que tal não foi combinado quando o euro foi criado e não se vê como
possa vir a aceite pelos eleitorados dos países pagadores.
É por isso que é
quase nula a margem de manobra dos líderes europeus, mesmo de líderes de
esquerda, como já se começou a perceber pelas reacções das capitais europeias à
vitória do Syriza. Tanto mais que o problema não é apenas a Grécia – é o
exemplo da Grécia. No dia em que Tsipras conseguisse arrancar de Bruxelas uma
parte das suas reivindicações, o precedente estaria aberto para as
reivindicações de partidos como o Podemos espanhol ou a Frente Nacional
francesa (apesar de virem de espectros ideológicos diferentes, têm programas
económicos muito semelhantes, sobretudo no seu anti-austeritarismo e
anti-globalização). Ora a Espanha ou a França não têm, em termos europeus, o
peso quase negligenciável da Grécia.
A corda esticou
muito durante a campanha eleitoral grega e o argumento que será agora levado a
Bruxelas é que a escolha do eleitorado foi democrática e, por isso, deve ser
respeitada. Só que, verdadeiramente, os gregos não tinham a latitude de
escolhas que os candidatos lhes apresentaram na campanha. Podem é ter a escolha
que ninguém quis enfrentar: saírem do euro e recuperarem a sua soberania
monetária (e não só). Isso sim seria uma decisão soberana – pedir o perdão de
dívidas não e, pois choca com a soberania outros povos.
Vamos pois
continuar a viver tempos interessantes. Mas esperemos que não demasiado
perigosos.
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