“Esta crise é pior que a guerra.
A guerra sabíamos que ia acabar
Na clínica solidária de Atenas há gregos envergonhados e zangados. Alguns
conseguem ajuda, outros não, porque estar doente na Grécia hoje é estar-se
“condenado”
“Estamos de tal modo mal que o
Syriza pode aliviar alguma coisa. As pessoas querem só que a sua vida mude um
bocadinho para melhor”
Reportagem Maria
João Guimarães e Miguel Manso em Atenas / 19-1-2015 / PÚBLICO
Um dentista anarquista trata uma mãe
desempregada de graça, uma reformada que nunca recebeu a reforma e vive da
pensão da mãe não está especialmente orgulhosa de estar aqui, refugiados sírios
causam um momento de descontracção, um economista zangado faz uma declaração. Tudo
isto na pequena sala da policlínica e farmácia comunitária de Atenas. Hoje é
dia de distribuição de medicamentos e enquanto se espera para ver quem tem
sorte e quem não tem, saúde e política misturam-se.
Lá fora, na
fachada de um edifício normal no meio das ruas com nomes de filósofos e
dramaturgos, de Sócrates a Aristófanes, apenas um autocolante vermelho na
campainha do terceiro andar indica que ali funciona a clínica.
A sala começa a
encher pelas 13h e pouco; às 14h começa a distribuição de medicamentos. A
farmácia, uma sala com prateleiras e as caixas de medicamentos bem arrumadas,
tem muita coisa, a maioria remédios que sobraram de pessoas que os doaram — ou
porque familiares morreram, ou porque não precisaram de todo o tratamento. Mas
quem aqui vem, vem sem certezas: pode haver o que precisa, ou não.
Constantino
Kokossi, reformado do Ministério dos Negócios Estrangeiros (todos os que trabalham
aqui são voluntários), pega nas receitas e orienta a sucessão de pessoas. Dali
a pouco a sala está cheia, cheia. Não vão sair daqui só medicamentos: uma
família de sírios que vem buscar leite em pó para um bebé acaba por levar
também um brinquedo, e entre discussão sobre o tipo de leite e instruções sobre
como montar o brinquedo já há muita gente a rir.
Aqui passam
pessoas que não têm seguro de saúde ou segurança social — na Grécia há um
sistema misto entre o serviço de saúde público e seguros privados (normalmente
pagos pelo empregador), quem está desempregado deixa de ter serviço nacional de
saúde após três meses (com um taxa de desemprego de 25% e de desemprego jovem
de 50%, isso é um problema). Vêm para consultas ou para buscar medicamentos. Às
vezes é possível que a policlínica ajude — há até um consultório de dentista. Há
médicos especialistas que recebem algumas pessoas por indicação da policlínica
nos seus consultórios. Mas demasiadas vezes não é possível fazer o que
precisam. Cirurgias, não é possível. Exames de laboratório também não.
Ainda tentam
“jogar” com as regras, que as pessoas entrem no hospital no dia da urgência
(cada hospital tem um dia para emergências). “Mas vem o contabilista do hospital
e pergunta: tem seguro? Então não pode ser operado.” Constantino diz que há
casos de pessoas que iam começar a ser operadas mas já na sala de operação o
responsável pelas contas do hospital vem decretar que não se pode operar. Em
casos de acidentes graves, mal a pessoa acorda é-lhe perguntado pelo seguro. “Ou
perguntam aos familiares, ‘Não tem seguro? Mas se calhar tem algo de valor, uma
casa, por exemplo’”.
“É a tragédia
grega”, comenta Constantino. Casos complicados como cancro, mesmo que haja por
vezes medicamentos de pessoas que morreram, não vão ser tratados. “Somos
testemunhas, mas não podemos fazer nada”, diz. “Essas pessoas estão
condenadas.”
A situação da
saúde na Grécia tornou-se tão precária que às vezes as pessoas chegam aqui
enviadas pelos próprios hospitais, conta Constantino. Há doenças que já
praticamente não existiam que estão a ressurgir com força. Pneumonia, varíola.
Há demasiadas crianças que não são vacinadas.
Um raro caso de
sucesso
Apesar de tudo a
clínica, e outras semelhantes geridas por organizações como os Médicos do Mundo
ou Médicos Sem
um problema de
dentes. Depois de trabalhar cinco anos num restaurante de fast-food, está há
dois anos desempregada. O marido recebe 750 euros de salário (“mas só de renda
pagamos 300” ),
e tem um filho. Conta com a ajuda da mãe e da sogra, ambas reformadas. Katerina
sempre votou no partido Nova Democracia, do primeiroministro Antonis Samaras. Desta
vez, vai mudar. Pede o bloco de apontamentos para escrever o nome do partido:
“Syriza”. Não quer que se saiba. Mas acha que seria “muito melhor” se o partido
ganhasse. “Mais trabalho. Precisamos de trabalho.”
O dentista que a
tratou não vota: “Vai contra as minhas convicções porque o problema está no
sistema”, diz Giorgos, 25 anos, que vive com os pais e vai tendo trabalhos
ocasionais em cafés, ou a distribuir panfletos (e ele próprio sem cobertura de
saúde, nem seguro nem do sistema público). “Estamos de tal modo mal que o
Syriza pode aliviar alguma coisa”, diz, embora não concorde com o partido. “E a
maioria das pessoas também não vão votar porque concordem. As pessoas querem só
que a sua vida mude um bocadinho para melhor.”
“Muitos dentistas
foram para o estrangeiro porque é mais fácil encontrar emprego. Eu faço parte
dos que decidiram ficar e tentar fazer o que conseguirmos aqui.” A sua
motivação para estar na clínica é não só ajudar mas também não perder a ligação
à profissão que escolheu, e que espera um dia vir a exercer.
Sem forças para
“mudanças”
Outra Katerina,
mais velha, olha à volta quando confessa o que vai votar: “Nova Democracia”,
para acrescentar: “Devo ser a única aqui”. Katerina trabalhou 35 anos na
Alfândega e reformou-se há um ano. “Ainda não recebi um cêntimo. Dizem-me que
ainda estão a processar as reformas de 2012” , conta.
“Não tenho especial
orgulho em estar aqui”, desabafa. “Mas tem de ser.” Katerina vive com a mãe de
81 anos e com a filha de 37, professora, que está desempregada. Três gerações
de mulheres a viver com a reforma da mais velha. Por isso está aqui, vem buscar
os medicamentos para a epilepsia que a mãe tem de tomar.
Mas não culpa o
Governo. “Samaras fez algumas coisas. Não quero que todos os sacrifícios que
fizemos tenham sido em vão. Não consigo pensar em fazer mudanças, não tenho
força. Tenho medo — não quero voltar à dracma”, diz, a testa franzida sob os
caracóis brancos.
Vendo que há uma
pessoa com um bloco a escrever o que algumas pessoas dizem, um homem imponente
põe o dedo no ar e diz que quer dar uma “curta entrevista”: na verdade vai ser
uma declaração sem direito a perguntas. “Escreva que os políticos gregos
traíram o país e venderam-no para ganhar comissões e nós é que estamos a pagar.
Somos orgulhosos e nunca vamos perdoar os seus erros e o colapso da economia
grega. Diga que quem disse isto foi um economista
anónimo.”
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