A minha obsessão com José
Sócrates
JOÃO MIGUEL
TAVARES 22/01/2015 - PÚBLICO
Dividi Portugal em dois campos: de um lado, aqueles que percebiam o perigo
que Sócrates representava para a salubridade do regime; do outro, aqueles que
não percebiam.
Peço que olhem
para este meu texto como o pagamento de uma dívida para com aqueles leitores
que genuinamente não percebem porque dedico tantos artigos a José Sócrates. Ou,
para citar um comentário do Facebook: “Não me leve a mal, mas já enjoa a sua
perseguição.” A partir de agora, sempre que confrontado com este género de
remoque, poderei remeter explicações para o texto que escrevi no PÚBLICO a 22
de Janeiro de 2015.
Vamos a isto,
então. Ao contrário do que muita gente pensa, eu não conheço José Sócrates de
lado algum. Nunca falei com ele. Nunca estivemos na mesma sala. E mesmo o
processo que ele me colocou beneficiou-me muito mais do que me prejudicou:
ganhei três vezes e a atenção que as pessoas me dedicavam triplicou. Estou-lhe
grato por isso. Mais: eu fui um furioso opositor de Santana Lopes, e depois do
seu espectacular desastre enquanto primeiro-ministro, os dois primeiros anos do
Governo de José Sócrates pareceram-me um oásis de competência e capacidade de
liderança.
A minha atitude
só começou a mudar com o acumular de casos, casinhos e casinhas, primeiro em
2007, com a questão da licenciatura, depois em 2008, com os projectos da
Guarda, e finalmente no annus horribilis de 2009, com a casa da Braamcamp e as
gravações do Freeport. Eram casos de gravidade muito diferente, mas denotavam
um padrão – padrão esse que os portugueses manifestamente desvalorizaram,
permitindo a Sócrates vencer as legislativas de Setembro de 2009. Quando nesse
mesmo mês o Jornal Nacional de Manuela Moura Guedes foi suspenso (estamos a
falar em uma televisão privada decidir acabar com o seu jornal de maior
audiência) e, no final desse ano, se começaram a conhecer os detalhes do Face
Oculta, e me deparei com a forma como o país e as suas principais instituições
reagiram a um caso daquela gravidade, todos os sinais de alarme dispararam na
minha cabeça.
Aí, de facto,
dividi Portugal em dois campos: de um lado, aqueles que percebiam o perigo que
Sócrates representava para a salubridade do regime; do outro, aqueles que não
percebiam. E neste “aqueles que não percebiam” incluo tanto os devotos mais
assolapados do engenheiro como aqueles que, não sendo devotos, achavam – e
muitos continuam a achar – que ele era apenas “mais um político”, torcendo o
nariz a tanta gritaria à volta da sua figura. A minha alegada obsessão deriva
daqui: da incapacidade que o país, como um todo, demonstrou para reagir a um
primeiro-ministro com o perfil de José Sócrates, que debaixo do nosso nariz
tentou controlar em meia dúzia de anos a política, a banca, a justiça e a
comunicação social – e que esteve à beira de o conseguir, não fosse o Lehman
Brothers ter feito o favor de desabar.
Pior: esta anomia
continua entre nós. Perante as gravíssimas revelações do Correio da Manhã de
sexta e sábado, a comunicação social demorou dois dias a reagir. E muito
timidamente. Porquê? Porque o CM é um jornal populista, como populista era o
Jornal Nacional de Manuela Moura Guedes. Não interessa o que eles dizem – o que
interessa é que o fazem num tom desagradável. Estão a ver o conceito de watch
dog? Em Portugal, as pessoas bem-educadas apreciam apenas watch kitties. É
melhor só miar. E baixinho. Parece que não aprendemos nada de nada. E enquanto
eu achar que não aprendemos nada de nada, permitam-me a indelicadeza de
continuar a insistir na minha obsessão. Porque o problema não está em Sócrates
– está no país que permitiu que ele fosse duas vezes primeiro-ministro.
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