EXPLICADOR
O BCE vai mesmo fazer o
impensável?
18 Janeiro 2015 –
por Edgar Caetano / OBSERVADOR
Porque está
o BCE sob pressão para lançar mais estímulos?
Pergunta 1 de 8
O Conselho de
Governadores do Banco Central Europeu (BCE) reúne-se esta quinta-feira em
Frankfurt, na sede da instituição, num encontro que poderá ficar para a
História da zona euro. Estará iminente o anúncio de um programa de compra de
dívida pública por parte da autoridade monetária, algo que já tem vindo a ser
feito em outros “gigantes” económicos como os EUA, o Japão e o Reino Unido. A confirmar-se,
será uma medida com implicações vastas para a economia europeia e uma decisão
inédita e que era, até há bem pouco tempo, impensável. Porque está, então, o
BCE sob toda esta pressão para lançar mais estímulos?
A resposta é
simples: o BCE tem um mandato para cumprir – manter a taxa de inflação “perto,
mas abaixo, de 2% no médio prazo” – mas há dois anos que a realidade se afasta
cada vez mais do objetivo da inflação. A taxa de inflação anual deslizou em
dezembro para -0,2% e, mais importante que isso, o próprio BCE não prevê uma
aceleração significativa nos próximos dois anos. É preciso fazer mais para
evitar que algo que pode não ser mais do que uma baixa transitória dos preços
possa enraizar-se na economia, criando o risco de algo ainda mais grave do que
uma inflação baixa por demasiado tempo: uma espiral deflacionista como a que se
viveu no Japão nas últimas décadas.
Mario Draghi
reconheceu, em entrevista publicada num jornal alemão a 2 de janeiro, que “o
risco de não cumprirmos o nosso mandato da estabilidade de preços é maior do
que era há seis meses”, o que foi lido como mais uma tentativa do presidente do
BCE de preparar os mercados para um novo programa de estímulos e, também, de
convencer os cidadãos alemães da eventual necessidade de avançar para a compra
de dívida pública.
Porque está
a inflação tão baixa?
Pergunta 2 de 8
A taxa de
inflação tem vindo a cair de forma quase ininterrupta e em dezembro baixou para
um nível negativo (-0,2%), segundo o Eurostat. A razão por que isto está a
acontecer foi a questão que ocupou grande parte de um discurso que Mario Draghi
fez, em maio de 2014, em Sintra, durante um fórum de banqueiros centrais e
economistas.
A inflação há
muito está abaixo do ideal na zona euro e, nos países mais fragilizados, os
preços já estão há vários meses a registar uma evolução consistentemente
negativa. O ajustamento económico que existiu (e continua) nesses países,
incluindo Portugal, foi uma das razões invocadas pelo presidente do BCE para
explicar a baixa inflação, já que a pressão sobre os salários e o desemprego
travou a evolução dos preços em países como Portugal.
Contudo, olhando
para a zona euro de forma global, as principais razões por que a inflação está
tão baixa estão associadas à recuperação lenta da atividade económica e da
concessão de crédito, bem como à forte queda recente dos preços da energia.
Este fator foi o mais importante para a evolução negativa dos preços na zona
euro, com o Eurostat a calcular que os preços dos produtos energéticos caíram
6,3% em dezembro, algo decisivo para a descida global de 0,2% dos preços no
consumidor.
E porque é
que a inflação baixa é um problema?
Pergunta 3 de 8
Para o BCE, é
simples perceber porque é que a inflação baixa é um problema. Porque o seu
único e exclusivo mandato é o de assegurar que esta ronda os 2% e isso está
longe de estar a acontecer. Mas, de um ponto de vista geral, sendo bem
conhecidos os perigos de uma inflação demasiado alta, é também importante
perceber porque é que ter alguma inflação, num nível relativamente moderado
como 2%, é algo desejável. Por várias razões.
Alguma inflação é
uma causa e uma consequência de crescimento económico. Já uma inflação baixa ou
deflação trava o crescimento económico. Se os preços e os ordenados estiverem a
cair, e não houver perspetivas de essa situação mudar, dificilmente alguém se
endividará para comprar um ativo, como uma casa ou um carro, que prenderá o
devedor a uma dívida que, em termos relativos, se tornará cada vez mais pesada.
Existir alguma inflação é, portanto, um incentivo ao consumo.
O principal risco
de ter uma inflação demasiado baixa é que se está mais próximo de cair em
deflação, um cenário em que os preços caem de forma persistente e, por isso,
empresas e famílias tendem a adiar decisões de investimento e de consumo, à
espera de preços mais baixos. O resultado é uma espiral de desemprego e falta
de investimento. Esta é uma situação que, quando se instala, é muito difícil de
inverter, como mostra a experiência do Japão nas últimas décadas.
Alguma inflação
é, também, importante por uma outra questão. É que num mundo com inflação 0%,
as poupanças existentes numa sociedade são canalizadas para os instrumentos
mais conservadores, já que estes nem ganham nem perdem valor. Existir alguma
inflação é importante para encorajar os detentores dessa poupança a encaminhar
uma parte desta para ativos mais arriscados, como o investimento ou a compra de
ações em empresas ou projetos de maior risco, mas também com melhores
perspetivas de recompensa. Por outras palavras, mesmo que fosse possível manter
uma inflação imóvel em 0%, a economia cairia no marasmo.
Nesta fase, a
inflação está a ser um problema para as empresas e para os Estados da zona
euro, já que a inflação – que causa erosão no valor real das dívidas – está
mais baixa do que se previa no momento em que as dívidas foram emitidas. O que,
só por si, funciona como um aumento intrínseco do peso real da dívida. A
ausência de inflação não vem nada a calhar às empresas e aos membros da zona
euro, entre os quais Portugal, que teriam aí uma grande ajuda para acelerar a
redução real da dívida.
Mas o BCE
já não tem vindo a comprar dívida pública?
Pergunta 4 de 8
Esta é uma
questão que importa clarificar, porque há três medidas distintas que podem
confundir-se. É verdade que o BCE já comprou dívida pública de países da zona
euro em quantidades apreciáveis, entre meados de 2010 e até finais de 2011,
quando Mario Draghi assumiu a presidência do BCE. Essas compras foram feitas ao
abrigo do Securities Market Programme (SMP), um programa “limitado e
temporário” que foi criado por Jean-Claude Trichet, o antecessor de Mario
Draghi, e que fazia intervenções esporádicas no mercado para aliviar subidas
súbitas das taxas de juro. O programa foi criado logo após o primeiro resgate à
Grécia, numa tentativa de isolar o contágio a outros países.
Ao abrigo desse
programa, o SMP, o BCE adquiriu dívida de países como Grécia, Itália, Espanha,
Irlanda e Portugal. O BCE chegou a deter mais de 20 mil milhões de euros em
dívida portuguesa só à conta deste programa. As compras eram feitas sem pré-anúncio,
e o BCE tentava fazer intervenções em momentos cirúrgicos para ajudar os países
a fazer leilões de nova dívida no mercado ou para tentar apanhar em contra-pé
investidores mais especulativos, que apostavam na queda do valor das obrigações
(e subida dos juros).
O SMP funcionou
apenas pontualmente, já que era, por definição, limitado. Não evitou que países
como Portugal e Irlanda pedissem assistência externa, nem teria evitado que
Espanha e Itália tivessem seguido pelo mesmo caminho.
O que terá, eventualmente,
evitado possíveis resgates a Itália e Espanha foi a segunda intervenção que
importa clarificar. Depois de prometer, em julho de 2012, “fazer tudo, dentro
do mandato, para preservar o euro”, Mario Draghi e o BCE anunciaram o chamado
programa OMT (do inglês Outright Monetary Purchases, ou Transações Monetárias
Definitivas). Aqui, o BCE disponibilizou-se a comprar quantidades ilimitadas de
dívida pública em momentos de pico nos juros de um dado país no mercado. Por
exemplo, se os juros de Itália (ou, em rigor, a diferença entre os juros de
Itália e da Alemanha) se aproximassem de um nível considerado excessivo pelo
BCE, o banco central interviria.
Os juros da
dívida de um país sobem no mercado quando as obrigações em causa perdem valor.
E estas perdem valor quando os investidores que querem vender os títulos ganham
prevalência sobre quem os quer comprar. Ao surgir no mercado como comprador de
bolsos fundos, o BCE seria decisivo para estancar a queda do valor de uma
obrigação, absorvendo-a.
Isto nunca chegou
a acontecer, ou seja, o OMT nunca foi ativado. Mas a simples perspetiva de ter
o BCE disposto a intervir de forma audaz e ilimitada no mercado terá sido
suficiente para convencer os investidores de que os juros nunca subiriam acima
de um determinado nível. Um nível a partir do qual, como explica o BCE, se
tornassem ineficazes os mecanismos de transmissão da política monetária do
banco central à economia real. O que é que isto significa? Significa que, nessa
situação, fosse o que fosse que o BCE fizesse em termos de medidas de política
monetária – como, por exemplo, baixar o nível da taxa de juro de referência,
isso não produzia resultados na quantidade e no preço do crédito.
O que o BCE
parece preparar-se para fazer é algo diferente destas duas outras medidas.
Trata-se de um programa generalizado de compra de ativos, em que se junta às
compras de dívida privada que já estão em curso uma intervenção do BCE, também,
no mercado de dívida pública. O inimigo, desta vez, não é os juros elevados –
estes estão, aliás, em mínimos históricos, já a antecipar esta intervenção –
mas sim a inflação baixa. É um problema bem mais complexo para Mario Draghi e
para o BCE.
E porque é
que um plano de compra de dívida pública é "impensável"?
Pergunta 5 de 8
A compra de
dívida pública é vista, sem grandes tabus, como uma ferramenta de política
monetária em regiões monetárias como os EUA, com a Reserva Federal a gerir o
dólar, o Reino Unido, com a libra, e o Japão, com o iene. A Reserva Federal dos
EUA percebeu, rapidamente, após a crise de 2008, que as taxas de juro em zero
não seriam suficientes para estimular a economia e lançou, desde então, três
programas de compra de dívida do governo federal norte-americano, as Treasury
notes. O último desses programas nem sequer tinha um montante objetivo definido
à partida. Era um programa aberto, e só ao longo de 2014 foi tomada a decisão
de reduzir gradualmente as compras de dívida até à sua extinção, em outubro.
Na zona euro, uma
união monetária composta por 19 países e com um Tratado europeu que proíbe o
Banco Central Europeu (BCE) de fazer o chamado financiamento monetário – isto
é, ter o banco central a subscrever a dívida emitida pelos estados, financiando
os seus défices – é tudo bem mais complexo. Se o BCE avançar para um programa
de compra de dívida terá de justificar essa decisão com a necessidade de tomar
mais medidas para cumprir o seu mandato de estabilidade dos preços.
Um programa de
compra de dívida pública é visto como um tabu por alguns responsáveis do BCE,
com destaque para o governador do banco central nacional da Alemanha, o
Bundesbank. Jens Weidmann avisa que essa medida poderá criar um “risco moral” e
contribuirá para que os governos se endividem mais e interrompam as reformas
estruturais, isto além de ser “questionável do ponto de vista legal”.
Jens Weidmann
notou, ainda, que é “compreensível” que o Conselho de Governadores esteja a
discutir mais medidas de estímulo, já que a taxa de inflação está muito abaixo
do objetivo de 2%. Mas recomendou “alguma calma”, já que a inflação baixa é um
resultado da descida dos preços da energia e do “processo de ajustamento
necessário”.
O que é que o BCE já fez,
até agora, para estimular a inflação?
Pergunta 6 de 8
Mario Draghi
anunciou, em junho de 2014, um conjunto de medidas de compra de dívida privada.
Aqui, fala-se em conjuntos de créditos que as instituições financeiras
titularizam, isto é, empacotam créditos dispersos num ativo financeiro único e
vendem no mercado. Estas já estão em curso mas os analistas duvidam, como
duvidaram desde o anúncio, que sejam suficientes para fazer “inchar” o balanço
do BCE na medida desejada por Mario Draghi. Um balanço maior significa maior
quantidade de moeda a circular, um euro mais baixo face às outras divisas (o
que torna as empresas exportadoras mais competitivas) e custos de financiamento
mais baixos para os estados e empresas. O objetivo do BCE é o de elevar o
balanço para mais de três biliões de euros, o que implicaria um aumento de
cerca de 50% face aos valores atuais.
Além disso, o BCE
já colocou a taxa de juro de referência no mínimo histórico de 0,05%,
falando-se aqui da taxa que os bancos privados pagam pela liquidez obtida junto
do banco central. Além disso, foi dado o passo inédito de passar a taxa dos
depósitos para um valor negativo. Na prática, passou a cobrar-se aos bancos uma
taxa quando estes estacionam recursos financeiros no banco central, ao invés de
emprestarem essa liquidez às famílias e empresas, ou a outros bancos através do
mercado interbancário.
A 21 de novembro,
Mario Draghi deixou a garantia: “Vamos fazer o que tivermos de fazer para
acelerar a inflação e as expectativas de inflação o mais rapidamente possível,
como nos obriga o nosso mandato de estabilidade de preços”. “Se a nossa atual
trajetória de política não for suficientemente eficaz para conseguir isto, ou
se se materializarem mais riscos para as perspetivas de inflação, iremos
aumentar a pressão e alargar ainda mais os canais através dos quais intervimos,
alterando a dimensão, intensidade e composição das nossas compras” no mercado,
atirou Mario Draghi.
Dias depois, o
vice-presidente do BCE, o português Vítor Constâncio, reiterou a mensagem:
“Esperamos que durante o decorrer do programa, as medidas adotadas façam
regressar a folha de balanço à dimensão que tinha no início de 2012″, os tais
três biliões de euros. “Senão, teremos de considerar comprar outros ativos,
incluindo obrigações soberanas no mercado secundário”, atirou o responsável.
Se o BCE
avançar mesmo, quanta dívida pública será comprada? E como?
Pergunta 7 de 8
Os técnicos do
Banco Central Europeu (BCE) apresentaram ao Conselho de Governadores um plano
de compra de dívida pública em que uma das opções é a de levar o banco central
a comprar apenas dívida pública da zona euro que tenha “rating” máximo (AAA).
Aí, as compras – que ascenderiam a 500 mil milhões de euros – iriam limitar-se
à dívida de países como Alemanha, Holanda e Finlândia. Outra opção é a compra
de dívida pública com “rating” acima de “lixo”, caso em que a notação
financeira da DBRS deveria ser suficiente para que as obrigações do Tesouro
português estivessem na “lista de compras” de Mario Draghi.
Há muita
incerteza, ainda, sobre o modelo concreto que o BCE irá preferir, mas a maioria
dos economistas vê como mais provável um programa em que o banco central
compraria obrigações do Tesouro numa quantidade proporcional à quota de cada
país no BCE. O Goldman Sachs antecipa que as compras irão incidir, em especial,
nos títulos de dívida de prazo mais longo, superior a cinco anos.
Uma questão
crucial que o BCE terá de definir é a de saber quem fica com o risco das
obrigações compradas. Aqui, “está a emergir como a opção mais provável a compra
por parte dos bancos centrais nacionais da compra de dívida do país respetivo”,
escrevem os analistas do Commerzbank. Ou seja, o Banco de Portugal, membro do
eurosistema, iria participar no processo de compra da quantidade de dívida
portuguesa definida pelo plano do BCE e, no final, o risco recai sobre esse
banco central específico e não sobre o BCE no geral. Para o Commerzbank, esta
pode ser uma forma de convencer os críticos, dentro e fora do BCE, a um
eventual programa de compra de dívida.
E vai
resultar?
Pergunta 8 de 8
Pode
argumentar-se que, em certa medida, só a perspetiva de uma intervenção mais
agressiva pelo BCE já está a ter efeitos importantes e que podem ajudar – e
muito – a economia da zona euro. A descida do euro é um dos impactos principais
de qualquer programa de expansão monetária (o famoso quantitative easing, ou
Q.E.), e pode, só por si, contribuir para estimular a atividade económica na
região, já que torna as exportadoras mais competitivas no mercado global.
É impossível
dizer até que ponto um programa deste género será eficaz naquilo que mais
importa para o BCE – a aproximação da taxa de inflação da meta de 2% –, até
porque ainda faltam informações importantes sobre como o plano irá
desenrolar-se, na prática.
“Se fizermos uma
analogia ao que se verificou nos EUA e no Reino Unido podemos inferir que o
mercado acionista recuperou”, explica Eduardo Silva, gestor da corretora XTB
Portugal. “A moeda cai e fomenta a exportação, a economia cresce e o desemprego
desce. O crédito fácil aumenta. Estas medidas servem como estímulo de último
recurso, mas existe um custo a médio prazo, como com qualquer política de
facilitismo monetário”, conclui o especialista.
A principal
motivação do BCE em avançar com este programa é, como já leu nas questões
anteriores, contribuir para que o banco central mais facilmente atinja o seu
objetivo de aumento do balanço, que é de um aumento de 50% para cerca de três
biliões de euros. Assim que Mario Draghi anunciou as anteriores medidas de
compra de dívida privada, a maior parte dos analistas defendeu logo que seria
necessário fazer mais do que aquilo para atingir o objetivo de expansão de
balanço. Daí a eventual necessidade de um programa de compra de dívida pública.
Os analistas já
estão, contudo, a tentar antecipar o nível de eficácia que esta medida, a
confirma-se, terá. Alberto Gallo, economista do Royal Bank of Scotland, diz que
“por si só, o programa Q.E. terá um impacto limitado”. “Produzirá um efeito
através das exportações e da desvalorização da divisa mas não tanto através do
efeito-riqueza ou do ponto de vista do investimento/consumo ou, ainda, da
expansão do crédito”.
O próprio Mario
Draghi, presidente do BCE, já reconheceu que a política monetária, por mais
medidas que a instituição tome, não conseguirá, sozinha, acelerar a recuperação
económica na zona euro. Em entrevista recente, Draghi disse que “são
necessários mais progressos estruturais importantes – mercados de trabalho mais
flexíveis, menos burocracia, impostos mais baixos”. O jornalista do
Handelsblatt perguntou: “Pode ser um pouco mais específico, Sr. Presidente? Que
países da zona euro precisam de fazer mais esforços?”. “Todos“, respondeu.
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