Depois do Syriza, a Frente Nacional
Rui Ramos / 26/1/2015 / OBSERVADOR
Poderá a esquerda social-democrata ser substituída pela esquerda radical? E
a direita liberal-conservadora pela direita nacionalista? A Europa pode ter
entrado noutra fase bem distinta da sua história
Durante as
últimas semanas, a pessoa mais entusiasmada com a perspectiva de uma vitória do
Syriza na Grécia não foi Francisco Louçã: foi Marine Le Pen. O quê, a líder da
“direita nacionalista” francesa feliz com o acesso da “esquerda radical” grega
ao poder? Sim, exactamente. Le Pen, aliás, não poupou as palavras: na Grécia
soprava “um feliz vento de democracia”, augurando uma “vitória do povo e dos
seus representantes contra a oligarquia europeia e a grande finança”. Há seis
dias, foi ainda mais clara: “Sim, nós esperamos a vitória do Syriza!” Nada
disto nos devia espantar, e só nos ajudará a perceber o que poderá estar em causa
na Grécia, e que é muito mais do que a chamada “austeridade” ou mesmo a
configuração actual da moeda única europeia.
As elites
políticas europeias estão a ser apertadas por dois tipos de movimentos
populistas: um de “esquerda radical”, como o Syriza na Grécia, e outro de
“direita nacionalista”, como a Frente Nacional em França. O credo dos primeiros
é o ódio aos “ricos”; os segundo também odeiam os “mercados financeiros”, mas
rejeitam igualmente a imigração, e muito especialmente a imigração muçulmana.
Uns dizem que é o Estado social que está em causa; outros, que é o Estado
nacional. Coincidem, porém, no inimigo: a “oligarquia europeia”, como diz
Marine Le Pen. Para a esquerda radical, é uma oligarquia neo-liberal, que quer
submeter os Estados ao mercado mundial, para gáudio das grandes fortunas; para
a direita nacionalista, é uma oligarquia globalizadora, que, segundo o escritor
francês Renaud Camus, está a tentar, através da imigração desenfreada,
substituir a população nativa da Europa por uma população importada do Terceiro
Mundo.
Esquerda radical
e direita nacionalista não gostam de se misturar e não queremos aqui forçar as
analogias, mas o abraço à distância que Le Pen enviou a Tsipras faz sentido.
Radicais e nacionalistas falam igualmente de “democracia”, de “povo”, de
“soberania” e de “protecção”. Prometem um regime político onde o poder,
conquistado através de um grande movimento popular, seria usado para defender
os nativos ou os pobres contra os estrangeiros, sejam estes banqueiros ou
imigrantes. Uns falam de “desigualdade”, outros de “desnacionalização”: em
ambos os casos, imaginam uma unidade perfeita, existente no passado ou possível
no futuro, de que nos estaríamos a afastar através da diversidade de
rendimentos ou da variedade de origens étnicas. Por mais opostos que sejam,
radicais e nacionalistas correspondem bem, cada um à sua maneira, a um tempo de
ansiedade dos europeus com a globalização e a diferenciação.
O que pode
significar a vitória eleitoral do Syriza para estes populismos? Pode, claro,
não significar nada, a não ser novas eleições na Grécia daqui a uns meses. Mas
pode significar muito mais do que uma reconfiguração da área do Euro, por mais
grave que essa reconfiguração fosse, com o despejo da Grécia – ou a fuga da
Alemanha. O modo como a esquerda radical do Syriza ultrapassou a esquerda
social-democrata do Pasok (que caiu de 43,9% dos votos em 2009 para 4,7%
ontem), tal como o triunfo da Frente Nacional nas últimas eleições europeias em
França, permite imaginar a maior de todas as eventualidade políticas: uma
mudança dos partidos que, nas democracias europeias, fixaram desde a segunda
guerra mundial as opiniões da maioria dos cidadãos. À esquerda, os actuais
partidos de matriz social-democrata dariam lugar a partidos de matriz radical;
à direita, os partidos de matriz liberal-conservadora seriam trocados por
partidos de matriz nacionalista. Em França, há anos que a família Le Pen não
sonha com outra coisa.
Entre a
“oligarquia europeia”, ninguém, porém, quis antever catástrofes. Muitos
oligarcas tentaram mesmo suscitar boas expectativas em relação a Tsipras: ele
não seria um Chávez balcânico, determinado a tratar os contribuintes alemães
como o seu poço de petróleo, mas apenas outro político grego à cata de mais um
perdão da dívida e mais um empréstimo. Acontece que mesmo este cenário benigno,
por mais inócuo que seja em termos dos desígnios integracionistas da UE,
implica de facto uma viragem.
Até agora, o que
tem limitado a ambição de partidos como o Syriza ou a Frente Nacional, apesar
dos seus sucessos eleitorais, é a percepção de que não são partidos
respeitáveis, e que, como tal, mesmo saltando a barreira de repulsa dos
eleitorados domésticos, seriam devidamente boicotados pelos outros Estados
europeus, como sucedeu ao partido de Jorg Haider quando, no ano 2000,
participou no governo da Áustria.
O facto de um
partido deste tipo sair de umas eleições no primeiro lugar da fila para formar
governo já seria, só por si, um sinal de que grandes convulsões são possíveis.
Mas se a isso acrescentarmos a sua aceitação pela UE como um parceiro normal,
então muito mais terá mudado: acabaram-se os leprosos na política europeia. Daí
o júbilo de Marine Le Pen com a vitória do Syriza: logo que um primeiro
ministro Tsipras, muito sorridente, apertar as mãos dos seus colegas numa
cimeira europeia, estará demonstrado que uma presidente Le Pen não é o fim do
mundo.
É difícil
calcular os efeitos de uma substituição de partidos deste tipo. Talvez consista
apenas numa renovação das oligarquias europeias, com radicais e nacionalistas
encaixados no arco da governação, dentro duma UE apenas um pouco mais
protecionista e inflacionista. Na Alemanha do princípio do século XX, também ninguém
imaginava que sociais-democratas e democratas-cristãos — com controversas
propostas de ruptura social e moral (socialização da economia, recristianização
da sociedade) –, se constituíssem um dia em pacíficos sócios de rotação numa
democracia liberal.
Mas a história é
às vezes falsamente reconfortante. Estarão a esquerda radical e a direita
nacionalista disponíveis para respeitar o pluralismo político e admitir a
alternância governativa, que, até hoje, foram os fundamentos das democracias
europeias? Não serão as suas políticas, fundamentalmente hostis à liberdade de
iniciativa ou de circulação, fatais para uma UE até agora concebida, apesar de
todas as limitações, como uma via de abertura das sociedades europeias e
flexibilização das suas economias? Nesse caso, a página que se virou ontem na
Grécia pode mesmo ser a primeira de um livro muito diferente do que aquele que
contém a história dos últimos 70 anos.
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