O que tem Harrison Ford a ver com as mudanças do clima?
Estrelas de Hollywood e
jornalistas foram à procura de histórias que mostram o impacto do aquecimento
global. O resultado é Anos a Viver Perigosamente, que se estreia hoje no canal
Odisseia
“O ministro estava à espera que o
Harrison Ford chegasse lá e lhe desse um aperto de mão ou tirasse uma
fotografia para emoldurar”, recorda Adam Bolt. O que se passou “não podia estar
escrito num guião”
Televisão Marisa
Soares, em Madrid A jornalista viajou a convite do canal Odisseia
28-1-2015 / PÚBLICO
Jacarta, capital da Indonésia, Ministério das
Florestas. Harrison Ford entra no gabinete do ministro Zulkifli Hasan para uma
entrevista que ameaça descambar. O actor conta que esteve no Parque Nacional de
Tesso Nilo e o ministro solta uma gargalhada. “Não tem graça”, responde Ford,
lutando para se manter agarrado à cadeira. Atrás da secretária, Hasan mantém o
sorriso, enquanto explica como permitiu a destruição de milhares de hectares de
floresta para produzir óleo de palma, apesar de haver uma lei que o proíbe.
Este podia ser o
guião para mais um episódio da saga de Indiana Jones, mas não é de ficção que
se trata. A cena é uma das mais tensas da série documental Years of Living
Dangerously/Anos a Viver Perigosamente que se estreia hoje em Portugal no canal
Odisseia, no cabo, às 22h30, e vai ser difundida todas as quartas-feiras até 25
de Março.
Em nove episódios
de uma hora, algumas das maiores estrelas de cinema e jornalistas
norte-americanos percorrem o mundo à procura de histórias reais que mostram o
impacto do aquecimento global — como a desflorestação na Indonésia, a seca no
Texas ou a destruição causada pelo furacão Sandy, na costa leste dos EUA. Porque,
como diz Adam Bolt, um dos produtores e montador da série, os efeitos das
alterações climáticas “já estão a acontecer e não afectam apenas os ursos
polares”.
Anos a Viver
Perigosamente, que recebeu o Emmy de Melhor Série Documental em 2014, é o
resultado da reunião de alguns dos nomes mais respeitados no meio do cinema de
Hollywood, desde a produção — a cargo de James Cameron, Arnold Schwarzenegger e
Jerry Weintraub, entre outros — até aos melhores técnicos de imagem, gráficos e
fotografia. Conta ainda com um elenco de luxo, como o próprio Schwarzenegger,
Harrison Ford, Matt Damon, Michael C. Hall (protagonista de Dexter), Jessica
Alba e Don Cheadle, e jornalistas como Thomas L. Friedman (colunista do The New
York Times e vencedor de um Pulitzer), Lesley Stahl e Chris Hayes, entre
outros.
“Foi fácil
convencê-los, difícil foi conciliar agendas”, admite Adam Bolt, montador e
membro da equipa de produção, que esteve na semana passada na apresentação da
série aos jornalistas ibéricos, em Madrid. Bolt — que aos 31 anos tem já um
Óscar pela produção de Inside Job — A Verdade da Crise, considerado Melhor
Documentário em 2010 — espera que as celebridades consigam atrair a atenção das
pessoas que normalmente não ligam ao tema. “Quisemos ter os melhores contadores
de histórias de Hollywood, para, quando as pessoas estiverem em casa a fazer
zapping, pararem no canal e pensarem que é um novo episódio de Mad Men ou de
Guerra dos Tronos.”
Escândalo na
Indonésia
Ainda antes da
estreia em televisão nos EUA, em Abril do ano passado, a série já tinha dado
que falar na imprensa internacional. É que a entrevista de Harrison Ford a
Zulkifli Hasan descambou mesmo. “Foi um escândalo na Indonésia, o ministro
ameaçou deportar toda a equipa”, conta Adam Bolt.
O governante
reagiu mal às perguntas que o actor levava na ponta da língua, depois de passar
duas semanas com a população local no Parque Nacional de Tesso Nilo, nas ilhas
de Sumatra e Bornéu, onde assistiu à queima de milhares de árvores para a
plantação de palmeiras.
Antes de voar
para a Indonésia, no primeiro episódio intitulado Estação Seca, Ford foi ouvir
o que dizem os cientistas: 40% das emissões dos gases com efeito de estufa
resultam da desflorestação, uma vez que as árvores são sequestradoras de
carbono. Quando morrem, o carbono é libertado para a atmosfera. Em Tesso Nilo,
quase 80 mil dos 86 mil hectares do parque foram já destruídos, pondo também em
perigo espécies à beira da extinção como os elefantes e os tigres de Sumatra.
“O ministro
estava à espera que o Harrison Ford chegasse lá e lhe desse um aperto de mão ou
tirasse uma fotografia para emoldurar”, recorda o produtor, sublinhando que o
que se passou no terreno “não podia estar escrito num guião” antecipadamente —
ainda assim, Bolt foi nomeado para o Emmy da Melhor Escrita para Programa
Não-Ficcional.
A escolha dos
participantes e das histórias a relatar não foi aleatória. “Fomos atrás de
celebridades que tivessem já algum compromisso com questões ambientais”, diz
Bolt, acrescentando que os locais das filmagens foram decididos em conjunto
entre a produção e os actores e jornalistas.
Harrison Ford,
por exemplo, pertence à direcção da organização Conservation Internacional, que
tem lutado contra a desflorestação na Indonésia. O protagonista de Dexter, por
outro lado, quis sair da “bolha” onde vive, em Hollywood, para ir ao Bangladesh
ver como está a população a enfrentar o aumento do nível do mar, que poderá
“engolir” 17% do território daquele país até ao fim do século, obrigando à
deslocação de 20 milhões de pessoas.
Já o jornalista
Thomas L. Friedman viajou até ao Médio Oriente para perceber a relação entre as
alterações climáticas e a guerra na Síria ou as tensões no Egipto. No último
episódio, Friedman entrevista o Presidente dos EUA, “a pessoa mais difícil” de
convencer a participar no projecto. “Foi a primeira vez que ele se sentou em
frente às câmaras e falou em exclusivo sobre as alterações climáticas”, afirma
Bolt, orgulhoso do feito, que a equipa faz questão de publicitar no site do
projecto.
Se na Europa poucos
põem em causa as alterações climáticas, nos EUA não faltam vozes cépticas,
incluindo de líderes políticos. Por isso, ter Barack Obama a dizer perante as
câmaras “isto é real, vamos parar de discutir sobre isso e começar a pensar na
solução” foi uma grande vitória para a equipa. “O nosso objectivo não é que
esta série vá mudar o mundo. Mas sentimos que podemos ser mais uma peça a
pressionar os governantes e as empresas, de uma forma diferente dos grupos
ecologistas, por exemplo.” É impossível não comparar Anos
a Viver
Perigosamente ao documentário Uma Verdade Inconveniente, de Davis Guggenheim,
que rendeu um Nobel da Paz a Al Gore em 2007.
“Tenho um grande
respeito por esse documentário, que teve um grande impacto, mas depois chegou a
crise económica e os cépticos ganharam terreno”, considera Adam Bolt.
O produtor espera
que este projecto possa relançar o debate sobre as alterações climáticas e
pressione os governantes, mesmo a tempo da nova conferência das Nações Unidas
em Paris, marcada para Dezembro deste ano, da qual deverá sair um novo tratado
climático. “Este é o momento para agir”, reforça.
Essa é também a
convicção de Jesús Fidel González-Rouco, principal autor do quinto relatório do
Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) das Nações Unidas. O
investigador foi um dos consultores científicos da série. “O aquecimento global
é um problema amplo e multidisciplinar”, afirma, defendendo que também o cinema
tem um papel a desempenhar na procura da solução.
365 dias de
gravações
Anos a Viver
Perigosamente é, pode dizer-se, “filho” do programa jornalístico da CBS 60
Minutos, no qual David Gelber e Joel Bach, criadores da série, trabalharam como
produtores. “As histórias sobre as alterações climáticas iam ficando perdidas
no meio de outros temas menos sérios. Quanto mais sabiam sobre o assunto, mais
percebiam que este era o tema mais importante”, relata Bolt.
Da ideia até ao
produto final passaram quatro anos. Para montar o resultados das filmagens —
365 dias de gravações — foram precisos sete montadores, a trabalhar durante
mais de um ano, com um orçamento “muito caro” para um documentário (que o
produtor não revela). E, porque ainda ficou muito por contar, promete uma
segunda temporada. Para a directora do Odisseia, Pilar de las Casas, esta série
documental é “o lançamento mais importante” do canal no primeiro trimestre de
2015. “Reúne todos os valores que defendemos: qualidade, entretenimento e
compromisso”, afirma.
Sem comentários:
Enviar um comentário